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522 anos de resistência indígena no Nordeste e não queremos o seu ‘parabéns’

Marco Zero Conteúdo / 11/08/2022

Ritual Menino do Rancho, Território Pankararu, 2019. Crédito: Arquivo Pessoal

* Por Bia Pankararu

Há poucos dias, em 9 de agosto, tivemos como data comemorativa o Dia Internacional dos Povos Indígenas. Dia criado em 1994 pela ONU para celebrar e fortalecer a existência dos povos originários no mundo, afirmação cultural, de identidade, memória e uma caminhada árdua e constante para garantia de direitos humanos, políticas públicas e investimentos reais para subsistência e bem viver desses povos.

Entretanto, enquanto indígena que vive em território o ano inteiro, percebo que datas como essa não conseguem chegar nem perto do que poderia significar nos dias atuais. Enquanto existe um interesse crescente em parte da sociedade em relação aos povos indígenas, ainda é pouco diante dos séculos de histórias mal contadas e meias verdades.

Nosso apagamento na história da formação da identidade brasileira gera interpretações folclóricas sobre nós e nossa visão de mundo e de vida. Se eu parar em qualquer rua de qualquer cidade de Pernambuco e dizer que o estado tem 17 territórios indígenas e mais alguns ainda em resistência, saibam, o espanto é real.

Perdi a conta de quantas vezes, em Recife, precisei explicar que sim, em Pernambuco tem territórios demarcados, homologados, e no meio da conversa ouvir “mas vocês não tem cara de índio não” ou “mas índio de verdade já não existe mais”. Como dialogar sobre povos e territórios indígenas em 2022 enquanto habita no imaginário coletivo a imagem do indígena de1500?

Como explicar, todo dia, que os povos indígenas do Nordeste foram os que mais sofreram com o contato dos colonizadores e suas interferências culturais, de língua e território, com a exposição de doenças, conflitos, escravidão, extermínio do corpo e da memória da gente que já habitava nessa parte do continente que um dia se tornaria Brasil? Esse contato, que dura desde a primeira caravela aportada em nosso litoral, faz com que o Nordeste seja a região do país que em que há mais tempo os povos indígenas precisaram desenvolver estratégias de sobrevivência e resistência.

Como, depois de 522 anos, ainda nos cobram que sejamos iguais? Coisas assim a gente precisaria aprender na escola, mas as crianças chegam em casa no 19 de abril cantando a musiquinha da Xuxa, “índio quer apito”, e de novo reforçando o imaginário desse “índio” fantasioso, distante e fora da realidade geral da sociedade.

Em Pernambuco, somos Pankararu, Pankararu Entre Serras, Atikum, Pankará, Pipipã, Kapinawá, Kambiwá, Truká, Tuxi, Tuxá, Fulni-ô, Pankaiwká, Xukuru, Xucuru de Cimbres e somos mais. Somos múltiplos e ainda não chegamos perto de termos um diálogo de entendimento diante de nossas diferenças e semelhanças. No campo das tradições, estamos conseguindo manter o que nossos antepassados deixaram, mas não estamos lidando bem com a herança colonial que permanece nos colocando às margens da cidadania plena de direitos.

Seguimos sendo os primeiros homenageados e os últimos a serem considerados importantes nas tomadas de decisões e no cenário social e político desde que esses cenários existem no país.

Assim como é difícil começar a entender a perspectiva indígena levando em consideração o processo de colonização, para nós, que vivemos essas questões diariamente, também é difícil e muito cansativo ainda precisar explicar que hoje se usa ‘indígena’ e não “índio”, que não andamos todos nus, que não falamos todos o tupi guarani, que não foi descobrimento, foi invasão. Ainda demora muito pra gente chegar nesse pé de entendimento, pra conseguirmos avançar em temas que nos são também urgentes.

Saúde, educação, infraestrutura, saneamento básico, emprego, segurança alimentar, abastecimento de água, o médico e o postinho de saúde nos são urgentes. Violência conta mulher, fome, abuso sexual, alcoolismo, homofobia, machismos, adoecimento mental e emocional, vulnerabilidades mil em todos os territórios e o que ganhamos são homenagens a nossa resistência.

Até quando a visão romântica e idealizadora de como são os territórios vai encobrir e sustentar tantos problemas estruturais e éticos que pioram dia após dia? Os conflitos no campo estão cada vez mais violentos e as perseguições mais intensas. Os Povos estão crescendo e junto deles os problemas que afetam toda a sociedade somadas as problemáticas que triplicam em caso de territórios indígenas.

