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Alcaçuz: o presídio do absurdo

Marco Zero Conteúdo / 14/07/2019

Por Alex de Souza, Elisa Elsie, Everton Dantas e Jalmir Oliveira

Dia 14 de janeiro de 2017 (há exatos dois anos e meio), um sábado (quente, como o são quase todos no verão do Rio Grande do Norte), antes do sol se pôr, pelo menos 26 pessoas foram assassinadas no Pavilhão 4 da penitenciária Doutor Francisco Fernandes, popularmente conhecida como presídio de Alcaçuz. Passados mais de dois anos da chacina, a maior que se tem conhecimento no RN, ninguém foi responsabilizado. Até hoje (junho de 2019) o inquérito policial não foi concluído. A previsão era que fosse concluído em julho. Esta reportagem expõe como a forma de tratamento dado ao presídio pelo Estado, desde antes da inauguração, contribuiu para essas 26 mortes. E tudo o que aconteceu após isso. Esta reportagem é um arquivo, uma lição, um alerta e uma memória de um crime que permanece impune.

“Fugas, mortes, ameaças de invasão”

Todo preso sabe disso: quando a cadeia fica calma demais, é porque ela está prestes a explodir. Funciona semelhante a um tsunami: o mar fica pequeno, minutos antes. Para os lados de novembro e dezembro de 2016, a “cadeia” – no caso o complexo formado pelas penitenciárias estaduais Doutor José Francisco Fernandes e Rogério Coutinho Madruga – ficou estranhamente calma. Sem tiros, sem gritos, nem bombas ou brigas. Mas essa tranquilidade jamais significou que os presídios estavam em paz. Funcionando na mesma área, no município de Nísia Floresta, a 15 quilômetros de Natal, as duas penitenciárias formam o maior complexo penal do Rio Grande do Norte, estado localizado no Nordeste do Brasil, a esquina do continente sul-americano.

Quando irrompeu janeiro, logo no primeiro dia do ano, uma notícia na TV fez com que a previsão de explosão ganhasse força dentro de “Alcaçuz” e do “Pavilhão V”, como são popularmente conhecidos os dois presídios.

A notícia informava que em Manaus, no estado do Amazonas, região Norte do País, um conflito no Complexo Penal Anísio Jobim resultou na morte de aproximadamente 60 pessoas. Membros da facção local Família do Norte (FDN) executaram membros do Primeiro Comando da Capital (PCC).

No Rio Grande do Norte a informação sobre este conflito foi recebida com muita apreensão. No complexo de Alcaçuz havia (há) uma configuração semelhante de grupos prisionais.

A exemplo de Manaus, Alcaçuz abrigava em janeiro de 2017 membros do PCC – facção paulista fundada há pelo menos 25 anos – e do Sindicato do Crime RN (SRN), grupo local formado a partir da dissidência de presos potiguares que não aceitaram ser comandados por uma organização de São Paulo.


Em janeiro de 2017 o Pavilhão 5 de Alcaçuz era ocupado por presos do PCC. Enquanto nos outros pavilhões do presídio, em maioria, ficavam os membros do Sindicato do RN. No início daquele ano, a distribuição de presos era de pelo menos  862 detentos em Alcaçuz e 466 no Pavilhão 5; um total de 1.328 pessoas num local que deveria abrigar, no máximo, 1.022. Isso representava 27% a mais da capacidade existente.

Essa correlação de forças somada à tensão existente dentro e fora dos presídios, junto à notícia do massacre em Manaus, fazia pensar que algo semelhante poderia acontecer no Rio Grande do Norte; e que os detentos ligados ao PCC, por serem minoria, é que corriam maior risco de serem atacados.

Havia um outro detalhe que deixava tudo mais tenso: pelo menos desde o final de 2015 as celas no complexo não tinham grades e os presos ficavam soltos dentro dos pavilhões, sem a devida vigilância – livres para fazer o que fosse possível – dentro da prisão.

No dia 6 de janeiro de 2017, outro massacre eleva um pouco mais a tensão em Alcaçuz. Na capital de Roraima, Boa Vista, também na região Norte do Brasil, 33 detentos foram mortos na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo.

