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A imagem afro-indígena de Iemanjá ressignificada pelo grafiteiro Eder Muniz. Crédito: Júlia Moa
Por Júlia Moa*
Contam as histórias que num dia que o mar não estava lá muito para peixe, um grupo de pescadores, agoniados e sem vislumbrar o horizonte de águas calmas, decidiu dar um presente à mãe-d’água. Pescaria boa é fartura na mesa da família dos trabalhadores. E o mar da Bahia, ah… possui algo único, mistério e beleza que só quem se banha por aqui entende.
Nos anos seguintes, no início da década de 1920, o ritual continuou, mas para garantir a eficácia do agrado, a turma recorreu aos serviços da mãe de santo Júlia Bugã. A partir daí, o presente dos pescadores é oficializado como um rito realizado por uma especialista religiosa diferente que anualmente é selecionada.
O centenário da Festa de Iemanjá, consolidada com esse nome no decorrer de 1970, completado em 2023, evidencia algo que talvez todo soteropolitano já saiba: a Bahia sempre teve uma rainha e ela é Iemanjá, poderosa orixá do candomblé. O escritor baiano Jorge Amado me ajuda a lembrar os outros quatro nomes da sereia,1. Dona Janaína, 2. Inaê, 3. Yá e 4. Rainha de Aioká.
Vinda do continente africano, mais precisamente da região de Abeokutá, na Nigéria, através da diáspora negra durante os séculos de regime escravagista e tráfico de mão de obra compulsória, Yemoja (na língua original Iorubá) é a mãe de todos os orixás. Seu nome significa ‘mãe cujos filhos são como peixes’. A protetora do povo do mar recebe no país a maior cerimônia pública organizada para uma orixá africana, sem nenhuma sincretização. O festejo, reconhecido como patrimônio cultural de Salvador, integra os maiores eventos do estado junto com o Carnaval e a Lavagem do Nosso Senhor do Bonfim.
Na África, os orixás igualmente possuem seus espaços sagrados, porém, na explicação da historiadora e museóloga Janaína Couvo, o oceano é morada da divindade Olokum e os rios pertencem à Iemanjá, Oxum e Ewá. Entretanto, no Brasil, assume o domínio dos oceanos Iemanjá. “Durante o processo de reinterpretação e reorganização do culto às divindades trazidas pelos escravizados, algumas delas não permaneceram com seus cultos, como é o caso de Olokum. Assim, Iemanjá ficou como quem domina os oceanos, as águas salgadas” afirma Janaína.
Depois de um intervalo de dois anos sem a tradicional cerimônia, diante da pandemia da Covid-19, o dia de Iemanjá encheu as ruas e a praia do bairro do Rio Vermelho. A celebração na realidade inicia na noite do dia 1 e segue até as primeiras horas do dia 3 de fevereiro. Haja reza junto com roda de samba, fanfarras, grupos de percussão, capoeira, muita feijoada e comida baiana. Juntos e misturados.
Com a principal concentração nos arredores da Casa de Iemanjá, antiga Casa do Peso, administrada pela Colônia de Pescadores Z1 desde 1919, pessoas de todos os cantos do mundo, muitos fiéis das religiões de matriz africana (especialmente umbanda e candomblé), surgiram munidas de rosas e o perfume de alfazema nas mãos para presentear a anfitriã. E por falar nela, aquela imagem que todos nós estamos acostumados a ver de Iemanjá, a moça de pele clara, rosto com traços finos e magra, é notícia falsa. Tudo fruto do racismo e violência cultural das feridas coloniais ainda abertas que visam escamotear os saberes afro-indígenas e embranquecer o protagonismo não-branco. Ela, caso uma força da natureza como bem simbolizam os orixás, se assumisse na forma humana, estaria mais próxima de uma figura negra de ancas largas e seios fartos, a mãe que deu à luz a toda humanidade.
Marinheira de primeira viagem nas festas populares baianas, me vi ‘navegando’ em alto-mar na Bahia de Todos os Santos, local de aguda força espiritual que nos impulsiona para complexas reflexões. O compositor Mateus Aleluia, integrante do célebre conjunto baiano Tincoãs, expressou sabiamente numa canção, ‘Bahia, eu sou África do lado de cá’.
