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Os expurgos na Comissão Nacional de Anistia e a batalha pela memória

Samarone Lima / 09/09/2016

No dia dois de setembro de 2016, uma sexta-feira, o cientista político, professor universitário e defensor dos Direitos Humanos Manoel Moraes, de 42 anos, sentiu o impacto dos novos ventos do Governo Temer. Pelo Diário Oficial do Ministério da Justiça, ficou sabendo que tinha sido exonerado da Comissão Nacional de Anistia, onde trabalhava desde junho de 2013.  Como não se tratava de cargo comissionado, não recebia salário.  Fora convidado pelo então presidente da Comissão, Paulo Abrão, quando Dilma Rouseff ainda era Presidente da República, e o ministro da Justiça, Eduardo Cardozo.

Cometeu um novo crime. Ao longo dos últimos meses, se posicionou publicamente contra o governo Temer. Não tem a menor dúvida que foi uma retaliação, dois dias após a aprovação do impeachment da presidente Dilma Rousseff, no Senado Federal.

“Participei de vários atos em defesa do governo Dilma”, diz.

No seu Facebook, não escondeu sua escolha política, com textos e fotos.

Ao longo dos anos, sempre foi livre a manifestação do pensamento e posição política. Ele observa que o critério de sua exoneração rompeu com uma tradição histórica da Comissão, criada em 2001, por meio de uma medida provisória, e transformada em Lei no ano seguinte. O Presidente na época era Fernando Henrique Cardoso.

“Nunca ninguém saiu sem pedir e nunca ninguém foi retirado do jeito que foi”, conta Moraes.

Funcionando initerruptamente desde seu surgimento, a Comissão se tornou um caso raro no Brasil. Virou uma “Política de Estado”, onde um governante cria algo, não mexe no que vem dando certo, e o que chega não destrói o que foi feito. Foi a primeira vez que isso aconteceu, na história da Comissão, que atravessou sem interferências políticas os governos FHC, Lula e Dilma. Algo mudou com o governo Temer.

Manoel foi exonerado pelo ministro da Justiça, Alexandre Moraes. Com uma canetada assinou duas portarias, nomeando 20 novos conselheiros e exonerou outros seis membros que não haviam solicitado o desligamento.

Como o Diário Oficial não costuma emitir opiniões, os conselheiros desligados não sabem os motivos oficiais. Suspeita-se de uma ligação com o ex-presidente da Comissão, Paulo Abrão.  Foram embora sem um telefonema, além do Manoel Moraes, Ana Guedes (Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia e ex-presidente do Comitê Brasileiro pela Anistia na Bahia), José Carlos Moreira da Silva Filho (vice-presidente da Comissão e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUC-RS), Virginius Lianza da Franca (ex-coordenador geral do Comitê Nacional para Refugiados), Carol Melo (professora do núcleo de Direitos Humanos da PUC/RJ) e Marcia Elayne Moraes (ex-integrante do comitê estadual contra a tortura do RS).

Lutas pela memória

A cada 15 dias, Manoel Moraes viajava a Brasília para analisar processos, dar pareceres e votar em casos que envolvem a palavra Anistia, para pessoas que sentiram na pele algum tipo de violência, entre 1946 e 1988, quando o país passou por duas ditaduras.  Desde gente que foi presa, torturada, parentes de mortos e desaparecidos, a gente que perdeu o emprego nas estatais por ter participado de uma greve, por ter militância sindical ou um por explicitar pensamento político contrário aos que mandavam.

Passados 36 anos do retorno do país à Democracia, ainda há muito o que reparar. Além dos mortos e desaparecidos, cerca de 20 mil pessoas foram presas por motivos políticos, 10 mil passaram pelo suplício dos Inquéritos Policiais Militares (IPMs), onde a tortura foi uma prática rotineira e aproximadamente cinco mil funcionários públicos foram demitidos.

Neste caso, parece que Manoel passa pelo mesmo problema: tem uma posição política contráriaà de quem está no poder.

“Até hoje não recebi um telefonema”, conta ele, que é integrante da Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara. O convite para a Comissão Nacional se deu devido ao trabalho que vinha realizando em Pernambuco. Tinha uma “função pública relevante”.

Nada é por acaso. A Comissão de Anistia, nos últimos anos, ampliou em muito seu leque de ações, e começou a fazer um pouco o que os países vizinhos, que passaram pelo mesmo drama, já fizeram há muito tempo – reparar de alguma forma os males do passado. Pedir desculpas por ter matado e torturado. O Brasil só não teve a coragem de punir quem mandou matar, sequestrar, torturar – muito menos quem fez o trabalho sujo.

