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Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo
por Nattasha Pollyane
Em meio à correria da Boa Vista, existem dois endereços ainda mais agitados que o comércio e o trânsito do bairro. Próximo ao alarido de buzinas, ofertas de camelôs e dos locutores atraindo clientes diante das lojas, um idioma estranho aos recifenses é predominante nas casas 400 e 485 da rua da Glória, onde, até o momento de fechamento desta reportagem, vivem aproximadamente 120 índios venezuelanos do grupo Warao (ou Guarao).
Só os representantes de cada casa – o cacique Santo e o casal Marisol e Johnny – arranham o português, ou melhor, o portunhol. Os demais se comunicam usando sua língua-mãe, o guarao, idioma falado por esse povo. Nem o espanhol falam.
Nas duas casas, crianças de todas as idades se divertem escutando o reggaeton-gospel do cantor Leonel Nunez em pequenas caixas de som. São dezenas de meninos e meninas que vieram acompanhando seus pais desde Tucupita, no estado de Delta Amacuro, norte da Venezuela, de onde saíram há oito meses. No caminho até o Recife, passaram por diversas cidades brasileiras.
Entraram no Brasil por Pacaraima, em Roraima, se deslocando até a capital Boa Vista, de ônibus. Ora de barco, ora de ônibus, cruzaram a Amazônia, passando alguns meses em Belém para, daí, seguir viagem. São Luís, Fortaleza, Natal foram cidades onde estiveram e e deixaram alguns dos seus parentes e amigos. Ao chegarem em Natal, permaneceram por mais um mês para juntar o dinheiro necessário para fazer o próximo trecho até o Recife.
O casal Marisol e Jonhny Yhonnimata, por exemplo, negociou com um taxista potiguar que os trouxe, junto com a filha caçula, uma bebê de poucos meses nascida em Belém, por R$ 300. A viagem durou quase cinco horas. Marisol é a representante da casa 485 e responsável pela maior parte das informações que compõem este relato.
“Nós passamos cinco dias para tirar o documento na fronteira, lá tinha muitos venezuelanos, querendo entrar no Brasil, não tivemos nenhum auxílio, passamos muita fome”, diz Johnny. Eles têm dois filhos, mas o primogênito ficou no Maranhão com a mãe de Marisol. Nesse ponto da conversa, os olhos de Johnny enchem de lágrimas.
As primeiras famílias chegaram no dia 6 de outubro e se dirigiram à pensão situada na casa 400, onde os caciques Santo e Américo os aguardavam. Os três quartos, um banheiro, uma cozinha, com apenas um fogão e nenhuma geladeira, saíram por R$ 400. Trinta pessoas dividem esse espaço onde se acumulam pelo chão colchões, roupas, restos de alimentos, mamadeiras e garrafas de refrigerantes, item consumido exageradamente por eles.
“Se pagarem, podem continuar, isso aqui não é meu, é arrendado. O aluguel todo da casa é R$ 2.500,00 incluindo energia, água e IPTU. Eles estão aqui porque eu pensava que eram poucos. Várias pensões estão se negando a alugar quarto a eles por causa da quantidade de gente. Você já foi na outra casa?”, questiona a dona da pensão Ana Cláudia, que não quis informar o sobrenome.
Na outra casa, Marisol é a única moradora que entende português e representa o grupo no diálogo com os recifenses, sejam autoridades públicas ou voluntários trazendo doações.
Na pensão chama a atenção o casal Inácio e Yudene, com seus oito filhos, número sugestivo da alta taxa de fertilidade de sua etnia. Usando os falantes de portunhol como intérprete, as mulheres das casas contaram que métodos contraceptivos, como o uso de qualquer anticoncepcional, seriam atualmente ilegais entre seu povo – ao menos em sua região.
As últimas famílias a chegarem na capital pernambucana desembarcaram na terça-feira, 22 de outubro. Seis dessas famílias seguiram para o segundo endereço dos venezuelanos no Recife: Rua da Glória, 485. No local, cedido por um mês (outubro), já estavam abrigados vários waraos. Um vizinho, sensibilizado ao ver a grande quantidade de crianças que ficariam na rua, sem um teto e sem apoio, apelou ao proprietário, que abriu as portas da casa anteriormente desocupada.
