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Ilustração: Thiago Castor/MZ Conteúdo
As identidades verdadeiras de Gustavo e dos seus parentes foram preservadas por segurança. A família teme represálias da polícia.
Faz quase quatro meses que Gustavo não volta à praça onde costumeiramente se reunia com os amigos para ouvir brega-funk e dançar o passinho. Porque foi ali onde tudo aconteceu. A confusão, a polícia, o tiro, o sangue escorrendo pelo seu rosto. Passa um filme na cabeça. Desde aquele dia, ele não sai mais de casa, a não ser para consultas médicas.
Sempre grudado no celular, de óculos escuros e de cabeça baixa, o estudante de 18 anos se esforça para esconder as marcas da violência policial. Mas elas estão patentes, tanto no corpo quanto no espírito abatido. No dia 25 de janeiro deste ano, sem qualquer justificativa, um PM atirou em Gustavo enquanto ele participava de um evento de música, numa praça próxima à sua casa. A bala de borracha atingiu o olho direito dele e destruiu totalmente o globo ocular.
Nos meses seguintes ao episódio, o jovem foi submetido a várias cirurgias. As dores excruciantes só aliviavam com analgésicos fortes. Depois de meses de recuperação, no começo de abril, finalmente, ele estava pronto para receber uma prótese ocular – algo que não pode recuperar sua visão, mas ajudaria na autoestima. Com a prótese, a lesão no olho se torna quase imperceptível e Gustavo já imaginava voltar a frequentar a escola.
Mas a Fundação Altino Ventura (FAV), que presta atendimentos pelo SUS (Sistema Único de Saúde) com recursos transferidos pelo Governo do Estado, negou o tratamento. A justificativa é que o fornecimento da prótese foi cortado desde agosto do ano passado, por conta de atrasos do Governo do Estado, que acumula uma dívida superior a R$ 12 milhões com a instituição (voltaremos a este tema mais à frente).
A própria equipe médica do Altino Ventura encaminhou Gustavo para uma clínica particular, onde a prótese custa R$ 1,4 mil e a consulta R$ 120. A Proocular fornecia próteses para o Altino Ventura até o ano passado, mas teve seu contrato encerrado por problemas financeiros da instituição. A administração da clínica, que funciona em um empresarial na Rua da Aurora, não quis conceder entrevista. De baixa renda, a família do estudante não tem como custear o tratamento.
Vítima de um Estado preconceituoso, que normaliza a violência policial contra a população negra e pobre, Gustavo foi duplamente agredido pelas instituições. O poder público que silenciou diante do comportamento criminoso dos que deveriam prover segurança é o mesmo que falhou negando o acesso a um tratamento de saúde – último recurso possível, ainda que paliativo, diante de uma realidade tão atroz quanto a dele.
Até agora ninguém assumiu a responsabilidade pelo que aconteceu a Gustavo. O policial que atirou nele sequer foi afastado das funções. As investigações contra o Cabo Aurino, lotado no Batalhão de Rádiopatrulha não foram concluídas até este momento pela Corregedoria da Secretaria de Defesa Social (SDS). De igual modo, o inquérito que corre na Polícia Civil também permanece em aberto.
Presa em processos burocráticos, a Defensoria Pública do Estado registrou as queixas de Janaína, mãe de Gustavo, mas não ofereceu um prazo para que a situação seja resolvida. Sem ter com quem contar, ela tenta buscar alternativas. “Estamos organizando uma rifa de um ventilador para levantar parte do valor do tratamento”, contou.
O Ministério Público estadual (MPPE) foi informado da situação da família pela própria reportagem. Por meio do Grupo de Trabalho de Racismo, o caso de Gustavo foi encaminhado à Diretoria de Direitos Humanos, junto com outras matérias de jornais locais que expunham a violência policial contra grupos de passinho. Até agora, entretanto, nenhuma denúncia foi apresentada pelo MPPE contra o Estado.
