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Poesia falada: flecha política e mobilização na periferia do Recife

Débora Britto / 05/01/2018

O slam ou poetry slam, na tradução para português, “poesia falada” consiste numa batalha de poesia em que as armas são o corpo, a própria voz e a performance “despida” de recursos de recitar um texto poético.

O slam nasce na década de 1980, em Chicago, como um dos movimentos de desdobramento da cultura do Hip Hop – especialmente do RAP (abreviatura de rhythm and poetry ou ritmo e poesia, em inglês). Segundo Afrika Bambaataa – cantor, DJ (disc jockey) e produtor musical afroamericano conhecido como um dos pais da cultura Hip Hop ela seria composta pelas expressões artísticas do RAP, djing (DJ), breakdance e o grafiti. Isso na década de 80, nos Estados Unidos.

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Slam da Resistência, em São Paulo, dia 4 de dezembro. Foto: Débora Britto

De lá para cá, até chegar no Brasil no início dos anos 2000, o slam e a cultura Hip Hop se espalham com outras interações com a moda, dança e ativismo político, por exemplo. No Brasil, começou seu percurso em São Paulo, com experiências como o Slam da Resistência – toda primeira segunda-feira do mês na Praça Rooselvelt, no centro de São Paulo, que reúne dezenas de pessoas para recitar e ouvir poesia.

Slam é uma batalha de poesia, com textos autorais, que podem ser escritos antes ou improvisados. Geralmente cada poeta tem 3 minutos para recitar – apenas com corpo, voz e expressões – o texto. A votação é organizada na hora, com pessoas do público que foram o júri e levantam placas ou gritam as notas após as apresentações. A princípio, qualquer pessoa passando na hora que parar para assistir pode participar e avaliar as e os poetas.

No Recife, diversas experiências de recitais, poesia marginal, batalhas de rima e mobilização acontecem nas periferias por anos sem reconhecimento de quem estava “fora”. Fomos em busca desses movimentos poéticos e políticos que agora ocupam rodas de conversa, manifestações e contagiam pessoas a escrever e recitar também versos. Há um encontro de uma nova geração com quem há tempos mantém uma cultura do Hip Hop no Recife.

É o caso do Slam das Minas PE, em que não é permitido falas homofóbicas, machistas ou racistas, do Recital Boca do Trombone, localizado em Água Fria, na periferia da zona norte recifense, e de outros encontros e circuitos de poesia falada e RAP.

Ponta de lança: as mulheres no slam e na poesia 

“Respeita a capitania de Zumbi dos Palmares, símbolo da negra luta”, declama Isabella Puente, ou Bell Puã, como prefere ser identificada a artista recifense de 21 anos que ganhou o Campeonato Slam BR 2017 – e seguirá para representar o Brasil em Paris, na França, em maio de 2018. Vídeos de Bell na final da competição invadiram as timelines e notícias pernambucanas em dezembro e muitas pessoas passaram a procurar saber do que se trata o slam, muitas sem saber exatamente de onde esse movimento surgiu aqui.

Bell conta que começou a recitar apenas no início de 2017. Havia descoberto pela internet os slams, mas não conhecia experiência no Recife. Em maio surge o Slam das Minas PE e ela já estava junto às dezenas de mulheres que apareceram na primeira edição no Recife, na Rua da Aurora.

Bell Puã. Slam BR 2017. Foto Sérgio SilvaDivulgação

Bell Puã após vitória no Slam BR 2017, em São Paulo. Foto Sérgio Silva – Divulgação

Ela cita Miró da Muribeca, poeta marginal das ruas recifenses, símbolo de uma resistência artística que ainda vive da interação das ruas. Consumismo, black friday, colonialismo, Fora são temas que Bell articula numa só poesia – recitada com energia, ritmo, por vezes entoando alguma canção.

“Para mim slam é poesia doída e agressiva”, explica Bell. Apesar disso, uma das poesia que recitou na semifinal e final da competição apresentava uma característica diferente. Mais do que falar de dor, citava com orgulho e firmeza sua história. Apesar disso, era uma poesia que ela sequer considerava recitar, mas foi aconselhada por amigos e outros competidores. “Achei que foi importante. Ela exalta meu lugar”, reflete.

Discute racismo e aponta as fragilidades do chamado “racismo reverso” ao mesmo tempo que exalta a dignidade de quem vive do trabalho honesto apesar de ser apontado e enxergado pela sociedade como “bandido”. “Meu tio apenas criança já sentenciavam: esse aí vai dar para bandido. Com muita dignidade meu tio limpa o chão do Rio de Janeiro”.

Versos como “queria eu que racismo fosse ser só chamada de branquela” provocam comoção generalizada na plateia.

Em Pernambuco, o Slam das Minas PE nasce do desejo das poetas e ativistas Patricia Naia e Amanada Timóteo como num impulso por construir espaços em que as mulheres tivessem um ambiente confortável para expressar suas poesias – muitas delas que questionam o machismo, o patriarcado, a heteronormatividade.

