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Crédito: Inês Campelo/Marco Zero
No dia 5 de fevereiro, o Plano Diretor Cicloviário (PDC) da Região Metropolitana do Recife completa cinco anos. Quase nada saiu do papel até agora. Os argumentos oficiais são diversos: ausência de verba, de um marco legal, de diálogo entre os atores públicos. Mas, em cinco anos, o que faltou mesmo foi prioridade para tratar a bicicleta como um modal de transporte ativo – e não apenas lazer e turismo -, abrindo espaço seguro em meio à poderosa “carrocracia”, sobretudo para beneficiar quem mora no subúrbio, fatia da população que mais precisa dessa infraestrutura.
No Recife, 81,6% das pessoas que utilizam a bicicleta como meio de transporte têm renda de até dois salários mínimos, 91,4% pedalam cinco dias ou mais por semana e 88,6% fazem uso apenas da bike, sem combiná-la com nenhum outro modal. Os dados são da Pesquisa Perfil do Ciclista 2018, organizada pela organização da sociedade civil Transporte Ativo e pelo Labmob-UFRJ. A parceria no Recife foi com a Ameciclo (Associação Metropolitana de Ciclistas do Recife).
O Plano Diretor Cicloviário, que nunca virou lei, com prazos e orçamento assegurados, previa 590 km de rotas cicláveis (ciclovias, ciclofaixas e ciclorrotas), sendo 250 km no Recife, a um um custo total de R$ 353 milhões a serem investidos num prazo de dez anos. De responsabilidade do Governo do Estado, seriam R$ 187 milhões; e das prefeituras da RMR, R$ 166 milhões.
Atualmente, no estado, a missão de tocar a execução e gestão do PDC está com a Secretaria de Turismo, Esportes e Lazer, e não mais com a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação (antiga Secretaria das Cidades), o que trava ainda mais o andamento e dá um claro recado de como a questão é tratada.
“O trânsito é o reflexo da nossa sociedade. Pode mais quem tem mais”, avalia Diego Pereira, de 27 anos, ciclista há 8. Morador do Vasco da Gama, em Casa Amarela, Zona Norte do Recife, ele faz freelas de design numa gráfica no Prado, Zona Oeste. Leva entre 15 e 25 minutos no trajeto de bicicleta. De ônibus, levaria cerca de 40 minutos, a um custo de R$ 6,40 ida e volta.
Para chegar a uma renda entre um e dois salários mínimos, Diego também toca, em casa, com a namorada, uma microempresa de mochilas, camisetas e acessórios para mobilidade urbana, além de ter uma pequena oficina de bicicleta. Outro percurso que costuma fazer muito é Vasco da Gama – Centro, para comprar material e fazer entregas.
Nos seus principais trajetos, Diego deveria poder contar com pelo menos uma importante ciclovia, na Av. Norte. Confira um pedaço do percurso dele no vídeo produzido pela Marco Zero:
“No Recife, não é seguro andar de bicicleta. Mas aprendi a lidar. É preciso pedalar a uma velocidade semelhante a dos carros para que você possa ser notado”, pontua. “Além de tudo isso, a bike me dá liberdade”. A última vez que Diego andou de ônibus no Recife foi em dezembro porque precisava transportar uma TV.
Bike sem prioridade
No papel, o PDC, bem formatado e elaborado em parceria com a sociedade civil, dá muita importância à integração da rede cicloviária com o sistema de transporte coletivo que, com os bicicletários propostos, estimularia a integração intermodal. A ideia era que a rede atendesse a todos os terminais de metrô e ônibus levantados e tivesse ligação com pontos de interesse como universidades, shoppings e escolas.
Se tivesse sido posto em prática, o plano, além de estimular o uso da bike, resolveria o problema de deslocamento de muita gente, sobretudo quem mora no subúrbio e tem no transporte público a única alternativa. Isso sem contar com a questão ambiental e o baixo custo de implementação e manutenção.
Em algumas áreas, até hoje o BRT também não saiu do papel. “Imagina as ciclovias?!”, alfineta Daniel Valença, da Ameciclo. Na avaliação dele, é preciso levar em conta também o grande foco que a PCR dá no “choque” de ordem no controle urbano, que se traveste de melhorias na mobilidade, mas que continua abrindo espaço apenas aos carros. “Os argumentos já evoluíram bastante, mas a Prefeitura do Recife continua tendo muita dificuldade em tirar o espaço dos automóveis.”
