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“Tecendo o futuro com as próprias mãos”

Como o trabalho com artesanato e o espírito empreendedor tem o poder de gerar renda e transformar a vida de mulheres, seja no interior do Ceará ou na Região Metropolitana do Recife

O que tem em comum entre uma bolsa de palha de carnaúba trançada em Cabreiro de Cima, distrito de Aracati (CE), e uma bolsa de crochê produzida na Casa de Maria, em Jaboatão dos Guararapes (PE)? Além de belíssimas, as duas peças são exemplos de como o trabalho manual, aliado a uma boa dose de empreendedorismo, vem gerando renda e empoderando dezenas de mulheres brasileiras.

São duas realidades bem diferentes uma da outra, mas, ao serem mostradas e colocadas lado a lado, elas se somam e ajudam a pintar um quadro mais completo da potência transformadora do artesanato no Brasil. Estamos falando de Aracati e seu entorno e da Casa de Maria, mas poderia ser de qualquer outro lugar do país.

Vamos começar a história por Cabreiro de Cima, ou melhor, por Natália Sena Costa. Nat, como é mais conhecida, tem trinta anos e trabalha com palha há sete, incentivada pela tia Socorro Saboia, 62 anos, que, por sua vez, aprendeu o ofício com a mãe. Como muitas das meninas da região, começou fazendo descanso de panela e depois passou para bolsas e cestos que são peças mais elaboradas. Tudo feito com palha de carnaúba, palmeira-símbolo do Ceará e principal matéria-prima para o artesanato da região.

rtesanato como meio de mudança de vida das mulheres

Nat, a sócia Vanessa e tia Socorro. Foto: Inês Campelo/MZ

O que diferencia Nat da maioria das mulheres que fazem trabalho com palha é a visão empreendedora. Antes do artesanato, ela já era ativa no Instagram, com uma conta sobre autoaceitação de pessoas com deficiência. Aqui cabe uma explicação: Natália nasceu com uma malformação na coluna vertebral chamada de escoliose. Em 2018, ela levou a experiência digital para o artesanato e abriu uma loja virtual. “Pesquiso tudo no Instagram. Sou muito curiosa. Aprendi sobre tráfego pago e estou usando. As vendas cresceram muito.”

Nat é uma influenciadora do bem. Somando seu perfil pessoal (@costa_natt) e o profissional (@natartesanato) já está batendo os 100 mil seguidores. Mas ela não ficou apenas no “virtual”. “Com a paixão pelo artesanato e a vontade de empreender, decidi reunir as mulheres artesãs da minha família e criar a empresa Nat Art Artesanato em novembro de 2018. Minha primeira venda em atacado foi no mês seguinte”.

Natália começou seu negócio muito mais na intuição. “Comecei sem plano nenhum e ao longo dos meses as vendas foram aumentando”. Mas ela viu que só intuição, talento e boa vontade não seriam suficientes. Foi aí que resolveu investir em formação profissional. Fez vários cursos, entre eles o Empretec, uma metodologia criada pela ONU, oferecida pelo Sebrae no Brasil, com o objetivo de desenvolver o comportamento empreendedor e identificar novas oportunidades de negócio. Deu certo. “Já vendi para todos os estados do Brasil”.

Tudo isso fez de Nat um exemplo. “Meu trabalho incentiva outras mulheres com deficiência. Mas ainda há preconceito: por ser do interior, por ser deficiente. Sempre me perguntam se tenho capacidade de entregar.”

Vanessa da Silva Barbosa, 18 anos, é parceira de Nat nas vendas e produção. Desde os 12, trabalha com customização de palha. As duas formam uma dupla inseparável. Vanessa vê no artesanato uma forma de garantir renda e manter os laços com sua história.

Laços de palha e amizade

Artesanato como meio de mudança de vida das mulheres

Retrato das tardes de trançar palha e pater papo na casa de Santinha. Foto: Inês Campelo/MZ

Natália é o que se pode chamar de “caso de sucesso”. Mas, como ela, existem milhares de mulheres que são responsáveis pela região do baixo Jaguaribe ser reconhecida pela excelência do artesanato feito com palha de carnaúba, técnica passada de geração em geração, com beleza, saber e resistência.

