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A partir do cinema, comunidade de Apipucos resgata memória e se mobiliza

Helena Dias / 23/05/2019

Quem passa pela Rua de Apipucos, na Zona Norte do Recife, e admira os antigos casarões do bairro, não imagina que por trás daquelas fachadas há muitas histórias esperando para serem contadas. Não tem como errar. Você entra na rua onde a Confeitaria Pernambucana fica de esquina e dobra à esquerda. Lá está uma via extensa, cercada de vegetação e que, apesar de você não conseguir enxergar, desemboca na BR-101. É a Rua Caetés, onde os moradores vivem em casas humildes marcadas pela história de quem ocupou a margem do Açude de Apipucos e fez de suas águas uma forma de sobrevivência. Um lugar que foi, durante muito tempo, ocupado pelos pescadores e pelas lavadeiras locais.

Foi na noite da sexta-feira 10 de maio que a Marco Zero acompanhou uma sessão do Luíla e Pretinha Cineclube, na sede do Conselho de Moradores – Apipucos. Era a segunda reunião do cineclube e os moradores se fizeram presentes para assistir aos vídeos sobre mobilização popular. Havia uma mesa repleta de lanches levados pelos próprios moradores, crianças que brincavam entrando e saindo do conselho e até quem aproveitasse aquele momento para tirar um cochilo. Após a exibição dos filmes, uma roda de debate foi formada e a discussão logo ganhou corpo sobre como era importante a comunidade partilhar aquela experiência. Os moradores deixavam bem claro o quanto ansiavam por força de mobilização.

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Sede do Conselho de Moradores, no bairro de Apipucos (Recife-PE). Crédito: Helena Dias/MZ Conteúdo

A sede do conselho se encontra em situação precária, a estrutura precisa de uma reforma que dê conta também da parte elétrica do local. Esse reparo é uma prioridade para os moradores da Rua Caetés que enxergam o conselho como ponto de partida para outras atividades que possam ser desempenhadas para além do cinema. O cineclube de Apipucos faz parte do projeto Movimenta Cineclubes, que ajudou a mover as engrenagens da comunidade através da sétima arte e do resgate da memória local. É justamente esse o objetivo de uma rede de movimentos que pretendem fortalecer o trabalho político de base nos bairros recifenses e da Região Metropolitana da capital (RMR).

Cineclubes: são grupos de pessoas que se reúnem com o fim de debater diversos assuntos por meio do cinema. O intuito não é só assistir aos filmes, mas refletir sobre os temas em questão e sobre o próprio cinema.

Movimenta Cineclubes

É um projeto organizado pela Federação Pernambucana de Cineclubes (FEPEC), a Associação Brasileira de Documentaristas (ABD) e pelo coletivo Mulheres no Audiovisual PE (MAPE). O Movimenta tem como objetivo a criação de uma rede de cineclubes comunitários, apostando na formação de facilitadores e facilitadoras – pessoas interessadas em organizar os cineclubes em suas comunidades – para a realização do projeto. A parte de articulação com cada bairro fica a cargo das frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo, que já desenvolvem trabalhos políticos de base em alguns locais. A partir da realidade de cada comunidade, a conjuntura política atual do país é debatida por meio da sétima arte.

De acordo com uma das coordenadoras do projeto, Cecília da Fonte, a ideia do Movimenta Cineclubes surgiu após o segundo turno das eleições de 2018, quando a falta de diálogo dos movimentos sociais com a base da sociedade civil ficou evidente. “Com a eleição de Bolsonaro, a gente sentiu uma falta de diálogo com a base e começamos a pensar como nós do audiovisual podemos contribuir para disputar narrativas e conversar com as pessoas a partir de um trabalho de base. Mas a gente não tinha esse trabalho desenvolvido, como iríamos chegar nas comunidades? Concebemos a questão do cineclube como algo que causa reflexão mesmo e entramos em contato com as frentes de movimentos sociais para colocar em prática.”, explica.
Ao todo, o projeto está presente em 40 bairros, seja com os cineclubes já organizados ou em fase de articulação. Alguns dos bairros onde já acontecem exibições são: Morro da Conceição, Várzea, Peixinhos e Ibura.

Já passava das 21h30 quando a reportagem terminou a cobertura da sessão, mesmo a roda de diálogo tendo continuado. Contudo, uma dúvida que não poderia ser respondida naquela noite, mas que precisava ser esclarecida ficou martelando na mente: quem são Luila e Pretinha que dão nome ao cineclube de Apipucos?