No entorno da Av. Agamenon Magalhães, uma das principais da cidade, várias modificações foram feitas recentemente, como na Ilha do Leite, Benfica e Encruzilhada, para acelerar o fluxo de carros e viabilizar a faixa exclusiva de ônibus. “E aí a bike nunca é prioridade, quando é pensado é só depois de tudo”, sintetiza Daniel.
Ele compara a situação local com o cenário de Fortaleza, que fez 240 km de ciclovias através de projetos municipais, com redução de mortes no trânsito e iniciativas como a lei que destina o dinheiro da Zona Azul para a implantação de ciclovias. As ações inclusive colaboraram para a reeleição do prefeito Roberto Cláudio (PDT), mostrando que o assunto tem, sim, peso eleitoral.
No fim do ano passado, a Prefeitura de Fortaleza recebeu o prêmio de cidade mais inspiradora em compartilhamento de bicicletas do Brasil, promovido pela Transporte Ativo, na Oficina sobre Bicicletas Públicas e Compartilhadas, no Rio de Janeiro.
Muita diretriz, pouco resultado
A rede cicloviária no PDC ficou dividida em duas frentes. A primeira é a Rede Metropolitana, com 244 km de ciclovias distribuídas pelos municípios da RMR, e de responsabilidade do estado. E a segunda é a Rede Complementar, com 346 km de ciclovias, ciclofaixas e ciclorrotas, de responsabilidade dos municípios.
Até agora, do que estava previsto, foram entregues, por parte do Governo do Estado, somente duas etapas do Eixo Cicloviário Camilo Simões. A primeira, em 2017, de 5,5 km de ciclovia, entre o Marco Zero, no Bairro do Recife, e a Fábrica da Tacaruna, em Olinda. E a segunda, em 2018, de 2,9 km, entre a Fábrica da Tacaruna e o bairro do Varadouro.
Ao todo, o eixo está projetado para ir até Igarassu, totalizando quase 34 km de extensão, com mais três etapas. São elas: do Varadouro até a ciclovia da PE-15; da ciclovia da PE-15 até a BR-101, na divisa entre Paulista e Abreu e Lima; e da BR-101 até Igarassu.
O Plano Diretor Cicloviário, no entanto, nunca virou lei, com datas legais de início, meio e fim e orçamento direcionado. Além disso, justifica o gerente de ciclomobilidade, Jason Torres, da Secretaria Estadual de Turismo, Esportes e Lazer, o plano estava “embasado numa fonte de recursos de expansão de mobilidade da Região Metropolitana do Recife desde 2013 (ano da elaboração do PDC), na época da pré-Copa. E depois não veio mais nada”.
“E ainda bem que conseguimos recurso do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) pelo Prodetur, senão nem isso (duas primeiras fases do Eixo Camilo Simões) a gente teria feito, porque nem tem recurso do estado e nem tem mais recurso federal, visto também os corredores Norte-Sul inacabados”, acrescenta Jason.
Mobilidade x turismo e lazer
Em 2017, o Governo do Estado recriou o Escritório da Bicicleta, na tentativa de impulsionar o Plano Diretor Cicloviário, parado na antiga pasta das Cidades, que na época tinha o deputado federal Danilo Cabral (PSB) à frente. O Escritório tem como missão tocar a execução do PDC. Em 2015, o Escritório foi transferido para a pasta de Turismo, Esportes e Lazer, por iniciativa do então secretário Felipe Carreras (PSB), atualmente também deputado federal. Suas iniciativas de incentivo à bike, mais focadas nas áreas nobres, centrais e turísticas, exerceu um grande peso na sua campanha e no resultado das urnas.
A mudança é mais uma prova de que o poder público estadual não trata a bike como um modal de transporte necessário e urgente, com uma demanda tão antiga quanto importante para o bolso e o cotidiano de milhares de famílias. “Por mais vontade que se possa ter, a questão está agora numa secretaria que não tem como captar dinheiro para fazer ciclovias e precisa explicar esse recurso com um viés turístico. Então estamos agora presos a isso”, destaca Daniel.