Nilinho, Pantaleão e Mestre Comprido são parte dos bons companheiros da Colônia de Pescadores Z1, no Rio Vermelho. Mestre Comprido, de 86 anos, é o mais antigo e está aposentando, capitaneou o barco Rio Vermelho, embarcação que leva o presente por mais de 30 anos e diz que são muitas as lembranças boas, “adorava levar o presente todos os anos”. Quem assumiu a missão no centenário da festa foi Pantaleão, ex-presidente da colônia em gestões anteriores. O atual comandante da embarcação também não encontra as palavras exatas para nomear seus sentimentos em relação à responsabilidade, apenas comenta que é a sua estreia no ofício de navegar o barco que partiu às 16h da praia do Rio Vermelho em direção ao ‘Buraco de Iaiá’, localidade distante a 7,5 quilômetros da costa e que é considerado sagrado pelo povo do mar.
Nilinho é o atual coordenador da Colônia e está num momento de ‘arrumar a casa’ para que tudo siga no fluxo com a maré favorável nos desafios cotidianos. Pescador filho do Porto da Barra, onde iniciou a atividade pesqueira, ele integra a família do Rio Vermelho há 35 anos e se recorda da festança desde a infância. “Aqui no Rio Vermelho nós somos cerca de 100 pescadores. Esse grupo cuida da Casa de Iemanjá e organiza a festa. Ela é nossa, algumas pessoas querem se apoderar dela, porém eles (o poder público) não tem como tirar das nossas mãos”, observa Nilinho.
A comunidade de pescadores é majoritariamente masculina, apenas uma mulher fazia parte, contudo deixou de frequentar.
Fica a cargo dos pescadores, além da organização da festa – a prefeitura de Salvador auxilia com o patrocínio e decisões sobre o trânsito no dia -, a escolha do terreiro de candomblé (em 2023, a Casa de Oxumarê aceitou o convite) responsável pela confecção do presente junto com a obra produzida por um artista plástico da cidade, seguindo as orientações dos sacerdotes.
O segredo em torno da oferenda principal, elaborada este ano por Ray Vianna, é vital até o dia da entrega na alvorada do dia 2 de fevereiro. De acordo com a superstição dos pescadores é para não dar má sorte. Foi no amanhecer do dia, com direito a fogos e uma leve garoa, que a escultura de uma coroa para a Iemanjá foi mostrada aos fiéis. “Fui guiado pelo axé que promove essa parte litúrgica da festa. Eles me orientaram sobre o que deveria ser feito e conversamos em relação à questão ecológica de não botar nada que polua o oceano ou cause resíduos para os peixes”, destacou Ray.
Outro criador chamado pelos pescadores foi o grafiteiro Eder Muniz, autorizado a ressignificar a imagem de Iemanjá na parede do fundo do espaço e pintar dois murais na área interna da casa. Muniz deu vida a uma imagem afro-indígena da sereia e considera essencial que Salvador, território onde de acordo com os dados do IBGE, 82% das pessoas se declaram negras, desperte para as questões raciais. “Ser convidado para representar dentro do recinto o mar, a cura, é um privilégio muito grande. Na parte externa desenvolvi a figura mais forte, a mistura do nosso povo, a cultura negra e indígena. Durante os séculos passados, Salvador se colocou no Brasil como um lugar de revolução e entregar essa Iemanjá no 2 de fevereiro é muito simbólico”, descreve Eder.
Relevante detalhe: segundo a tradição candomblecista, antes de agradar Iemanjá, deve-se primeiro agradar Oxum. Então, à meia-noite de 2 de fevereiro, é entregue o presente para a orixá das águas doces no Dique do Tororó, o único manancial natural da cidade em frente ao estádio Arena Fonte Nova.
Contatada, a assessoria de imprensa da prefeitura divulgou uma declaração do presidente da Empresa Salvador Turismo (Saltur), Isaac Edington, comentando ter anunciado o calendário do setor num evento em São Paulo para captar turistas e investimentos para a cidade, fomentando ainda mais as festas populares da capital baiana. Empenhada em fazer um 2 de fevereiro “incrível”, o que se ouvia pela orla do Rio Vermelho em uníssono era sobre a desorganização do trabalho do órgão, seja nas filas para prestigiar o presente como na presença de veículos transitando no espaço, mesmo com as ruas bloqueadas na localidade.
Em meio a tantos movimentos de transeuntes subindo e descendo as ladeiras do bairro, uma rua bonita com cara de interior chama a minha atenção desde outras épocas do ano, a Almirante Barroso, ou, como costumam dizer, a ‘rua da pracinha’ e ‘a vista mais bonita do mar’. O fato é que tal pedaço carrega uma energia mágica, bem do tipo ‘coisas da Bahia’ que para a mente racional é difícil solucionar. Já moraram por ali nomes como Mateus Aleluia, Russo Passapusso, Latieres Leite, Mariene de Castro, Armandinho, o historiador Cid Teixeira e até Sidney Magal.