O encadeamento de episódios tristes na vida de Gustavo expõe as falhas do Estado, que não consegue prover direitos constitucionais aos cidadãos, como segurança e saúde. A suspensão do fornecimento de próteses oculares pela Fundação Altino Ventura (FAV) não é o problema principal, mas sim a ponta solta na história que nos levou até a constatação de uma crise aguda na saúde estadual.
Desabastecimento de medicamentos, falta de médicos, dificuldades para marcar consultas e cirurgias, sucateamento das estruturas. São problemas recorrentes nos serviços de saúde da rede pública de Pernambuco, que penalizam milhares de pessoas. A gestão da estrutura de atendimento em parceria com Organizações Sociais (OSs) foi a alternativa encontrada pelo Governo do Estado, anos atrás, ainda na gestão de Eduardo Campos, para resolver parte dessas questões. Mas o modelo de parceria público-privada também acabou se tornando um problema.
As OSs são entidades privadas que oferecem serviços públicos por meio de contratos com o Governo do Estado. Inicialmente, 14 unidades de saúde eram geridas pelas OSs em Pernambuco, agora são 34. No estado, a Fundação Altino Ventura (FAV) é a única que oferece atendimento oftalmológico à população de baixa renda por meio do SUS. Por ano, a instituição realiza 180 mil atendimentos em Pernambuco.
A FAV tem três unidades na Região Metropolitana do Recife (Boa Vista, Iputinga e Jaboatão dos Guararapes), além de atendimentos nos municípios de Serra Talhada e de Salgueiro. Apenas para operacionalizar a Unidade Pernambucana de Atenção Especializada (UPAE) de Caruaru ela recebia R$ 16 milhões/ano do governo, fora a remuneração pelas outras unidades.
Mas a entidade alega que os repasses não estão sendo realizados pelo Governo do Estado. A dívida da Secretaria de Saúde (SES) com a Fundação Altino Ventura já ultrapassaria R$ 12 milhões. Esse é o valor comunicado pela FAV em ofício enviado no dia 15 de março para a Promotoria de Justiça de Saúde da Capital do Ministério Público estadual. A SES nega a existência de dívidas.
O défict financeiro teria levado ao fechamento da unidade da Fundação Altino Ventura no município de Arcoverde, no Sertão, que atendia a população de mais de 13 municípios do Agreste e do Sertão do Moxotó. A administração da UPAE de Caruaru também foi entregue no fim do ano passado. Na época, a FAV comunicou um débito de R$ 18,5 milhões da SES, que teria restringindo em 35% a sua capacidade operacional.
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O fornecimento do colírio para tratamento de glaucoma também foi cortado. O quadro de funcionários foi enxugado e 30% do atendimento geral, incluindo as consultas, foi reduzido. “Cheguei às 8h25”, disse a empregada doméstica Luciana Maria Ferreira. Por volta das 11h ela ainda aguardava o atendimento na porta da unidade de urgência que fica no bairro da Boa Vista. “Vim por causa de um pequeno cisto na pálpebra, porém também tenho glaucoma. Faz um ano que tento marcar uma consulta com um oftalmologista para ele passar a receita dos meus óculos, mas não consigo”.
Roberto Requengo é ex-funcionário da FAV. Ele é técnico em enfermagem e presta serviços acompanhando pacientes que vêm do Interior do estado para consultas, sobretudo idosos. “A gente tem que ir e voltar diversas vezes com pacientes idosos porque eles não conseguem ser atendidos. Antigamente a espera para uma consulta não durava nem três meses, hoje chega a um ano”, comentou.
A crise da Fundação Altino Ventura se agravou tanto que, ainda no fim do ano passado, a entidade ameaçou encerrar os atendimentos de emergência nas suas unidades, incluindo as que funcionam no Recife. Somando os custos com anestesias, os atendimentos consomem R$ 600 mil por mês.
O Ministério Público de Pernambuco, que instaurou inquérito civil (nº 059/2018) para apurar as denúncias da FAV e os repasses feitos pelo Estado, tenta mediar um acordo entre o poder público e a entidade privada para evitar o colapso nos atendimentos. No inquérito, a administração do Altino Ventura deixa claro que “não tem condições de realizar o atendimento de todos os casos de oftalmologia de Pernambuco”.
