Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52
Vilma Santos na Casa 02 do Acervo da Laje - Gabrielle Guido/Entre Becos 2023
Por Entre Becos*
Com criatividade e estratégias de resistência, agentes culturais de bairros populares de Salvador estão desenvolvendo projetos para preservar a memória e incentivar a produção artística, cultural e educacional dessas regiões, driblando as dificuldades de acesso à políticas culturais para elas.
Na região da Cidade Baixa, no bairro do São João do Cabrito, Subúrbio Ferroviário de Salvador, a Associação Cultural Acervo da Laje (Acal) é uma dessas iniciativas. Fundado pelo pedagogo José Eduardo Ferreira e pela professora Vilma Santos, o pequeno museu foi construído na parte superior das duas residências do casal.
“Nós temos esse local como um espaço de convivência, abrimos para mostrar a memória do nosso lugar, que produz as artes e conhecimentos”, afirma Vilma. As obras e coleções do Acervo da Laje são frutos de doações, aquisições, como também obras que foram descartadas por outras pessoas.
Com a atuação nos 22 bairros que compõem o Subúrbio Ferroviário desde a adolescência, o casal queria mostrar uma outra perspectiva sobre o território, que costuma ser reconhecido sempre como violento. A questão se tornou tema da pesquisa de mestrado de Eduardo no doutorado, conta Vilma.
“O professor disse que a violência estava em todo o lugar. Mas, qual seria o impacto da beleza no subúrbio? No medo não conseguimos valorizar o nosso lugar”, afirma. A partir desses estudos, o Acervo da Laje começou a tomar forma.
Surgiu o projeto de fotografar mulheres que tiveram suas vidas marcadas ao perderem seus filhos para a violência policial. “Começamos a fotografar as mulheres negras e foi difícil. Quando mães perdem seus filhos, elas perdem a vontade de viver, de se arrumar. Incentivamos essas mulheres a tirar fotos, mas respeitamos os dias em que elas não estavam prontas”, conta a professora.
Assim nasceu a primeira exposição “Cadê a bonita?”, do fotógrafo Marcos Luminati, que capturou a beleza de mães, avós e professoras atuantes em movimentos sociais. Essa intervenção está disponível no acervo até hoje.
Para valorizar esses trabalhos, o casal passou a realizar um processo de curadoria das obras expostas no Acervo. “Agora temos que ser curadores para abrir espaço para essas artes, mostrar os artistas do Subúrbio à sociedade para que sejam respeitados”, enfatiza Vilma.
Nessa abertura para novos talentos está Ivana Magalhães, artista plástica e pedagoga de formação. Moradora do bairro de Itacaranha, no Subúrbio Ferroviário, ela desenvolve grafismos autorais africanos e indígenas, sobretudo com as contribuições femininas, entre outras produções.
Ela conta que conheceu a história do acervo em um programa de televisão local. Até então, ela revela que produzia muito e não vendia suas obras diretamente para o cliente, mas para os lojistas, a preços baixos. Quando encontrou o museu, ofereceu oficinas para as crianças do bairro. Agora, diz ter encontrado novas possibilidades para refletir sobre seu trabalho com arte.
“No Acervo da Laje, José Eduardo trabalhava a questão de tomar posse da autoria de si. Disse algo que me impactou: ‘Tomar posse da sua própria autoria causa vertigem’, porque é preciso a gente se entender e se perceber como produtor de arte. No acervo, me senti valorizada enquanto artista, porque eles dão visibilidade àqueles que não têm oportunidade no campo das artes”, afirma.
Em 2016 e 2018, o Acervo da Laje realizou duas edições do projeto “Ocupa Lajes” onde Ivana Magalhães participou com suas produções. “Em 2018, ocupamos museus da cidade, como o Solar de Brotas, Teatro da Gamboa e o Teatro de Plataforma. Eu já me sentia segura com as minhas produções e muito mais fortalecida da minha percepção pessoal como artista”, ressalta Ivana.
Segundo Vilma, as diversas atividades oferecidas no Acervo da Laje são mantidas por meio das contribuições dos visitantes e de instituições que contratam o Acervo para fazer curadoria, como outros museus. “Quando recebemos um dinheiro, primeiramente, ajudamos os artistas, a comunidade. Não temos nenhum tipo de financiamento”.
Para o produtor cultural e conselheiro de cultura do município, Romário Almeida, ainda há uma percepção equivocada de que a produção cultural só é realizada no centro da cidade de Salvador.
“Quando a gente fala em espaços culturais físicos, passa a impressão de que só existe cultura produzida no centro da cidade. Nas periferias existem produções sendo feitas, contrariando a ideia de que precisa de espaço para existir. Não porque não necessitam de espaços para que aconteçam, mas que elas acontecem até como uma forma de resistir e de existir apesar dessas ausências”.
Ouça o bate papo com Romário Almeida
Localizado na região da Cidade Alta, no bairro de Cajazeiras V, periferia de Salvador, a Juventude Ativista de Cajazeiras (Jaca) tem oferecido diversas atividades artísticas e culturais para as juventudes do local. Além da proposta de geração de emprego e renda, diante das poucas possibilidades de acesso a esses direitos.
Fundada em 2004 e atualmente conduzida por Cairo Costa, Marivaldo Gomes, Luar Vieira, Rilton Junior, Jagné L, a instituição promove atividades como o Sarau de Poesia, a Metareciclagem, Capoeira Angola, além de oficinas.
O Sarau de Poesia é um espaço que se tornou conhecido e consolidado para apresentação das linguagens artísticas dos jovens. “A juventude frequenta, curte, cobra e acontece por causa deles. Construímos esse espaço privilegiado onde eles se sentem à vontade para mostrar seus trabalhos”, conta Marivaldo Gomes, cofundador do Jaca.
