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Foto: Pixabay
Nos seis primeiros meses de 2020, a Região Metropolitana do Recife teve uma média de cinco tiroteios por dia. É o que aponta o levantamento da plataforma Fogo Cruzado. que registrou 869 tiroteios e disparos de arma de fogo no período. Em comparação com o primeiros semestre de 2019 (quando foram registrados 717 disparos e/ou tiroteios), houve aumento de 21% em 2020, mesmo com a pandemia.
De acordo com o Fogo Cruzado, desde que iniciou o monitoramento no estado, em abril de 2018, este foi o semestre mais violento. “Dos 869 tiroteios registrados neste semestre, em 544 dos casos (63%) houve mortos, em 322 (37%) houve feridos e em apenas 52 (6%) deles não houve vítimas. Comparado aos 6 primeiros meses de 2019, quando houve 511 mortos e 254 feridos, houve um aumento de 22% no número total de baleados (932)”, detalha o relatório.
A análise do projeto também destacou que houve diminuição de 25% da participação de agentes de segurança em casos de violência armada, com registro de 52 casos em 2020 – em 2019 foram 69.
O levantamento contabilizou 29 mulheres mortas por armas de fogo no primeiro semestre de 2020. Na comparação com o mesmo período do ano passado, o dado representa uma queda de 2%. No entanto, para as mulheres, a aparente estabilidade dos números oculta uma possível subnotificação, como se verá mais adiante.
Do total de 869 tiroteios ou disparos de arma de fogo registrados no grande Recife este ano, 932 pessoas foram baleadas – destas, 60 eram mulheres: 29 delas morreram e 31 ficaram feridas.No ano passado, foram 28 mulheres foram mortas e 33 feridas.
A necessidade de isolamento social e permanência dentro de casa devido à pandemia do coronavírus não alterou o cenário de violência e vulnerabilidade ao qual as mulheres estão submetidas. Apesar do dado não transparecer uma mudança concreta, ativistas e analistas dos dados avaliam o contexto de subnotificação e alternativas para analisar a condição das mulheres durante a pandemia.
Segundo o relatório do Fogo Cruzado, 15 das mulheres baleadas foram atingidas dentro de casa. Apesar de, nos primeiros seis meses do ano passado, terem sido registrados 17 casos – o que representa uma queda de 12% -, nove mulheres morreram devido aos ferimentos. A relação entre número de mulheres baleadas e mortas é importante para observar como a característica da violência contra as mulheres é letal e não dá trégua.
Um dos casos destacadas pela plataforma é o triplo homicídio que aconteceu em 10 de abril, já durante a quarentena em Pernambuco: “Randy Maria dos Santos, de 36 anos, a filha Randy Carla dos Santos, de 19 anos e uma amiga de 33 anos foram baleadas quando estavam em casa, no Loteamento Cidade Criança, conhecido como Favelinha, em Itapissuma. Randy Carla foi socorrida, mas morreu no dia seguinte no Hospital da Restauração. A mãe dela e a amiga morreram na hora”.
O ciclo de violência contra a mulher, quando não encerrado com a denúncia, segue a tendência de acabar em feminicídio. Apesar de não ser uma categoria no levantamento, Edna Jatobá, coordenadora do Gajop (Gabinete Assessoria Jurídica Organizações Populares) e porta-voz do Fogo Cruzado em Pernambuco, explica que é um aspecto que precisa e pode ser observado a partir dos dados mobilizados por iniciativas da sociedade civil.
A comparação possível com os dados oficias aponta que a sociedade civil contabiliza mais feminicídios do que as estatísticas oficias do governo. “No nosso entender existe ainda um número residual de feminicídios que não foram tratados como tal. Eu nem digo que isso é por vontade política, estou falando da necessidade de treinamento de profissionais para entender o que se fala”, afirma.
A contabilização dos dados do levantamento acontece a partir de notícias de crimes contra as mulheres, mês a mês. “Os dados oficiais de feminicídio demoram muito a serem divulgados. Antes tínhamos divulgação do feminicídio por mês, assim como os Crimes Violentos Letais Intencionais. O que a gente observou é que, no conjunto dos números que dá para comparar, a gente contabiliza mais feminicídios que o Estado”.
A tipificação do feminicídio foi reconhecida apenas em 2015. Desde então, secretarias de seguranças ainda estão implantando nos estados os métodos de registro e formação de agentes para tal.
