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Uma campanha contra o entretenimento de horror

Luiz Carlos Pinto / 22/02/2017

Suspeito (o que significa não julgado e sob proteção do Estado), negro, pardo, pobre. Mas também as vítimas e as famílias das vítimas. Quase todos negros, pardos e pobres, ou quase brancos. Esse é o perfil dos sujeitos desrespeitados em seus direitos nos programas policialescos de rádio e TV. O que é evidente para quem acompanha essas atrações da grade de algumas emissoras ganhou mais precisão no terceiro volume da pesquisa “Violações de direitos na mídia brasileira”, produzido pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI). O documento expõe o escandaloso quadro de um ramo da comunicação comercial brasileira que tem misturado a propaganda (ideológica) e o “entretenimento de horror”.

A pesquisa (baixe aqui) justifica com sobra a campanha ‘Mídia sem violação de direitos‘, que será lançada na cidade do Recife na noite dessa quarta-feira, na Universidade Católica de Pernambuco. A iniciativa de diversas organizações, ativistas e estudiosos está associada a uma plataforma de denúncias de violações de direitos que podem ser feitas pela população.

“A nossa primeira tarefa é sensibilizar e mobilizar a sociedade sobre as violações. Muita gente ainda não sabe quais são seus direitos (preservação da intimidade, presunção de inocência etc.) e por isso não consideram humilhantes os casos que atentam contra a dignidade humana como violação”, afirma Ana Mielke, do Coletivo Brasil de Comunicação (Intervozes), uma das instituições a promover a campanha ‘Mídia sem violação de direitos’. A campanha em si tem uma inspiração anterior, que é a Campanha Quem financia a Baixaria é Contra a Cidadania, que teve bastante incidência na opinião pública nos primeiros anos da década de 2000.

“As denúncias coletadas formarão um repositório de relatos que demonstram o desrespeito a diversos aspectos legais. Os mais graves serão encaminhados ao Ministério Público. A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) também está engajada na promoção desta campanha. A ideia é que seja um repositório permanente. As informações serão apuradas e confirmadas e, sendo comprovadas, serão abertas e públicas”, completa Mielke.

Os volumes da pesquisa “Violações de direitos na mídia brasileira” permitiu produzir um impressionante ranking com os programas que mais desrespeitam a legislação – as denúncias inclusive devem produzir uma atualização permanente dessa lista. A quantidade de violações é absurda.

A pesquisa ‘Violações de direitos na mídia brasileira’

Em 21 programas de Belém (PA), Belo Horizonte (MG), Brasília (DF), Campo Grande (MS), Curitiba (PR), Fortaleza (CE), Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA) e São Paulo (SP), analisados entre 2 e 31 de março de 2015, foram identificadas 4.500 violações às leis que já existem na Constituição federal de 1988 e inúmeras leis infraconstitucionais como o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n 8069/1990), Lei do Genocídio (Lei 2889/1956), Código do Processo Penal (Lei 3.689/1941), Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei 4117/1962), entre outros. Se inclui as ocasiões em que as reportagens dos programas analisados violam cada uma das leis em vigor no país o número de infrações passa de 15 mil.

Os desrespeitos à Constituição Federal do Brasil, Código Civil Brasileiro e Código Brasileiro de Telecomunicações (leis nacionais, sendo a última específica do setor); Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros (norma autorregulatória); Convenção Americana sobre Direitos Humanos e Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (dispositivos multilaterais) somaram 1.928 ocorrências.

Outras três leis de grande importância para o campo da comunicação de massa também foram infringidas em quantidades expressivas. Uma nacional — o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão (1.866 vezes); e duas multilaterais: a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1.801) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1.849).

Outras normas foram desrespeitas pelas narrativas dos programas policialescos em quantidades menores, mas ainda assim significativas. Entre as nacionais, estão o Código Penal Brasileiro (127); a Lei 7.716/89, que define os crimes de preconceito de raça ou de cor (17); a Lei 9.455/97, sobre tortura (09); a Lei de Execução Penal (300); o Estatuto da Criança e do Adolescente (78) e o Estatuto do Idoso (50).

O terceiro volume da pesquisa acompanhou programas veiculados entre 2 e 31 de março de 2015, abarcando as cidades de Belém (PA), Belo Horizonte (MG), Brasília (DF), Campo Grande (MS), Curitiba (PR), Fortaleza (CE), Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA) e São Paulo (SP).

Cardinot na lista

Na capital pernambucana, SOS Cardinot é o legítimo representante de um gênero já mencionado que se situa entre a propaganda (ideológica) e o “entretenimento de horror”, na qual se mescla a informação sobre os acontecimentos, com recursos ficcionais e humorísticos. A pesquisa afirma que essa mistura provoca transformação significativa na natureza do discurso emitido, discurso esse que trata de dramas humanos extremados.

Diz o texto: “além de graves violações de direitos e níveis elevados de desrespeito a normas regulatórias e autorregulatórias, tais produções caracterizam-se por discursos unidirecionais, excessivamente opinativos e desprovidos de diversidade de fontes de informação e de pluralidade de pontos de vista, entre outros atributos qualitativos vinculados à imprensa”.

A consequência mais imediata e visível dessas atrações é a banalização da ideia de justiçamento. O documento mostra a proximidade entre as narrativas sobre violências físicas e ocorrências de violências físicas, a partir da defesa ou estímulo — no mínimo, legitimação — de execuções, linchamentos e tortura como formas de enfrentar as violências e criminalidades no País.

O linchamento, aliás, que faz parte de nossa cultura – cerca de um milhão de brasileiros participaram de linchamentos nos últimos 60 anos da história desse país. Um total de 2.028 casos de linchamento subsidiam a análise que o sociólogo Jessé de Souza faz no livro Linchamentos – a justiça popular no Brasil, no qual o sociólogo estima que, no Brasil, acontece um linchamento no Brasil.

SERVIÇO

Lançamento da Campanha Mídia sem violação de direitos.

Dia 22, às 18h, Sala 510, Bloco A, Unicap

 

Sobre o tema você pode ouvir o Programa Fora da Curva, que foi ao ar no dia 20 de fevereiro na Universitária FM 99,9 MHZ

AUTOR
Foto Luiz Carlos Pinto
Luiz Carlos Pinto

Luiz Carlos Pinto é jornalista formado em 1999, é também doutor em Sociologia pela UFPE e professor da Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisa formas abertas de aprendizado com tecnologias e se interessa por sociologia da técnica. Como tal, procura transpor para o jornalismo tais interesses, em especial para tratar de questões relacionadas a disputas urbanas, desigualdade e exclusão social.