Entretanto, são as diversas personagens anônimas que constroem o valioso sentimento de comunhão e amizade entre os moradores. A Festa de Iemanjá há mais de 40 anos é celebrada por essas bandas onde antigamente se situava a igreja de São Gonçalo.
Nas primeiras horas do dia 2 de fevereiro, um rico balaio florido desce a ladeira ao som da cantoria para Iemanjá. A pequena procissão de vizinhos e amigos segue para deixar o presente no espaço onde ficam todas as oferendas que vão para o mar na tarde do dia 2. De forma inédita, durante três edições, inclusive a de 2023, o balaio do grupo de moradores da Almirante Barroso ocupou lugar de destaque, ficando junto com o presente oficial dos pescadores. “Em 2020, um pouco antes da pandemia da Covid-19 ocorrer, pedimos licença para o nosso presente estar próximo ao presente principal. A mãe de santo responsável autorizou que a nossa oferenda saísse em cima, junto ao presente principal, e todo mundo se derreteu de alegria”, rememora a geógrafa Guiomar Germani que credita a proteção espiritual da divindade para que todos estivessem juntos novamente no ato em 2023.
Germani é uma das fundadoras da Comissão de ‘Moradores e Amigos da Pracinha do Alto de São Gonçalo’, e contabiliza 38 anos de oferenda e mais 36 anos do café da manhã na praça onde cada um colabora com o que quiser. Empenhados com o evento, o time ainda se reúne na Oficina Odoyá, palavra usada ao saudar Iemanjá, para confeccionar artesanalmente toda a decoração na praça no dia do banquete. Vale frisar que o evento lotado não possui nenhuma ligação com a prefeitura ou mesmo é algum tipo de atrativo turístico.
A programação da Festa de Iemanjá na Almirante Barroso seguiu com música e alto fluxo de pessoas até a noite, o clima era de carnaval. Os moradores das casas estavam confortáveis com suas cadeiras e mesas nas calçadas, sentados observando a agitação.
A assistente social Maria Inês Mascarenhas de Alencar nasceu na própria Almirante e vive ali até hoje. Ela e o marido, Jaílton, conhecido como o ‘presidente da rua’, o cara que resolve tudo, fazem parte da oficina desde o seu início, em 2012. Serena, ela menciona ter se aproximado aos poucos de Iemanjá e se sentir mais inspirada ao enfeitar a decoração para ela. “A energia positiva de estar com o grupo é forte, tudo flui enquanto trabalhamos com muito carinho. Hoje eu faço as minhas orações para ela, ofereço presentes, flores, acompanho a saída do balaio junto com a música, me sinto mais energizada e só tenho a agradecer”, celebra Inês.
Na mesma linha de devoção, a professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Amanda Maria, revela que a relação com a rua e o Rio Vermelho é muito singular perante a sua reverência à mãe Iemanjá. Natural de uma cidade no interior baiano rodeada de águas, Ituberá, ela descreve que foi impactada por morar de frente para o mar azul e que dessa maneira se sente motivada para dar aula e escrever. “Certa vez, andando pelo prédio, dei de cara com o seu Mateus Aleluia. No seu olhar eu via que ele estava me abençoando em silêncio. E no dia da Festa de Iemanjá, no café da manhã na pracinha, de repente, aquela rua calma se transforma numa potência de comunhão familiar, embora eu não conhecesse ninguém no primeiro ano, eu me senti em casa”, conta Amanda ao refletir sobre as suas memórias da Almirante.
Para o músico Paulinho Ganaê, a via com frequência entregou, em diferentes épocas, tudo o que os moradores precisavam: salão de beleza, mercearia, baiana do acarajé, bar, restaurante, etc. Ele pontua que há 40 anos não tinha toda a movimentação que existe hoje, e de maneira distinta em relação aos outros festejos em Salvador, que são em bairros distantes, esse é na porta de casa. Ana Regina Santana, proprietária do bar e restaurante, BarAna, um dos mais conhecidos na região, observa a necessidade de continuar principalmente o café da manhã como um encontro entre moradores e amigos próximos, para não perder o vínculo das trocas verdadeiras.
Me resta concordar com Jorge Amado, quem tiver a sorte de assistir essa festa, jamais a esquecerá.
* Júlia Moa é jornalista. Paulistana baseada na Bahia, valoriza intuição, profundidade e sensibilidade crítica em tudo que faz.
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.