Na comunidade de Tabuleiro do Luna, em Itaiçaba (CE), por exemplo, a força da tradição se entrelaça com os fios da amizade. Francisca da Silva dos Santos, 75 anos, é uma referência pela qualidade do seu trabalho, bom humor e espírito agregador. Junto com outras nove mulheres, Santinha, como é conhecida, forma um grupo que produz de maneira compartilhada: cada uma é especialista em um ponto ou etapa. “Somos amigas desde os anos 1970.” Estão no grupo Rita Araújo (81), Ocirema Rodrigues (60), Maria de Lurdes (65) e seu marido Aluísio de Lima (74, que costura as esteiras), e Maria do Carmo Araújo (57), filha de dona Rita.

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O litoral leste do Ceará e o Baixo Jaguaribe — que inclui municípios como Aracati, Itaiçaba, Palhano, entre outros — é marcado por paisagens de carnaubais, mangues e dunas, com comunidades rurais e pesqueiras espalhadas entre vilarejos e zonas urbanas. Nessas áreas, o artesanato com palha de carnaúba é uma prática tradicional, especialmente entre as mulheres, unindo saberes transmitidos por gerações ao uso sustentável dos recursos naturais, e representando uma importante fonte de identidade e renda para a população local.

Francisca da Silva dos Santos, Santinha. Artesã de palha de carnaúba

Santinha e as tranças de carnaúda. Foto: Inês Campelo/MZ

Santinha aprendeu a arte com a mãe e a avó. “As coisas que elas faziam eram mais simples… chapéus grosseiros. A inovação chegou e melhoramos o trabalho.” Ela nunca trabalhou em uma empresa. Construiu sua casa e criou os 12 filhos com a renda da palha. “Só um ainda trabalha com isso, cortando palha.” E lamenta: está cada vez mais difícil conseguir matéria-prima.

Da pintura ao banquinho de bode

Para que a bolsa, aquela que falamos no início da reportagem, faça sucesso no Instagram e nas lojas especializadas, existe antes uma cadeia de produção.

Árvores de carnaúba

Carnaubal. Foto: Inês Campelo/MZ

Pé de carnaúba

Pé de carnaúba. Foto: Inês Campelo/MZ

Artesanato como meio de mudança de vida das mulheres

Processo de secagem das palhas. Foto: Inês Campelo/MZ

Processo de secagem das palhas. Foto: Inês Campelo/MZ

Armazenamento de palha na residência da artesã Santinha. Foto: Inês Campelo/MZ

Processo de tingemento da palha. Foto: Inês Campelo/MZ

Produtos feitos com palha de carnaúba. Foto: Inês Campelo/MZ

Como a palha vira ouro

Matéria-prima:

  • Utiliza-se a folha da carnaúba, conhecida como “olho da carnaúba”.

Secagem:

  • A folha é colhida e passa por um processo de secagem ao sol que dura até 4 dias.

Riscagem:

  • Após a secagem, a artesã usa uma pequena faca para “riscar” o olho da carnaúba.
  • Nesse processo, separa-se o “lombo” da palha, parte que dá volume e estrutura à peça.

Armazenamento:

  • A palha é guardada em local arejado.

Preparação para uso:

  • Antes de ser trabalhada, a palha é umedecida com um pano para ficar mais maleável.

Confecção da peça:

  • A artesã inicia a criação usando pontos abertos e fechados.
  • Quando necessário, utiliza-se uma forma de madeira como molde para garantir o formato desejado.

Outro trabalho importante é a pintura das palhas. Em Itaiçaba, apenas três mulheres fazem esse trabalho de forma mais sistemática. Uma delas é Maria Lúcia Barbosa, 66 anos, que aprendeu a pintar palha observando a vizinha pela cerca no seu quintal. “O pacote de corante custa R$ 7 e pinta 75 olhos de palha. Preto e verde musgo são os que mais saem.”

Maria Lúcia Barbosa artesã

Maria Lúcia tingiu a palha para que a reportagem conhecesse o processo. Foto: Inês Campelo/MZ

Ela vende cada olho de palha pintado por R$ 3. O preço fica por R$ 2,50, se a palha for da cliente. Pinta cerca de 150 olhos por mês. “Trabalho quieta, mas firme. Tenho um casal de filhos.”

Já Iracema Maria de Lima, 51 anos, brinca dizendo que trabalha com palha desde “dentro da barriga da mãe”. Começou com camisa de litro, peça que veste as garrafas decorando-as, passou 15 anos em Petrópolis (RJ), mas voltou para casa. Hoje, faz roupas de palha e banquinhos em forma de bode e jumento. Peças únicas. Mora com a mãe, o marido e o filho de 14 anos. “É difícil fazer e nem sempre as pessoas dão valor.” Venceu três vezes o tradicional concurso de artesanato da festa da Pescaria da cidade, no Sete de Setembro.