Em audiência realizada em fevereiro deste ano foi ajustado um plano de redirecionamento, onde estão previstas reuniões periódicas entre a administração da FAV e os gestores da Secretaria de Saúde. O Governo do Estado também se comprometeu a descentralizar os atendimentos oftalmológicos para outras unidades da rede pública como o Hospital das Clínicas, UPA Torrões e Hospital Hermilo de Moraes.
“É de se estranhar que, durante mais de 20 anos o Altino Ventura tenha sido o único serviço de oftamologia em Pernambuco. Somente agora, diante da crise, é que o Governo do Estado resolveu descentralizar”, comentou Felipe Ferrão, assessor da promotora de Saúde Ivana Botelho, que está a cargo do inquérito. Além do Estado, a Prefeitura do Recife também mantém contrato com a FAV. O valor mensal é de R$ 119 mil pagos com recursos do SUS mais R$ 80 mil oriundos do Tesouro municipal.
Os atrasos nos repasses do Governo do Estado à Fundação Altino Ventura fazem parte do bolo de pendências da atual gestão com uma longa lista de fornecedores. A FAV estaria no quinto lugar desse ranking, em se tratando do volume da dívida, de acordo com o deputado João Paulo Costa (Avante), que denuncia o crescimento dos restos a pagar (despesas empenhadas, mas não pagas até 31 de dezembro) nos últimos dez anos. A dívida total estaria na casa dos R$ 1,2 bilhão.
“Nessa lista estão fornecedores de medicamentos e prestadoras de serviços essenciais”, disse, citando cirurgias canceladas na FAV e problemas no Lafepe (Laboratório Farmacêutico do Estado), que estaria com um saldo de R$ 8 milhões para receber.
A falta de transparência da gestão pública torna a checagem desses dados quase impossível. Em nota, a Secretaria Estadual de Saúde disse que “mantém a regularidade nos repasses mensais à FAV e que, apenas neste ano, a instituição já recebeu um total de R$ 9,8 milhões da SES”. Mas o Portal da Transparência mostra o pagamento de R$ 8,2 milhões.
A administração da Fundação Altino Ventura, que não quis conversar com a reportagem, reclama um saldo devedor de R$ 12 milhões da SES no inquérito aberto pelo MPPE. Mas se considerarmos todos os CNPJs vinculados à instituição no Portal da Transparência (são cinco diferentes) e os valores em aberto acumulados desde 2016, o saldo devedor do Governo do Estado com a instituição chega na casa dos R$ 30 milhões. O cálculo foi feito considerando os valores liquidados menos os pagos.
O volume dos repasses também encolheu. Anualmente, os dados do Portal da Transparência mostram tanto a redução dos repasses, quanto os atrasos recorrentes. A SES informou que a diminuição do quantitativo do repasse se deve à redução dos contratos do Altino, que deixou a gestão do Hospital Mestre Vitalino (HMV) em 2015 e da Unidade Pernambucana de Atenção Especializada (UPAE) de Caruaru no ano passado.
A dificuldade de checagem dos repasses e contratos das Organizações Sociais (OSs) da área de saúde não é apenas um problema para reportagem. De tão obscuras, essas questões chamaram atenção do Tribunal de Contas do Estado (TCE-PE) e do Ministério Público Federal em Pernambuco (MPF-PE). O TCE-PE constatou que, apenas em 2017, o Governo do Estado repassou R$ 1,2 bilhão a essas organizações, mas faltavam informações como notas de empenho. O valor de repasses aumentou muito considerando que, em 2014, o total foi de R$ 144 milhões. O MPF-PE instaurou ação civil pública contra o Estado de Pernambuco e as organizações, além de uma ação de improbidade administrativa contra o governador Paulo Câmara e o ex-secretário de Saúde José Iran Costa Júnior.
No começo deste ano,o TCE-PE enviou um alerta à Secretaria de Saúde sobre um suposto desvio de R$ 2,2 milhões da OS que administra o Hospital Miguel Arraes. Um ex-diretor do hospital teria desviado o valor da Fundação Imip, responsável pela unidade de saúde. O episódio jogou novas dúvidas sobre o controle e a fiscalização do dinheiro público repassado às OSs.