Precisamos preservar a memória do que nos fortalece e traçar estratégias contra o que nos enfraquece. Infelizmente, por todos os lados, as violências e violações nos territórios têm crescido consideravelmente e não somos capazes de levantar certos debates e mexer em algumas feridas.

De usina eólica no povo Kapinawá, usina nuclear ameaçando os Pankará e todos os outros povos indígenas e quilombolas, os impactos não reavaliados das usinas hidroelétricas e todo distanciamento que a CHESF impõe aos indígenas e povos tradicionais do Rio São Francisco.

Enquanto isso, o povo Pankararu ainda vive incertezas e muitos boatos sobre a população pagar energia elétrica depois de décadas de linhas de transmissão cortando todo território sem distribuição elétrica adequada e segura, prejudicando escolas, danificando bens e causando acidentes fatais ao longo da história. Já existe, só ao redor de Pankararu, a usina hidroelétrica da CHESF e a usina híbrida de energia eólica e solar, mas não existe fornecimento energético de qualidade à população que vive ao lado das usinas.

Se não bastasse, ronda um burburinho local sobre a vinda de mais uma usina eólica, agora para dentro dos limites da reserva Pankararu e a prefeitura de Tacaratu pretende construir um complexo turístico numa serra que também faz parte da reserva indígena, obra essa avaliada em 9 milhões e, segundo os defensores do projeto, a obra vai acontecer com “a peste dos índios querendo ou não” e que somos “burros em não querer um investimento desse”. Investimento e benefício para quem?

Enquanto a cidade sonha com esse tipo de investimento para o progresso da economia local, minha aldeia Agreste, por exemplo, sonha com a construção do postinho de saúde há mais de quinze anos enquanto as equipes da SESAI atendem na igrejinha local. Meu povo sonha com a coleta de lixo que nunca existiu, com a conclusão de obras que levam anos para finalizar, com o abastecimento de água regular, com geração de renda sem precisar vender ou privatizar o pouco território que nos resta.

É possível um caminho de desenvolvimento social e econômico mais justo e respeitoso com os povos tradicionais, mas nenhum caminho será benéfico sem a nossa participação.

Acredito que ocupar os espaços políticos é sim um bom caminho para fortalecer as pautas indígenas, ninguém melhor para falar de nós do que um ou vários dos nossos.

Recentemente foi lançada uma chapa de candidatura coletiva indígena com representantes de 5 etnias do estado. O Coletivo Indígena vem pela primeira vez organizado para disputar uma cadeira na Assembleia Legislativa de Pernambuco e essa organização me enche os olhos para como estamos conseguindo nos organizar politicamente. Esse movimento já é histórico e pode despertar mais intensamente a importância dos povos indígenas nos processos eleitorais e de representatividade.

Ao mesmo tempo penso que ainda precisamos muito nos organizar e nos fortalecer internamente enquanto Povos tradicionais. Não é tradição de nenhum Povo violentar seu próprio Povo. Casos graves de homofobia se perpetuam nos territórios com muita naturalidade, assim como violência contra mulheres, crianças e adolescentes também são negligenciadas, silenciadas e esquecidas.

O racismo religioso e a evangelização de muitos indígenas geram vários desentendimentos e conflitos. Estamos em falta com a juventude, em trazer mais gente pra perto dos movimentos, em somar forças com quem está chegando para fortalecer as próximas gerações. Como fortalecer o futuro se não fortalecendo o presente? Quando deixamos de entender que um indivíduo do Povo violentado representa toda uma comunidade violentada, perdemos o senso de coletividade.

São tantas complexidades em cada território que fica difícil acompanhar todas as investidas que ameaçam os direitos coletivos e, muitas vezes, o problema começa com quem deveria nos defender. Espero ansiosa pelo momento em que falarei mais sobre como ser indígena é significante, como nossos povos mantém a sanidade da natureza e como me orgulho de pertencer a uma nação indígena, mas por hora, só consigo deixar meu temor pelo futuro trágico que o progresso anuncia.

*Bia Pankararu tem 28 anos, é mulher indígena, sertaneja, mãe de Otto, LGBT+, técnica em enfermagem e produtora cultural e audiovisual. Ativista pelos direitos humanos e ambientais. Comunicadora da rede @povopankararu.

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