Iracema Maria de Lima, artesã

Iracema e sua mãe, artesãs. Crédito: Inês Campelo/MZ

Esvaziamento de uma tradição

Viveiro de camarão no distrito de Cabreiro de Cima, Aracati. Foto: Inês Campelo/MZ

A palha de carnaúba não é só matéria-prima. É símbolo de pertencimento e sobrevivência. Seu ciclo envolve cuidado com a natureza, técnica apurada e um olhar coletivo. É uma economia de afeto, saber e resistência, exatamente o oposto da carcinicultura, atividade econômica que se expande velozmente na região. Neste contexto, o aumento de áreas para criação de camarões tem provocado impactos negativos cada vez maiores na cadeia produtiva do artesanato local.

A principal preocupação, a mais visível e mensurável também, é a destruição de áreas naturais onde crescem as carnaubeiras, convertidas em fazendas de camarão. Como essas plantações exigem grandes extensões de terra e água, há uma redução nas áreas disponíveis para o cultivo e coleta da palha, essencial para a produção artesanal. Além disso, alterações ambientais provocadas pela atividade, como a poluição da água e perda de biodiversidade, também comprometem a qualidade da matéria-prima.

Outro efeito significativo da carcinicultura é a mudança na dinâmica econômica local. Com a promessa de empregos e lucros rápidos, a criação de camarões atrai investimentos e mão de obra que antes estavam ligados ao artesanato. Isso provoca um esvaziamento do setor artesanal, reduzindo a produção de peças em palha de carnaúba e enfraquecendo a cultura local. A longo prazo, esses impactos colocam em risco tanto o sustento de artesãos quanto a preservação desse saber tradicional.

Artesanato como meio de mudança de vida das mulheres

Cerzina mostrando o trançado das bolsas de carnaúba. Crédito: Inês Campelo/MZ

Cerzina Ferreira da Silva, presidente da Associação das Mulheres Artesãs, que já teve mais de 200 integrantes, hoje conta com apenas cerca de 60 participantes ativos, fala das dificuldades que se acumulam: a redução das áreas de carnaubeira, a perda de qualidade da água e o desinteresse da juventude.

“De janeiro até maio, junho, por conta das chuvas, as famílias artesãs sofrem muito. As palhas mofam e o valor cai”, explica Cerzina. “É mais fácil um jovem ser vigia de um viveiro de camarão do que ir trabalhar com artesanato.” Além dos desafios materiais, há um sistema de exclusão mais profundo. “O sistema que está por trás disso tudo não deixa a gente crescer”.

“Aqui era cheio de carnaubeira. No caminho para Aracati era tudo carnaúba. Agora é só viveiro de camarão. Esculhambou o rio, esculhambou as carnaúbas, esculhambou tudo”, resume Dona Raimunda Ferreira, mãe de Cerzina.

O ex-secretário de agricultura Raimundo Nonato, 56 anos, conhece de perto esse cenário. Ele pagou os estudos com a renda do artesanato feito com a mãe. Formado em contabilidade e administração, teme que o saber que moldou sua trajetória desapareça. “Daqui uns dez anos, tenho medo que o artesanato com palha de Itaiçaba se acabe.”


OURO FEMININO

Artesanato como meio de mudança de vida das mulheres

Aula de macramê na Casa de Maria. Crédito: Inês Campelo/MZ

Lembra a história de Santinha e suas amigas criando juntas peças de palha de carnaúba lá em Itaiçaba? Pois bem, em Pernambuco, mais especificamente em Jaboatão dos Guararapes, a lógica é a mesma. Aqui os nós do empreendedorismo já foram desatados, e, como nos pontos de macramê e de crochê, a Casa de Maria junta sempre o criar e empreender na mesma peça. A frase na entrada da sede do projeto resume o espírito do lugar: “Tecendo o futuro com as próprias mãos”.

Primeiro, é preciso entender o que é o projeto. A Casa de Maria nasceu, em 2017, a partir do compartilhamento de conhecimento de crochê entre as mães que aguardavam seus filhos atendidos pelo Ária Social. A ideia foi reconhecida e abraçada por Cecília Brennand, presidenta do Ária, que de imediato promoveu a profissionalização de artesãs, gerando renda através do empreendedorismo social. O nome vem da junção do “M” de mãe com o “aria” do projeto inicial, resultando em Maria.

Atualmente são atendidas 140 mulheres, divididas em cinco oficinas: macramê, crochê, amigurumi, tecelagem de jornal e costura. E não é só isso. A busca pela excelência é constante, está presente em todas as etapas da formação e na produção das peças para as coleções que são comercializadas nas lojas do projeto. Já passaram pela Casa designers renomados como Sérgio Matos e Luly Vianna, criando coleções com várias técnicas.