O general Jorge Rafael Videla, que comandou o genocídio na Argentina, com um saldo de aproximadamente trinta mil desaparecidos, morreu em uma cela, cumprindo pena de prisão perpétua.  Torturadores e assassinos foram processados no Chile. O nome disso é “Justiça de Transição”.

A Comissão brasileira não conseguiu punir ninguém, mas criou um projeto intitulado Marcas da Memória, com audiências públicas, entrevistas com perseguidos políticos, publicações de livros com esses relatos, estimulou a produção de dissertações e teses de mestrado e doutorado sobre a ditadura e Anistia no Brasil. Num momento em que manifestantes vão às ruas pedindo “intervenção militar”, este tipo de trabalho parece incomodar o novo governo, cada dia mais assombrado com a palavra “Golpe”.

“São políticas de memória. O Estado assume que seus agentes cometeram violações, que pessoas foram mortas, desapareceram, que houve torturas, torna isso público. Isso tem uma dimensão pedagógica para a sociedade. A Comissão não tem o caráter investigativo, mas de reparação”, diz Manoel.

Em nota pública, o Movimento por Justiça, Memória e Reparação alerta para um risco – de o governo Temer jogar fora, ou inviabilizar um trabalho cuidadoso de memória e de um aprendizado alcançado ao longo dos anos –, como aplicar a legislação de Anistia no Brasil.

Entre os vinte novos conselheiros, há suspeitas de que simpatizantes do Golpe de 1964 tenham sido nomeados. A eles vai caber o papel de julgar vítimas de um regime que eles próprios simpatizam.

É o caso do professor de Direito Constitucional da USP, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, citado como “conhecido teórico, defensor do golpe civil-militar, por ele denominado “Revolução de 1964”. Outro integrante é suspeito de ter sido colaborador da ditadura.

Dom Helder

Exonerado, Manoel segue sua rotina de aulas de Direitos Humanos em faculdades particulares e nos trabalhos da Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Camara, criada em junho de 2012, pelo então governador, Eduardo Campos. Ela tem como missão “esclarecer e tornar públicas as violações dos direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988 por motivação política em Pernambuco ou contra pernambucanos em outros territórios”.

Recentemente, Manoel esteve envolvido em uma publicação que envolveu um trabalho de detetives da Comissão, mostrando como a Ditadura montou um pesado esquema para impedir que Dom Hélder Câmara fosse o vencedor do Prêmio Nobel da Paz em 1971 e 1972. A Marco Zero Conteúdo publicou uma série sobre isso.

A exemplo da Comissão de Anistia, a pernambucana também tem publicado livros, realizado audiências públicas, com depoimentos de vítimas dos anos de ditadura.  Já foram publicados quatro Cadernos da Memória e Verdade. O último foi o sobre Dom Helder.

No dia 18 de agosto, no auditório do Sindicato dos Servidores Públicos de Pernambuco (Sindserp), na Boa Vista, Recife, a Comissão escutou relatos de camponeses que foram trucidados, após o Golpe de 1964. Muitos falaram pela primeira vez sobre prisões, torturas, companheiros que morreram.

Martinho Leal de Campos resgatou a memória de um companheiro do Partido Operário Revolucionário Trotskista (PORT), Paulo Roberto Pinto, o Jeremias, assassinado aos 22 anos.

O momento mais tocante do seu depoimento foi uma reflexão sobre o papel da memória:

“A memória é uma forma de enfrentar a morte. É uma forma de não deixar o esquecimento tomar conta da verdade”.

O advogado Anacleto Julião, filho do ex-deputado Francisco e Francisco Julião, um dos ativos participantes das Ligas Camponesas, começou seu depoimento com um “Fora Temer”.

E explicou:

“Neste momento, estamos vivendo um Golpe no Brasil. Hoje, temos que falar o que foi este período de extrema aflição, que foi uma ditadura civil-militar. Agora podemos ter uma ditadura civil, respaldada pela Justiça e pela Imprensa”.

AUTOR
Foto Samarone Lima
Samarone Lima

Samarone Lima, jornalista e escritor, publicou livros-reportagens e de poesia, entre eles "O aquário desenterrado" (2013), Prêmio Alphonsus de Guimarães da Fundação Biblioteca Nacional e da Bienal do Livro de Brasília, em 2014. Em 2023, seu primeiro livro, "Zé", foi adaptado para o cinema.