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Sociedade civil apresenta à ONU retrocessos sociais do Brasil sob Temer

Laércio Portela / 12/07/2017

No momento em que o mercado financeiro e a mídia corporativa alardeiam que a economia descolou da crise política e voltou a dar sinais de recuperação, a sociedade civil vai à ONU mostrar que a perda de direitos e o desmonte das políticas sociais continuam operando a todo vapor no Brasil, sem qualquer tipo de descolamento da economia e da política. As operações do “mercado” e do Congresso Nacional, capitaneadas pelos aliados e ex-aliados do governo Temer, continuam repercutindo negativamente na vida de milhões de brasileiros.

O Brasil vai apresentar o 1º Relatório Nacional Voluntário da Agenda 2030 para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), durante a realização do Fórum Político de Alto Nível da Organização das Nações Unidas, que teve início na segunda-feira (10) e termina na quarta-feira (19), na sede da ONU, em Nova Iorque. O Fórum é responsável por acompanhar os avanços e recuos na implementação da Agenda 2030, que estabeleceu 17 objetivos e 169 metas a serem alcançados pelos 193 países signatários, como é o caso do Brasil, até 2030.

Relatório paralelo do grupo de trabalho da sociedade civil para a agenda 2030 (Relatório Luz) apresentado oficialmente em atos públicos no Recife, Rio de Janeiro e São Paulo, na última sexta-feira (7), aponta retrocessos nas áreas de erradicação da pobreza, combate à fome, agricultura sustentável, saúde, igualdade de gênero, inovação e infraestrutura, recursos hídricos e desenvolvimento de parcerias e meios eficazes de implantação de políticas públicas.

No Recife, a apresentação aconteceu no auditório da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), em Casa Forte, e contou com a participação de representantes de várias entidades signatárias do documento.

Entidades apresentam Relatório Luz da Agenda 2030 no auditório da Fundaj, no Recife

Entidades apresentam Relatório Luz da Agenda 2030 no auditório da Fundaj, no Recife

Forças retrógradas

“Testemunhamos a expansão de forças retrógradas que atuam na contramão do desenvolvimento sustentável, enquanto todos os esforços da classe política estão canalizados para a minimização dos escândalos de corrupção que corroem o sistema político partidário nacional. Os dados analisados refletem um processo de negligência do bem público em nome da manutenção do status quo e de desmonte das políticas voltadas à promoção da dignidade, redução das desigualdades, efetivação de direitos humanos e sustentabilidade socioambiental, frutos de décadas de construção e conquistas da sociedade”, afirma o relatório.

O percentual da população abaixo da linha de pobreza, que era de 31,7% em 2001 e caiu continuamente até chegar a 12,7% em 2013, subiu para 13,9% em 2015, segundo dados do IBGE com base na Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar (PNAD).

Gráfico Pobreza

“Trabalhamos com dados oficiais. Estamos bastante preocupados porque, quando observamos os números, a conclusão é de que o Brasil está na contramão dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Apesar dos avanços anteriores, os dados mostram que se não tivermos uma mudança nas políticas e investimentos dificilmente vamos alcançar os objetivos que estão traçados”, explica a coordenadora de políticas estratégicas da Gestos, Alessandra Nilo. A Gestos é uma ONG que atua na área de direitos humanos e assistência a pessoas afetadas pelo HIV.

Segundo dados compilados no relatório da sociedade civil, com base na PNAD, em 2015 já se registrava uma queda na cobertura dos programas de assistência social e pela Previdência entre os 20% mais pobres da população brasileira. Fruto da política de cortes de gastos e ajuste fiscal desenvolvida no início do segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff, depois radicalizada no governo Temer com a aprovação da PEC 55, impondo um teto para a aplicação de recursos públicos que, na prática, deve congelar investimentos sociais por 20 anos.

Serviços da dívida

O economista Cláudio Fernandes chama a atenção para o comprometimento de 45% do orçamento federal com o pagamento do serviço da dívida. Ela representa também 47% das exportações brasileiras anuais em contraposição a 0,18% de investimentos em inovação tecnológica e 4% em saúde. Cláudio participa ativamente da campanha de Taxação sobre Transações Financeiras (TTF).

“A campanha TTF Brasil vem de antes do ODS e surgiu da busca de financiamento para a saúde e a educação públicas, para a proteção social da população. É uma campanha mundial. A primeira para criar um tributo internacional. Teria duas consequências positivas: impedir os fluxos ilícitos de capital, com melhor regulação; e a vantagem arrecadatória, em termos de encontrar meios de financiamento para a agenda 2030”, explica o economista, lembrando que desde 2012 as transações financeiras de alto nível estão sem tributação no Brasil.