Nos encontros, que aconteceram na rua da Aurora, centro do Recife, as vozes de meninas e mulheres de diversas idades ecoam versos e gritos de liberdade, poder e emancipação. No Slam das Minas, no entanto, regras e orientações que evitassem discursos de discriminação não foram necessárias. Para ela, havia uma carência de encontros de poesia em que o acolhimento e escuta real das mulheres acontecesse. “Só estava faltando ele (o espaço) existir. Todo mundo já sabia o que fazer quando chegou”, conta ela, com uma pontada de orgulho perceptível.

O orgulho não é à toa. Durante recitais de poesia meninas como Ane, de 19 anos, vinda do interior do estado, que confessa de modo tímido que só naquele espaço se sentiu confortável e teve coragem para falar em voz alta seus escritos. Relatos como esses provam a importância do Slam das Minas. “O slam tirou muitas mulheres do lugar onde estavam quietinhas. Para as mulheres periféricas é muito importante”, avalia Amanda.

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Cris Andrade, Amanda Timóteo e Patricia Naia, do Slam das Minas PE.

Entre tantos depoimentos de acolhida, os desafios também estão colocados. Naia e Amanda contam que muitas pessoas chegaram a questionar a validade da iniciativa. “O mundo do Hip Hop é predominantemente de homens, mas a gente precisa fazer esses enfrentamentos. Às vezes a gente não acredita que pode fazer algo. Não desistir foi o maior desafio”, conta Amanda.

Para Naia e Amanda os meses de experiência e explosão do Slam das Minas PE deram ânimo para levar a experiência para outros lugares, grupos sociais, inclusive, para interior do estado. Elas estão organizando um curso de “slammaster”, que é a pessoa que apresenta e conduz os eventos. Na oficina, vão apresentar a história, os ritos, filosofia e proposta política de como nasce o slam.

“Não tinham grandes sentimentos de competitividade, a gente estava fortalecendo uns aos outros”. Apesar da expansão do slam, ainda há uma concentração no Sudeste. Bell cita o fato de a etapa final ter representação de apenas uma mulher para toda a região do Norte do país.

Para Bell, apesar da importância de espaços como os slams, não são suficientes para dar conta de uma formação política, ainda que ajudem. “Formar politicamente é muita coisa. Para isso é preciso estudar história, usar o dicionário, viajar em sinônimos, revisitar o que você escreve”, dá a dica.

“É muito massa ver as mulheres à vontade nos lugares. E também dizerem que precisavam de um lugar assim. Voltar de São Paulo com vitória de Bell é dizer para as minas daqui que é possível para elas também”, comemora Naia.


Clique no botão para ouvir.

Boca no Trombone: versos periféricos miram o centro de debates políticos

É na Praça do Peneirinha, em Água Fria, periferia do Recife, que meninas, meninos e gente mais experiente nas cenas do Hip Hop recifense se encontram toda terça-feira à noite no Recital Boca no Trombone  para batalhar com versos sobre racismo, política, cultura, sistema falido de educação, desigualdade social, violência policial, machismo e construção de afetos.

Gente grande de 14 anos faz poesia engajada questionando o porquê da pele preta sofrer discriminação e outras não. Outros, no alto nos 17 anos e já experientes e famosos na cena, arranjam com ritmo e cadência reflexões sobre desigualdade ao mesmo tempo em que exaltam a dignidade de quem levanta todos os dias na favela para ganhar a vida no Centro. Meninas e mulheres provocam minutos prolongados de palmas e gritos quando recitam sobre suas vidas, seus corpos, contra o machismo e a objetificação das mulheres.

“O rolê político é bem forte”, conta Maria Helena, organizadora do Recital Boca do Trombone, que explica o evento como um movimento cultural independente. Ela começou a frequentar o há dois anos e há cerca de um ano se mudou para Água Fria e assumiu a frente da mobilização. Às

Uma coisa importante no recital é o registrado em vídeo e publicação nas redes sociais. Maria Helena cuida dessa parte e conta que muita gente vem conhecendo e chegando por lá depois de ver na internet.

Diferente de outros espaços em que a cultura das “batalhas de sangue” é forte, lá os duelos são baseados no conhecimento e desenvoltura na criação pelo improviso. As Batalhas de Conhecimento, com são chamadas, desafiam quem está na roda a criar a partir de informações compartilhadas na abertura da competição. “O rolê é observar a nossa realidade e observar ao redor e ver o que a gente tá vivendo em vez da gente estar se atacando. É o que o poder quer é a gente se matando. Não precisa nem mandar a polícia, basta uma favela contra a outra”, explica Maria Helena.

Apesar de alguns temas serem bastante amplos, a experiência mostra que os meninos e meninas traduzem para suas realidades e criam em cima dela. “Os meninos sabem falar sobre desigualdade, por exemplo. Falam sobre famílias que tão vivendo com menos de R$ 220, que é um quarto do salário mínimo. Os meninos de 14 anos estão falando sobre que R$ 65 já vai o botijão (de gás), que se faz gato a Celpe reclama” defende.

