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Da infância vivida ouvindo Beatles, Allan* herdou o gosto pelo rock das décadas de 70, 80 e 90. Apaixonado pelo Queen, também guarda espaço no coração para Aerosmith e Van Halen. Nas roupas, Allan quase sempre estampa o amor por Star Wars – são cerca de seis camisas da saga – e a contradição de não gostar de vestir preto, mas estar sempre trajando a cor escura. É fã de Noviça Rebelde, já quase despontou a carreira na natação e queria ser jogador de futebol, mas fazia futsal escondido na infância porque, segundo o próprio pai, o esporte é “coisa de homem”. Allan*, estudante, 24 anos, se reconheceu como homem transexual há um ano.
O prefixo trans-, de origem grega, significa “além de”. Ir além dos limites do que é socialmente imposto desde o dia em que se respira pela primeira vez: gênero. A sociedade não pauta a transexualidade, muitas vezes não sabe sobre o que se trata, evita a abordagem e essa cadeia de desinformação molda um cenário de invisibilidade e discriminação. As consequências são reveladas através de estatísticas: o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo, segundo pesquisa da organização não governamental (ONG) Transgender Europe (TGEU). São 802 mortes de pessoas transgênero contabilizadas no país entre 2008 e 2015, para um total de 2016 assassinatos registrados no planeta, no mesmo período.
A ausência de aceitação, porém, inicia cedo, ainda dentro de âmbito educacional. Segundo a pesquisa “Juventudes na Escola, Sentidos e Buscas: Por que frequentam?”, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO), 2,5% dos jovens entre 15 a 29 anos não queriam ter uma pessoa transexual como colega de classe. “Sofri muito bullying na escola por conta do meu jeito. Os colegas de classe me apelidaram de um nome masculino. Depois do treino de futsal, eles me encurralavam no corredor e me pediam para ensiná-los a jogar que nem homem”, relata Allan.
A descoberta sobre o que é identidade de gênero, no entanto, aconteceu tardiamente na vida de Allan, muito embora o desconforto estivesse sempre presente. Durante a infância, algumas situações causaram inquietação, como a primeira menstruação, que foi motivo de choro e incômodo. Entre outras características, divergentes do que se tem como padrão social de comportamento feminino, odiava esmaltes, bijuterias, maquiagem e, nas fotos com as primas, era o único sem camisa.
Há um ano, quando começou a questionar o próprio gênero, Allan se considerava uma pessoa trans não-binária – indivíduo que não se identifica como homem e nem como mulher ou que se identifica como ambos, o chamado gênero fluido. Ele tinha a concepção de se encaixar numa estética andrógina, percebendo-se através de ambas as designações, homem e mulher. “Tem coisas em mim que lembram papeis de gênero [socialmente considerados] femininos e na minha cabeça um homem trans não podia ser feminino, mas isso era errado. Quando eu me descobri trans, tive que desconstruir isso em mim também”, conta.
Allan tem seios, não fez tratamento hormonal para estimular o crescimento de pelo facial ou para tornar a voz mais grave. A cirurgia de transgenitalização (processo cirúrgico para ressignificação do gênero) não é um desejo e ele se sente totalmente confortável com o corpo que possui, da cintura para baixo. “Tenho certa resistência quanto a me submeter a muitas mudanças apenas para agradar ao padrão que a sociedade estabeleceu como masculino. Queria fazer uma mastectomia, pois o que mais me incomoda é o volume dos seios, mas tenho muito medo de fazer uma intervenção irreversível com o meu corpo”, comenta.
Por não se adequar ao padrão cis, que muitas vezes não reconhece o homem trans afeminado, Allan, assim como vários homens e mulheres transgênero, vive uma barreira para ser reconhecido diante do corpo social tradicional. “A construção da transgeneridade independe da relação sexo-gênero, um homem não precisa fazer cirurgia para ganhar o status de homem trans e o mesmo vale para as mulheres”, explica Luciana Vieira, professora do Departamento de Psicologia da UFPE e responsável pela Diretoria LGBT da Universidade.
A questão se estende às atividades rotineiras e Allan permanece frequentando banheiros femininos por receio do preconceito. “Frequento banheiros femininos porque me sinto mais seguro, tenho medo de ser hostilizado ou sofrer alguma agressão física em banheiros masculinos. É traumático toda vez que eu olho pra porta do banheiro e vejo a figurinha de saia, mas é pela minha integridade”.
No âmbito pessoal, redes sociais de relacionamento como o Tinder evidenciam o preconceito não só com a pessoa transgênero, mas principalmente com os que optam por não realizar interferências no próprio corpo. “Quando estou conversando com uma menina e ela me chama pelo feminino, corrijo e ela simplesmente some… Não aconteceu uma vez só, mas várias. Parece que as pessoas correm quando sabem disso”, comenta Allan.
Na vida profissional, como estudante, Allan teve a sorte de ser bem acolhido em estágios, sendo respeitado e reconhecido diante da identidade de gênero. Apesar disso, pensa em prestar o concurso do Itamaraty para der Diplomata, mas acredita que, na área, dificilmente respeitariam a identidade masculina. “Não acho que estou disposto a abrir mão de quem eu sou por conta de um sonho profissional, por isso eu resolvi fazer mestrado para me tornar professor de alguma universidade pública. Nesse lugar eu acho mais fácil me respeitarem, porque foi na universidade pública que eu comecei a minha desconstrução”, diz.
Allan cita, ainda, a campanha “Meu Nome Importa”, da Universidade Federal de Pernambuco, como um ponto de segurança na instituição. O projeto visa conscientizar alunos e docentes sobre a importância de respeitar o nome social, aceito na Universidade. Caso entre para o mestrado, essa se desenha como a próxima luta que Allan pretende assumir, para ter registrado nos documentos universitários o nome que o identifica.
*Allan é um nome fictício utilizado para proteger a integridade pessoal do personagem entrevistado.
**Mariah é estudante de Jornalismo pela UFPE. Durante a graduação, se aventurou no jornalismo gastronômico, através do blog Gastrô404, e na organização da II Semana de Jornalismo da UFPE. Teve experiências em assessoria de imprensa e mídias digitais e, hoje, se arrisca na reportagem.
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.