Fácil entender porque as propaladas reformas da Previdência e Trabalhista (aprovada nesta terça-feira pelo Senado Federal e encaminhada para sanção de Temer) encobrem a urgência da reforma realmente necessária: a Tributária. Está na essência do sistema de tributação brasileiro a máquina de produzir desigualdade social, tirando mais de quem tem menos para dar a quem não precisa, segundo análise da economista Tânia Bacelar.

“A reforma que precisamos é a Tributária e não a Trabalhista e a Previdenciária. Reforma é para melhorar, não é para tirar o telhado da casa. O que precisamos é de justiça fiscal com maior progressividade tributária”, defende Sérgio Costa Floro, da organização de combate à pobreza ActionAid.

Plenário do Senado Federal durante sessão de votação da reforma Trabalhista. Foto: Agência Brasil

Plenário do Senado Federal durante sessão de votação da reforma Trabalhista. Foto: Agência Brasil

Retrocessos

Após anos de avanços com o cumprimento antecipado da meta da ONU de redução de 50% da pobreza (2002), da redução para ¼ em relação ao índice de 1990 (2008) e da saída do Brasil do Mapa da Fome (2014), Sérgio alerta para o atual período de retrocessos com o aumento da pobreza, tendência do aumento da fome, negligência na atenção pública a populações tradicionais e vulneráveis e ataques a áreas de conservação ambiental.

Na visão do integrante da ActionAid, os avanços vieram com a valorização do salário mínimo, a ampliação do Bolsa Família e das políticas de fomento à produção de alimentos para a agricultura familiar e convivência com a seca. Os retrocessos vêm com a crise econômica, o aumento do desemprego e o ataque aos direitos sociais. “É esquizofrênico que o governo atual apresente para a ONU como fato positivo a retirada de pessoas do programa Bolsa Família”, critica.

Para Edneida Cavalcanti, pesquisadora da Fundaj, mesmo em áreas em que o Brasil tem avançado, como nos esforços para a mudança de matriz energética, é preciso acompanhar de perto os impactos dessas políticas. “O Nordeste está investindo nos parques eólicos, mas mesmo essas fontes sendo renováveis e mais limpas precisamos saber como tudo tem sido implementado e o nível de injustiças cometidas contra as comunidades tradicionais. Isso somado à falta de transparência sobre os dados de implementação desses programas”.

Descaso e má gestão

Um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) é ampliar as parcerias e os meios de implementação de políticas públicas eficazes. Edneida cita o caso das recentes inundações na Zona da Mata de Pernambuco como exemplo de má gestão pública com alto impacto negativo sobre a vida cotidiana das pessoas. “Tivemos uma única barragem construída de um total de sete previstas”, diz, apontando para “a ausência do repasse previsto, a demora na construção das obras e a incapacidade de gestão pública, inclusive para fazer a gestão de risco na perspectiva de preparar a população para o pior cenário”.

“Para que os objetivos de desenvolvimento sustentável peguem, já que eles não têm efeito vinculante, vamos precisar de bastante repercussão do ponto de vista da sociedade, divulgando-os e relacionando-os com a vida das pessoas. É preciso convergir os esforços das instituições de pesquisa pública e da sociedade civil”, analisa a pesquisadora da Fundaj.

Menos recursos para a saúde

Na área da saúde, o maior risco apontado pelo relatório das entidades civis é o do agravamento do subfinanciamento do SUS com o teto de gastos imposto para os próximos 20 anos. “O SUS está sendo esvaziado. Também vai se perdendo a percepção de direitos humanos na saúde. Já fomos destaque na política de prevenção e assistência a pessoas com HIV, mas abrimos mão de definir nossas políticas por evidência de dados e o que temos hoje é a dominação de forças conservadoras que colocam questões morais como parâmetro para a condução de políticas públicas”, critica Juliana Cesar, assessora de projetos internacionais da Gestos.

O relatório formulado pela sociedade civil aponta que até 2015 o Brasil apresentou quedas consideráveis na incidência do vírus HIV, mas a partir daquele ano, de acordo com o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (UnAIDS), o país voltou a ter um aumento da população que vive com a doença, correspondendo sozinho por mais de 40% dos novos casos na América Latina.

“O pior é que o ministro da saúde não acredita na sustentabilidade do SUS e vê a iniciativa privada como principal provedora da saúde no futuro”, lembra Juliana Cesar.

Política de gênero esvaziada

O relatório também trata do esvaziamento das políticas de gênero no Brasil: “Desde 2015, muitos dos organismos dedicados à garantia dos direitos das mulheres foram extintos ou perderam sua autonomia. Recursos destinados ao fortalecimento das mulheres na agricultura familiar e agroecologia sofreram comprometimento e o ministério antes responsável pela execução destas políticas foi extinto, sem que um novo órgão federal assumisse suas atribuições”.