“Não existe transparência dos recursos SUS repassados às OSs em Pernambuco”, afirmou o procurador geral do Ministério de Contas Públicas, Cristiano Pimentel. “Por exemplo, quando queremos saber quanto ganha um médico que trabalha na rede própria facilmente conseguimos ver no Portal da Transparência. Mas, em relação às OSs, não temos como ver. Quanto essas instituições gastam com insumos e com medicamentos?”, questionou.
Depois que o MPF instaurou inquérito sobre a questão, a SES passou a disponibilizar dados de transferências ao terceiro setor. “No entanto, entre 2011 e 2018, o destino dos recursos repassados às organizações sociais de saúde continuam sem controle social”, informou a procuradora da República Silvia Regina Pontes Lopes. “É preciso saber o caminho do dinheiro, desde sua liberação pela Secretaria de Saúde até a empresa contratada pela organização”, considerou.
Enquanto governo e instituições privadas travam batalhas financeiras, a população permanece desassistida. Sem qualquer resposta ou orientação do governo, Janaína, mãe de Gustavo, não teve outra escolha senão pagar os R$ 120 pela consulta na clínica Proocular. Agora a família tem até o próximo dia 28 para pagar os R$ 1,4 mil pela prótese, prazo no qual a validade da consulta expira, ou podem perder o material. “Se não conseguirmos o dinheiro até lá, perdemos a prioridade na prótese que já está pronta e se ajustou perfeitamente em Gustavo. Teríamos que pagar uma nova consulta e, talvez, uma taxa extra caso uma nova prótese tenha que ser confeccionada e trazida de São Paulo”, contou. Nesse caso, o valor do tratamento passaria para R$ 1,7 mil.
Desempregada, Janaína tenta ganhar alguns trocados vendendo confeitos e lanches na frente de casa. O marido dela ganha um pouco mais do que o salário mínimo fazendo bicos no comércio. Eles têm mais dois filhos além de Gustavo, um menino e uma menina. O aluguel da casa da família custa R$ 550 por mês e os gastos domésticos subiram muito depois do que aconteceu ao estudante. Por mês, Gustavo gasta 40 unidades de colírio, que custa R$ 39 cada, mais 12 de pomada, ao custo de R$ 12 cada. “Isso sem contar as despesas que a gente tem com transporte para consultas e todos os remédios caros que compramos durante a recuperação dele”, comentou.
Janaína já bateu em tantas portas para pedir ajuda, que se diz cansada. O silêncio das instituições é frustrante. Até agora, o único auxílio veio apenas de vizinhos e familiares. Gustavo contou que muitos amigos que estavam presentes quando ele levou o tiro se afastaram por medo de represálias da polícia. Disse também que já se adaptou à nova condição, inclusive está acompanhando algumas atividades escolares em casa, com exercícios enviados pelos professores.
Calado na maior parte do tempo da minha visita – a primeira vez que nos encontramos depois de meses de contato com a família, desde a primeira matéria- Gustavo não esboçou qualquer sentimento de revolta diante da situação. Soltou poucas frases para comentar o dia do incidente e, apenas quando o provoquei com comentários sobre artistas do passinho e jogos do Sport, ele esboçou um sorriso. Quando perguntei se ele tinha raiva do policial que atirou, Gustavo fez apenas um sinal negativo, baixou a cabeça e se refugiou no silêncio.
Jornalista formada pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e pós-graduada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi repórter de Economia do jornal Folha de Pernambuco e assinou matérias no The Intercept Brasil, na Agência Pública, em publicações da Editora Abril e em outros veículos. Contribuiu com o projeto de Fact-Checking "Truco nos Estados" durante as eleições de 2018. É pesquisadora Nordeste do Atlas da Notícia, uma iniciativa de mapeamento do jornalismo no Brasil. Tem curso de Jornalismo de Dados pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e de Mídias Digitais, na Kings (UK).