Após duas visitas as casas, a reportagem constatou que, pelo menos, 60% dos moradores são crianças, visivelmente desidratadas, com inflamações nos olhos (algumas com terçol, outras com olhos inchados e vermelhos), ferimentos na cabeça. Uma delas, no dia 25 de outubro, havia contraído catapora, dividindo o mesmo espaço com as demais. Como na pensão, mau cheiro, roupas espalhadas e caixas com doações de comida por todo lado.
Tudo indica que o fluxo migratório não tem data para terminar. Por celular, o cacique se comunica constantemente com seus parentes que estão para chegar ao Recife. “Foi tudo feito com controle, a gente se ligava e perguntava ‘onde está você?’, o endereço é tal, rua tal, número tal’,” revela Santo, em seu português sofrível. Santo afirma que o objetivo do grupo não é morar no Recife, mas em qualquer lugar onde lhes arrumem um pedaço de terra para plantar, pois são todos agricultores, sem experiência alguma em viver na cidade. Talvez por isso, sejam tão arredios e não se deixem fotografar.
À falta de dinheiro, soma-se o choque cultural, evidente nos hábitos alimentares. A dieta cotidiana dos indígenas inclui arroz, macarrão, cebola, pimentão, além de banana comprida e asa de frango, só a asinha mesmo, os warao não estão nem aí para as outras partes da galinha.
Boa parte da comida, além dos produtos de limpeza, colchões e um fogão foram doados por voluntários que, diariamente, estão lá para dar ajudar e trazer novos donativos. Esse grupo formado espontaneamente vem sendo uma das únicas fontes de apoio que os venezuelanos podem contar no Recife. “É preciso unirmos forças para ajudar essas famílias. Não podemos permitir que eles tenham saído do seu país para não morrer de fome, deixando para trás lares e parentes para, quando chegam aqui, acabarem morrendo de fome por falta de mãos estendidas,” afirma a comerciária Priscilla Souza, uma das articuladoras do grupo de ajuda.
Outra ajuda, ainda que institucional e sem efeitos práticos, veio da comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal, que incumbiu os vereadores Ivan Moraes (PSOL) e Michelle Collins (PP) de, juntos, fazerem a ligação entre os venezuelanos e a Prefeitura do Recife.
“É obrigação da Prefeitura do Recife garantir o bem estar dessas pessoas, independentemente de quem elas são, de onde elas vêm. Porque se estão no Recife, já passam a ser responsabilidade da gestão pública, independentemente se desejarem pedido de asilo ou obter qualquer tipo de institucionalização da estadia. Nós não podemos admitir que nem eles, nem quaisquer outras pessoas no Recife, fiquem desatendidas. Os imigrantes devem ter acesso aos direitos básicos garantidos pelo poder público”, disse Ivan Moraes.
A prefeitura informou, por meio da assessoria da Secretaria de Desenvolvimento Social, Juventude, Política Sobre Drogas e Direitos Humano, estar ciente do caso. Uma equipe da secretaria foi ao local acompanhando os representantes da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal. Segundo a assessoria, constatou-se uma relutância por parte dos venezuelanos diante das autoridades. Questionada sobre prazos e datas para possíveis ações de suporte, não houve respostas concretas.
André Carneiro Leão, da Defensoria Pública da União, explicou que, “na sua grande maioria, os venezuelanos passaram pela Operação Acolhida, que funciona na fronteira da Brasil-Venezuela. Nela, eles recebem toda a documentação necessária para permanecer no país, o que inclui um protocolo de solicitante de refúgio, com foto. Além disso, recebem também um CPF especial que precisa ser renovado. Contudo, deve haver alguns que não possuem a renovação desse protocolo, criando um problema administrativo que pretendemos resolver com a Polícia Federal.”
“Solicitei à prefeitura que verificasse a possibilidade de conseguirem um abrigo para eles ou, pelo menos, o pagamento de um aluguel social. Isso está sendo estudado. A situação é muito recente, mas estamos preocupados, sobretudo, com as crianças, pois é preciso garantir que elas tenham o atendimento médico que for necessário, e que possam, o quanto antes, voltar para escola”, detalhou o defensor público da União.
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