Inês fazendo o protótipo de uma bolsa. Foto: Inês Campelo/MZ

Maria Inês Costa Silva, é uma das responsáveis pela produção de bolsas em material sintético na Casa de Maria. “Eu tenho a responsabilidade de criar ou de tirar do desenho as peças, a gente recebe visitas de designers, pessoas que criam peças em desenhos, e eu sou responsável por tirar esse desenho do papel”, explica.

Ela participa do projeto desde 2016, quando acompanhava uma prima. “Eu aprendi a fazer crochê e passei a ensinar o que eu aprendi. Depois, Sérgio Matos chegou e trouxe também uma outra técnica, que a gente batizou de Sérgio Matos, porque a gente não sabe exatamente o nome”.

Inês afirma, com convicção, que a entrada no projeto transformou sua vida. “Mudou muito. Antes eu trabalhava como operadora de telemarketing. Gosto de estar aqui por conta da variedade de coisas que a gente consegue fazer. Não fico presa apenas a uma coisa. O tempo todo chega gente com ideias novas, com produtos novos.”

Gilliane da Silva Torres Lins, que está no projeto há sete anos, desde que sua filha começou a fazer aulas de balé, violão e dança contemporânea. “Comecei na Casa de Maria fazendo os cursos. Já fiz de tecelagem. Depois, fiz de macramê. E, agora, faço parte da equipe de produção de macramê da Casa. Faço a bolsa Freda que é toda em macramê com fio sintético. É uma bolsa que leva uns quinze dias para ficar pronta”, diz orgulhosa.

Geliane da Silva artesã da Casa de Maria

Gilliane e a bolsa Freda. Na Casa de Maria o nome de todas as peças homenageiam mulheres. Crédito: Inês Campelo/MZ

Sempre tem novidade. “É muito bom o que acontece aqui, porque assim, além da gente aprender sempre uma coisa diferente, tem a socialização com as outras mães, a gente conversa bastante, aí uma vai ensinando pra outra, é um momento de descontração, de aprendizado, é um convívio muito bom”, complementa.

Tatiana Lúcia da Silva aluna de crochê da Casa de Maria

Tatiana mostra suas ferramentas de trabalho. Foto: Inês Campelo/MZ

A transformação é profunda e, na maioria das vezes, rápida. Se Gilliane está há sete anos, Tatiana Lúcia da Silva, por exemplo, entrou no ano passado. “Minha filha tem 10 anos, faz balé, teatro e toca flauta. E, eu aprendi crochê do zero. Nunca peguei em uma agulha e hoje faço vários modelos de Amigurumi. Faço as peças da Casa de Maria e ainda faço peças para vender na lojinha que eu tenho em casa. Depois que eu vim pra cá, tudo melhorou muito”, comemora.

A história de Jaísas Lima reflete o caminho que a maioria das mães podem percorrer dentro do Ária. Entrou como aluna e hoje é professora.“Minha vida mudou depois que eu entrei aqui. Passei a ser reconhecida. A gente aprende coisas novas todo dia. Conseguimos chegar onde a gente quer, no nosso objetivo. Sempre digo isso para minhas alunas: não quero ouvir a frase, eu não posso. Ah, eu não consigo. Quando a gente quer, a gente pode e a gente consegue”.

Mesa redonda de aula de crochê na Casa de Maria

O espírito de criação conjunta é registrado na aula de crochê de Jaísas. Foto: Inês Campelo/MZ

A reportagem decidiu publicar foto de cada uma das mulheres que dedicou parte do seu dia contando um pouco da sua história.
AUTORES
Foto Inês Campelo
Inês Campelo

Formada em Jornalismo pela Unicap. Apaixonada pela fotografia, campo que atua profissionalmente desde 1999. Atualmente é freelancer e editora de imagens do Marco Zero.

Foto Sérgio Miguel Buarque
Sérgio Miguel Buarque

Sérgio Miguel Buarque é Coordenador Executivo da Marco Zero Conteúdo. Formado em jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco, trabalhou no Diario de Pernambuco entre 1998 e 2014. Começou a carreira como repórter da editoria de Esportes onde, em 2002, passou a ser editor-assistente. Ocupou ainda os cargos de editor-executivo (2007 a 2014) e de editor de Política (2004 a 2007). Em 2011, concluiu o curso Master em Jornalismo Digital pelo Instituto Internacional de Ciências Sociais.