Já Cairo Costa, também cofundador da associação, ressalta que o sarau existe porque atendeu a uma necessidade dos jovens. “O Sarau só deu certo porque atuou naquilo que o estado não conseguiu garantir, um espaço onde os jovens possam exercer a negritude, a juventude. Cajazeiras tem grandes áreas verdes, mas que são ocupadas por grandes empreendimentos. Espaços de lazer e interação comunitária são escassos. O jovem está ansioso para falar, porque sempre mandam ele se calar em casa, na escola, em todo lugar. Aqui a gente diz ‘fale’ o microfone estará aberto”.
Lissandra Ramos tem acompanhado as ações do Jaca e tem percebido como o sarau tem possibilitado mudanças no comportamento das juventudes. “O Sarau do Jaca é um palco de talentos já conhecidos. Vi muitos estudantes completamente tímidos se encorajarem a recitar e até mesmo começaram a escrever poesia depois do contato com o sarau. Passei a utilizar a lógica do sarau e as produções com as quais tinha contato como recurso didático”.
O acesso aos recursos para manter a realização constante das atividades culturais e artísticas continua a ser um desafio para atores culturais que atuam nas periferias da cidade. Para algumas organizações, a necessidade de ter um CNPJ é um desafio, como explica Cairo, do Jaca.
“Boa parte dos editais que podem garantir de maneira contínua emprego e renda para os associados exigem o CNPJ de três anos de existência. Como uma associação vai se manter por três anos sem recursos? Temos CNPJ há cerca de 9 anos, mas os primeiros recursos chegaram recentemente e só conseguimos porque somos teimosos e insistentes”.
A Metareciclagem, reciclagem de resíduos tecnológicos produzidos no bairro de Cajazeiras, é uma das ações realizadas pelo Jaca que contribui para a manutenção do espaço e das atividades. Computador antigo, impressora, carregador velho são objetos descartados pelos moradores e consertados para serem usados novamente.
“Ao receber um computador, o HD pode estar ruim, a placa boa, fazemos um Frankenstein e colocamos novamente na cadeia produtiva, a preço baixo para a comunidade. Assim, estimulamos ainda o conhecimento digital”, explica Cairo.
Para a professora Lissandra Ramos, a ação da Metareciclagem possibilita o acesso à tecnologia para a população. “O projeto promove acesso à tecnologia e viabiliza manutenção e reaproveitamento de computadores para a população de baixa renda. Imagina o que é um estudante ter a possibilidade de conseguir um computador a baixo custo para estudar?!”.
Intervenções visuais em bairros populares da cidade de Salvador foi a forma usada pelo coletivo Musas (Museu de Street Art de Salvador) para proporcionar experiências artísticas aos moradores desses locais.
Antes de oficializarem o Musas, os grafiteiros Jovivaldo Santos Silva, mais conhecido como Bigod, Marcos Souza Carmo, mais conhecido como Prisk, e Júlio Costa realizavam mutirões de grafite nos bairros e comunidades da região, como Palafita da Massaranduba, Cidade de Plástico, atualmente conhecida como Comunidade Zeferina, entre outras.
Em 2012, o grupo se consolidou e criou uma sede na comunidade da Gamboa, onde além do grafite realizavam diferentes atividades culturais, como o Cinema do Musas, exposições fotográficas e a construção de uma biblioteca pública. As intervenções artísticas tinham o objetivo de repensar a estética das ruas e muros da comunidade.
“A gente fazia massivamente grafite na cidade toda e os políticos vinham e apagavam tudo. Nas comunidades, as moradoras não permitiam que essas artes fossem apagadas. O dono do muro, o pedreiro e o menino se reconheciam no grafite. As homenagens para quem morria não eram cobertas”, conta Júlio Costa.
Morador da Gamboa, o gerente operacional Leandro Santos acredita que as obras realizadas pelo Musas mudaram a autoestima de quem vive no bairro. “Minha percepção é que a partir da arte tudo ganha um novo contexto. Existia uma comunidade antes e hoje existe outra totalmente diferente, depois que o Musas e seu coletivo de grafiteiros acessou a nossa localidade. O grafite nos tornou visível perante a uma sociedade que só nos enxergava com um olhar enviesado.”
Para Leandro, as pinturas influenciam na preservação e manutenção do espaço. “Pense comigo, antes existia uma parede, um espaço sempre despercebido e hoje foi ressignificado e transformado em tela de arte a céu aberto. Logo, esse espaço passa a ser prestigiado e aqueles que habitam esses locais, por sua vez, se sentem homenageados.”
O Musas mantém suas atividades por meio da prestação de serviço de pintura. O grupo já acessou editais públicos, mas atuar como uma empresa que reverte sua renda para ações sociais foi o caminho viável, explica Júlio. “O Musas vai realmente se firmar como uma produtora. Quanto mais profissional a gente tiver, mais tinta vai sobrar para nossos projetos. Quanto mais ganhando a grana a gente tiver, mais vai poder movimentar outras pessoas. Então isso vai ampliando a cultura na cidade. É a lógica da economia criativa mesmo.”
Procurada para falar sobre os investimentos e projetos desenvolvidos nas regiões citadas, a Secretaria de Cultura e Turismo de Salvador não se manifestou até o fechamento desta reportagem.
* Reportagem de Brenda Gomes, Bruna Rocha, Gabrielle Guido, Rosana Silva
Edição de Cleber Arruda e Rosana Silva
Especial realizado com o apoio do Instituto Fala
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.