Recursos Políticas Mulheres

Levantamento realizado pelas entidades indica redução de 61% no valor do orçamento federal para atendimento às mulheres em situação de risco entre 2016 e 2017 e redução de 54% para políticas de incentivo à autonomia das mulheres. E tudo isso acontece num cenário de violência crescente contra as mulheres e as populações trans: o Brasil ocupa a quinta colocação mundial em número de feminicídios e é o país que mais mata mulheres trans e travestis.

Também vamos muito mal quando o assunto é representação feminina no Poder Legislativo, ocupando apenas a posição número 153 no ranking mundial, com 10,7% das cadeiras na Câmara dos Deputados e 14,8% no Senado Federal. “No momento em que nós deveríamos estar debatendo mais intensamente o tema é justamente quando as questões de gênero e da violência contra as mulheres estão sendo retiradas das discussões nas salas de aula das escolas”, critica Juliana César.

Mulheres no Poder Legislativo

Suape, a Belo Monte esquecida

Menina dos olhos do Governo de Pernambuco a partir da gestão Eduardo Campos (2007-2014), o Complexo Industrial Portuário de Suape, com R$ 40 bilhões de investimentos e mais de 100 indústrias instaladas, foi escolhido para estudo de caso pelas entidades da sociedade civil questionadoras do modelo predador de desenvolvimento econômico que ganhou novo fôlego no Brasil na última década, com seus altos investimentos em marketing sócio-ambiental corporativo.

O documento vê uma série de impactos negativos ao meio ambiente e à vida das comunidades nativas da região, sempre minimizados na mídia regional pelas promessas de geração de emprego e renda. Acontece que o boom das obras dos estaleiros e da refinaria Abreu e Lima passou e, segundo o relatório, cerca de 40 mil pessoas perderam seus empregos no Complexo nos últimos anos, boa parte formada por trabalhadores de outros estados do Brasil. O desemprego em massa repercutiu no aumento da violência, do tráfico de drogas e da prostituição.

A assessora jurídica do Fórum Suape – que congrega uma dezena de entidades civis ativas na proteção das populações afetadas pelo Complexo –, Luísa Duque, argumenta que a escolha de Suape para estudo de caso é emblemática na medida em que expõe um modelo de desenvolvimento industrial que simplesmente não internalizou os principais Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) consensuados por quase duas centenas de países.

Relatório aponta impacto negativo do Compexo de Suape sobre as comunidades pesqueiras da região Foto: Méle Dornelas

Relatório aponta impacto negativo do Compexo de Suape sobre as comunidades pesqueiras da região Foto: Méle Dornelas

Ataques de milícias

De acordo com o Fórum foram pelo menos 1.016 as ações de expulsões arbitrárias a atingir as populações nativas do entorno do Complexo com o registro de mais de 100 casos de ataques intimidatórios de milícias contra os moradores, por meio de destruição de lavouras, roubo de materiais e ameaças diretas. Os despejos também se tornaram frequentes, sem indenizações ou com indenizações irrisórias e sem reassentamentos adequados que respeitassem o modo de vida das populações realocadas.

“A instalação do Complexo acarretou drásticas transformações no ambiente, que repercutiram e continuam a repercutir gravemente sobre os modos de vida tradicionais das comunidades que viviam e vivem na região, afetando os seus direitos à moradia, à alimentação, à água, à saúde, ao trabalho, à locomoção, e a um meio ecologicamente equilibrado. Não por acaso a instalação do empreendimento recaiu sobre uma região tradicionalmente habitada por comunidades negras e com menor acesso à educação formal, evidenciando um racismo institucional por parte do Estado, que compreende essas comunidades como facilmente descartáveis de seus territórios”, alerta o documento.

O Complexo de Suape (empresa de capital misto administrada pelo Governo do Estado) ocupa uma área de 13,5 mil hectares. Segundo o Governo, 6,8 mil famílias foram atingidas territorialmente pelas obras, mas o Fórum Suape considera esse número subestimado porque ele foi divulgado em 2009 quando a maior parte das famílias já havia sido deslocada de suas terras.

Complexo de violações

“Suape é um complexo de violações. Mais de 900 hectares foram devastados comprometendo pontos de pesca para a implementação dos estaleiros, repercutindo na queda de 50% no estoque pesqueiro local”, argumenta Luísa.

Para a assessora jurídica do Fórum, o Complexo de Suape viola os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) que preveem o fim da pobreza, a garantia da soberania alimentar e a promoção de uma vida e uma industrialização saudáveis porque, na realidade, empobreceu as populações nativas, comprometendo sua produção econômica; poluiu a costa e os manguezais; e promoveu e promove um modelo de desenvolvimento ultrapassado.

“Nosso grande desafio é furar a blindagem que o Governo do Estado promove há anos em Suape”, admite Luísa Duque.

AUTOR
Foto Laércio Portela
Laércio Portela

Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República