Segundo Jason, com o novo comando da pasta de Desenvolvimento Urbano e Habitação, agora nas mãos de Marcelo Bruto, a missão é negociar para tentar captar recursos para viabilizar a bicicleta como modal. Há projetos básicos prontos, por exemplo, para ciclovias na Agamenon Magalhães, na Imbiribeira, e entre Prazeres e Abreu e Lima pela BR-101.
Porém, Jason defende que o PDC precisa, mais do que destravar recursos, destravar licenças municipais. “Os dois atores precisam se juntar e ver o que pode fazer juntos. De que adianta conseguir R$ 1 milhão, como já conseguimos, e não pudemos colocar em prática porque o projeto passava por dentro da cidade do Recife e não conseguimos as licenças com a prefeitura?”, provoca Jason.
Prefeitura do Recife
Daniel, da Ameciclo, relembra que, em 2014, a Prefeitura do Recife decidiu focar num projeto paralelo e complementar ao Plano Diretor Cicloviário, sob a justificativa de que o PDC demoraria para sair. Foram lançadas então As 12 Rotas Cicláveis. A ideia era entregar 76 km de ciclovias, que, somados aos 24 km existentes, chegaria à marca de 100 km na capital.
A reportagem da Marco Zero procurou a Secretaria de Mobilidade e Controle Urbano para entrevista, mas a pasta se pronunciou somente através de nota informando que, dos 57 km de rotas cicláveis na capital, 33 km foram implantados após o PDC dobrando a malha ciclável em pouco mais de quatro anos de execução, sendo todas as novas rotas em consonância com o plano.
No entanto, dos 590 km previstos para toda a RMR, 250 km são no Recife, e o prefeito Geraldo Julio já chegou a declarar que a cidade tem capacidade para 400 km. Fazendo os cálculos, chega-se a um média de somente 8,25 km de rotas por ano. É muito pouco para uma cidade com um potencial gigante.
Geraldo Julio disse, na época do anúncio do PDC, que o plano destacava “a importância de se inverter a prioridade no transporte” e que “as cidades precisam oferecer às pessoas a possibilidade de se deslocar a pé e de bicicleta. Cidades que investiram nisso melhoraram a qualidade de vida das pessoas”. A comparação com a realidade infelizmente é bem diferente.
Desde o início da atual gestão,foram implantadas as seguintes rotas: Arquiteto Luiz Nunes (3,5 km), Marquês de Abrantes (1,9 km), Antônio Curado (3,2 km), Inácio Monteiro (2,4 km), Antônio Falcão (1,7 km) – depois apagada -, Via Mangue (4,5 km), Jardim Beira Rio (850 m), Jardim São Paulo (1,9 km), Compaz Ariano Suassuna (650 m), Estrada do Bongi (2,66 km), Setúbal (4,5 km), além do Eixo Camilo Simões (5,1 km), uma parceria com o Governo do Estado, e da Zona 30, rota compartilhada entre os modais no Bairro do Recife.
Como forma de criticar o poder público e chamar a atenção da sociedade, o movimento Cicloação Recife produziu um vídeo parodiando o programa Choque de Cultura, que simula uma mesa redonda sobre cinema e séries de TV, tendo no lugar de críticos tradicionais quatro motoristas de vans.
Confira o Choque de Mobilidade:
Ciclovia, ciclofaixa e ciclorrota: você sabe a diferença?
>> Ciclovia: totalmente segregadas do tráfego motorizado, sendo a via de maior nível de segurança e conforto para os ciclistas. Pode ser implantada na faixa de domínio das vias normais, lateralmente, no canteiro central ou em outros locais, de forma independente, como parques e margens de curso d’água. Podem ser unidirecionais ou bidirecionais.
>> Ciclofaixa: faixa indicada por linhas separadoras pintadas no solo, com o objetivo de separá-las do fluxo de veículos automotores.
>> Ciclorrota: caminhos, com ou sem sinalização, que representam uma rota recomendada para o ciclista, com o trajeto sem qualquer segregação ou sinalização contínua, sendo um espaço compartilhado com veículos automotores. Representa efetivamente, um trajeto, não uma faixa da via ou um trecho segregado.
Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com