Mais do que a forma e precisão técnica e artística, chama atenção o conteúdo politizado das letras recitadas. “A gente já tem conhecimento suficiente sobre relação de poder, sendo mulher e sofrendo preconceito no meio do Hip Hop. A partir disso eu procuro subverter isso dentro da batalha”, conta Maria Helena.

Faxa, com apenas 17 anos, vem se destacando nos recitais e já é um nome de respeito para os mais novos. Para ele, cada letra que escreve tem um tempo próprio para chegar ao ponto de ser declamada em público. Quando acaba, ele ainda troca ideia para saber se chegou onde queria, se a mensagem ali é aquela que pensou.

No dia a dia, Maria Helena – que, curiosamente, não recita – conta que recebe por whatsapp poesias e escritos do pessoal, que se prepara durante a semana para os recitais. “É tipo uma grande família, claro que com os pequenos tenho uma relação mais próxima”.

Para ela, que quando chegou ao recital tinha “mais batalha e pouca poesia”, a ideia central é incentivar o conhecimento, rodas de conversa e o empoderamento acontece. “De sangue já basta”, diz.

Inclusive, o “grito de guerra” do recital dá a dica de que ali, na praça ou no campinho em Água Fria, pode estar acontecendo mais do que batalhas de poesia, quem sabe uma revolução armada com versos.

Tem que conscientizar no Mike, focar no argumento.
O que acontece aqui?
Batalha de conhecimento!

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Às vésperas dos festejos de Natal, no sábado 23 de dezembro, o Festival da Juventude Periférica: Colocando a Boca no Trombone, em Água Fria. Clique na imagem para assistir à reportagem.

O RAP não muda vidas

Okado, nome artístico de Ellan Barreto, 25 anos, rapper, dançarino e realizador audiovisual que começou a cantar e fazer RAP aos 11 anos de idade, lança a ideia em algum momento da entrevista. Ele, que já é conhecido na cena recifense do Hip Hop, não faz sentido pensar a arte desconectada de uma postura pessoal, que pode ser exemplo para as meninas e meninos que agora estão chegando aos recitais e slams.

“Eu costumava dizer que o Hip Hop salvou minha vida, mas não foi. Quem salvou minha vida fui eu, seguindo o exemplo de alguém que me mostrou outras alternativas e que eu podia ser diferente”, conta Okado, que é do Canal do Arruda e vive lá até hoje. Como artista, ele assume a responsabilidade por aquilo que canta e o exemplo que passa para quem está começando.

“Eu fico com medo de como eu vou passar uma mensagem. A galera entende errado como você se expressa. Muitas vezes os meninos só precisam de alguém que dê a mão e procuram, e se não formos nós, será o primeiro que aparecer, explica.

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Para ele, o fato de hoje existirem mais referências do que quando ele começou ajuda, mas por outro lado tanta informação dispersa pode enfraquecer o teor de engajamento e posição política que acompanha o Hip Hop na sua criação.

Apesar disso, o fato de a expressão artística não ser tão criminalizada atualmente é positivo. “Era visto como coisa de marginal, como se começar a cantar RAP fosse virar bandido”, relembra, citando inclusive as ameças da mãe que, preocupada, dizia que nele bateria se cantasse RAP. “Ninguém saía de casa para participar de um evento de rima e ganhar um prêmio. Hoje já tem uma estrutura, as pessoas se preparam, se esforçam para serem reconhecidos nos eventos”, avalia.

Perguntado sobre o que seria “marginal” na poesia e letras que faz, ele provoca o significado comum de marginalidade como negativa. “Eu me vejo marginal, mas é na margem do Canal do Arruda”, brinca. Para ele, ressignificar a ideia de periferia como negação de possibilidades faz parte da sua arte.

“Hoje eu vivo mais o que eu canto. Eu paro e penso que eu estou realmente fazendo aquilo que a música fala. Procuro fazer com as crianças da minha favela, porque aí elas vão ver o exemplo”, conta o rapper.

Para Okado, atualmente há no RAP e o crescimento de narrativas que incentivam o empoderamento negro e das mulheres. A própria presença de mais mulheres tomando a voz, escrevendo e recitando suas letras com força e fúria de quem passou muito tempo silenciada. “Dos últimos quatro anos para cá os lugares em que você aprende mais é nos rolês das minas”, conta.

“Muitas vezes o que a mina tá falando o cara percebe que é algo que a sua mãe passou”. Segundo ele, há um momento que “cai a ficha” e percebe a potência e urgência do que as mulheres estão falando. Okado defende que não só as mulheres ocupem os espaços, mas que os homens parem e escutem, realmente, o que estão dizendo.

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AUTOR
Foto Débora Britto
Débora Britto

Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.