A fome de comida e de conhecimento

Luíla e Pretinha são duas moradoras da Rua Caetés que marcaram a história da comunidade. Luila, como professora, ensinou várias crianças a ler e escrever quando o acesso à escola ainda era uma carência no local. Já Maria José do Carmo, mais conhecida como Pretinha, matou a fome de muitos que não tinham o que comer e os acolheu em sua casa como se fossem seus filhos. As homenagens às duas foram prestadas ainda na primeira sessão do cineclube, no dia 27 de abril.

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Dona Luila, em sua casa na Rua Caetés, no bairro de Apipucos. Crédito: Helena Dias/MZ Conteúdo

A mobilidade de Dona Luíla Bezerra Silva, de 86 anos, ficou comprometida após ela ter as duas pernas amputadas por causa de complicações da diabete. Mas, sua mente continua em perfeito estado apesar da idade avançada. Ela lembra como se fosse hoje, que ensinou cerca de 50 crianças a ler e escrever “sem cobrar nada por isso” e ainda deu conta de cuidar dos seus cinco filhos junto ao marido Genival de Souza Silva. Nascida e criada em Ceará-Mirim, no Rio Grande do Norte, Luila chegou a trabalhar no departamento de serviço social da Marinha antes de vir morar em Pernambuco, no bairro de Apipucos.

Tratava de resolver a situação das mulheres que engravidavam dos oficiais da Marinha quando os mesmos atracavam no estado. As soluções para essas mulheres eram apenas duas: ou os oficiais se casavam com as gestantes ou o departamento dava entrada nos benefícios financeiros destinados às crianças que ainda iam nascer. Há quarenta anos, quando veio morar na capital pernambucana, já havia se formado em magistério e podia dar aulas.

Ela não pensou duas vezes sobre ensinar, via que era uma necessidade da comunidade. “Não tinha escola aqui perto. As escolas ficavam longe e eram muito exigentes, só aceitavam aqueles alunos que já estavam alfabetizados. Não ensinei todos de uma vez, cada ano vinha um grupo de crianças diferente. Quando elas completavam sete anos, eu direcionava para a escola. Eu não aceitava que pagassem nada, até o material era grátis. Vinham muitas doações das pessoas da igreja de Casa Forte.”, conta Luila que passou cerca de cinco anos exercendo a profissão desta forma.

Por essa atuação, Luíla era vista como uma liderança na comunidade. Apoiou muitas ocupações do território à margem do açude, ajudando famílias que não tinham onde morar.

"O pouco que eu tenho é dividido com qualquer um.", diz Dona Pretinha. Crédito: Helena Dias/MZ Conteúdo

“O pouco que eu tenho é dividido com qualquer um.”, diz Dona Pretinha. Crédito: Helena Dias/MZ Conteúdo

Dona Maria José do Carmo “Pretinha”, de 95 anos, nasceu no bairro de Apipucos e mora lá até hoje. Numa casa simples e pequena que divide com mais oito pessoas, ela senta à vontade e conta da vida como se a repórter fosse da família. Quando jovem, chegou a trabalhar como tecelã na Fábrica da Macaxeira. Mas logo assumiu uma função muito recorrente na vida das mulheres que moravam na beira do açude, foi lavadeira a vida inteira. Fez quase o impossível com o pouco dinheiro que conseguia juntar lavando as roupas das grandes famílias de nome das redondezas. O dinheiro era utilizado para alimentar seus dez filhos e ainda ajudar pessoas que se encontravam em situação ainda mais precária que a dela.

“Eu conseguia meu dinheiro lavando roupa no açude. Aqui tinha muita gente pobre como eu era, mas às vezes não tinha saúde e nem a disposição. Chegavam: ‘Mas Maria, eu estou com fome. E eu dizia: ‘A gente come!’. Até hoje, o pouco que eu tenho é dividido com qualquer um. Isso é desde muito tempo, bem mais de trinta anos quando meus filhos ainda eram crianças.”, lembra Dona Maria.

O Luíla e Pretinha Cineclube, do bairro de Apipucos, terá sessão no próximo domingo (26). A partir das 16h, os moradores devem se reunir no Conselho de Moradores – Rua Caetés, nº195. Desta vez, será exibido o filme “Saneamento Básico”, em que moradores de uma vila batalham para garantir um tratamento de esgoto de qualidade para o lugar onde moram. As programações desse e de outros bairros que fazem parte do projeto, você pode conferir através do facebook e instagram : @movimentacineclubes.

AUTOR
Foto Helena Dias
Helena Dias

Jornalista atenta e forte. Repórter que gosta muito de gente e de ouvir histórias. Formou-se pela Unicap em 2016, estagiou nas editorias de política do jornal impresso Folha de Pernambuco e no portal Pernambuco.com do Diario. Atua como freelancer e faz parte da reportagem da Marco Zero há quase dois anos. Contato: helenadiaas@gmail.com