“Isso envolve treinamento dos agentes, sobretudo da Polícia civil, perícia. Envolve também a discricionariedade dos agentes. O feminicídio a gente não espera o resultado das investigações, da Justiça, a gente observa as características iniciais do crime. A polícia observa as características iniciais e aquilo que os policiais entendem é que é reportado para a estatística oficial. Pode acontecer de o crime ser um feminicídio, mas a polícia interpretar como lesão corporal seguida de morte ou como homicídio culposo, onde não há intenção explícita de matar”, explica.
Segundo Edna, os números do levantamento têm também o objetivo de colocar em evidência o problema da produção de dados confiáveis sobre violência contra a mulher e sobre feminicídio. “A sociedade civil insiste que é preciso melhorar coleta de dados e insistir para melhorar essa politica publica, como isso é percebido”, defende.
Além do Fogo Cruzado, o Gajop, instituição da qual é coordenadora, também realiza um monitoramento de índices de violência pela Rede de Observatórios de Segurança, formada por organizações dos estados de Pernambuco, Ceará, Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo. O relatório anual (com dados de junho de 2019 a maio de 2020) da iniciativa contabilizou também números de violência contra a mulher e feminicídio nos estados citados.
No levantamento, São Paulo foi o estado mais casos identificados como feminicídios (175), seguido de Pernambuco (90) e Bahia (75). O dado chama atenção para um problema que é anterior à pandemia e não diminuiu. Pelo contrário, pode ter aumentado sem que haja possibilidade de notificação.
O município com mais casos de violência armada contra a mulher foi o Cabo de Santo Agostinho, com nove disparos contabilizados. Os bairros onde houve mais mulheres baleadas foram Centro e Ponte dos Carvalhos, com três mulheres baleadas em cada. Chama a atenção a natureza dos crimes e o contexto local.
Nivete Azevedo, professora e coordenadora da organização não-governamental Centro das Mulheres do Cabo (CMC), explica que os bairros com mais disparos são conhecidos pela contexto de violência e vulnerabilidade de mulheres. Ponte dos Carvalhos é o maior distrito do Cabo e é no limite dele que está a Delegacia da Mulher da cidade. “A gente não vê isso como um fato inibidor, por exemplo, da violência”, observa.
Outro dado importante é que, durante a pandemia, o centro de referência no atendimento às mulheres vítimas de violência teve o funcionamento comprometido devido à contaminação de funcionários e afastamento de outros que fazem parte do grupo de risco. “O centro de referência deve ser a porta de entrada dessa proteção, desse acolhimento das mulheres para fazer chegar aí na rede de atuação. Depois do centro de referência deveria vir a delegacia. Se o centro de referência não funcionou, já tem um problema”, analisa Nivete.
A própria Delegacia da Mulher teve um período conturbado: durante a pandemia, três delegadas interinas passaram por lá até a definição de uma nova titular. Em maio, a nova delegada foi indicada, mas a organização avalia que houve descontinuidade no atendimento. Além disso, a delegacia não tem plantão, funcionando apenas de segunda à sexta, das 8h às 17h. “Nossa grande luta ainda é o plantão da delegacia da mulher. Conseguimos neste mês a patrulha da mulher, uma vitória, mas ainda há o que melhorar”, explica.
Para Nivete, há indícios de que, na pandemia, as mulheres podem estar denunciando menos as violências que sofrem. O CMC atua há 36 anos na cidade e acaba sendo um ponto de referência para muitas mulheres, mas também precisou fechar as portas devido à crise sanitária. “São questões da própria dinâmica da pandemia que dificultou muito. Pode ser uma questão de subnotificação, não significa dizer que houve diminuição da violência”, avalia.
A alternativa encontrada para continuar apoiando mulheres em vulnerabilidade foi, primeiro, ajudar com o básico. O CMC vem distribuindo cestas básicas e itens de higienes para mulheres em que colocam também panfletos com orientações sobre a Lei Maria da Penha. Uma ação simples, mas que já teve efeito. Segundo Nivete, algumas mulheres procuraram as ativistas para denunciar e foram encaminhadas ao centro de referência. Em um caso específico, a organização precisou viabilizar o transporte de uma mulher.
Neste momento, a ong deu início a uma pesquisa em dez bairros para entender como as mulheres estão atravessando a pandemia e, a partir disso, poder demandar do poder público ações de proteção mais efetivas.
Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.