A princípio, a versão apontava para novo conflito de facções, com uma diferença: dessa vez o PCC teria assassinado pessoas de um grupo rival, no caso, os membros da Família do Norte (FDN). Essa versão não se sustentou no inquérito policial sobre o caso.

Mas naquele janeiro, essa foi a versão que restou como realidade. E daí, ficou ainda mais forte a hipótese de revanche, marcada para acontecer no Rio Grande do Norte,envolvendo o PCC e o Sindicato do RN.

O promotor de Justiça Fausto Faustino de França Júnior é um das pessoas que mais entende sobre a atuação de facções no Rio Grande do Norte. Ele foi um dos que participou das primeiras investigações sobre a formação e a atuação de grupos criminosos no estado.

Segundo ele, sem controle dentro dos presídios e separados de acordo com a facção à qual pertencem, esses grupos criminosos aproveitam a oportunidade para fazer negócio e lucrar, mesmo supostamente estando sob custódia do Estado.

O PCC chegou ao Rio Grande do Norte em meados dos anos 2000 e passou a atuar dentro dos presídios pelo menos desde 2010. Por volta de 2012, detentos do RN começaram a contestar a forma como eram tratados pelos paulistas. Em 2013, a organização criminosa “Sindicato do RN” nasceu de fato.

Esse rompimento e a consequente disputa pelo controle do tráfico de drogas no Rio Grande do Norte acabou tendo reflexo nos Centros de Detenção Provisória (CDPs) e nos presídios, que passaram a separar presos de acordo com a facção à qual eles faziam parte.

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Domingo, 15 de janeiro de 2017, às 2h28. Foto: Everton Dantas

Em janeiro de 2017, o risco de um enfrentamento entre as duas facções no Rio Grande do Norte não era especulação ou conversa de cadeia. Os presos falavam sobre isso. As famílias dos detentos sabiam desse risco. E as pessoas que lidavam diretamente com o sistema prisional tinham total conhecimento dessa possibilidade.

Tanto que foram emitidos alertas pelas direções dos presídios para a Secretaria de Estado da Justiça e da Cidadania (Sejuc), responsável pelo sistema. Em abril de 2016, nove meses antes, foi emitido um memorando pela direção da penitenciária no qual era feito um sério alerta sobre o que podia acontecer.

 

“A rivalidade entre as facções é notória. E nos últimos tempos as ameaças entre elas têm aumentado. Tentativas de fugas, invasão de pavilhão, mortes, agressões, ameaças de invasão na PERCM (Pavilhão 5) pelos detentos da PEA (Alcaçuz) e vice-versa. (…) A Penitenciária de Alcaçuz se transformou em uma bomba relógio. (…) Queremos evitar um caos ainda maior, novas rebeliões, mortes, chacinas dentro da unidade, motins”.

No dia 3 de janeiro de 2017, dois dias após o massacre em Manaus e três antes do de Boa Vista, um outro memorando foi expedido alertando para “sério risco de perturbação da ordem”.

No dia 8 de janeiro, um domingo, houve visita. Familiares relatam que os presos nesse dia estavam muito tensos. Após isso, na volta para casa, muitas das mulheres que visitaram seus maridos, companheiros, noivos e filhos, levaram consigo a preocupação com o que podia acontecer.

Algumas chegaram a acreditar que o pior aconteceria já ali, naquele final de semana. Em 11 de janeiro, três dias depois, foi feito novo documento com solicitação de reforço. Neste mesmo memorando foi também feita a renovação de alerta “para invasão, com riscos de morte”. Nada foi feito.

Uma história marcada pela falta

Janeiro de 2017 não foi a primeira vez que Alcaçuz experimentou algo que pode ser chamado de abandono ou omissão. Isso já acontecia há muitos anos, de diferentes maneiras. Sob certa ótica, o presídio de Alcaçuz (sua história) foi sempre marcado pela falta de algo. Alguns dados históricos dão prova disso. Entre a ideia e a conclusão da penitenciária passaram-se cerca de 20 anos.

O projeto usado para a construção do presídio foi um trabalho de conclusão de duas universitárias concluintes do curso de arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Mas não foi seguido à risca.

Quem aponta é um das autoras, a arquiteta Rosane Azevedo de Albuquerque, que aproveita para derrubar uma das maiores falácias sobre o presídio: de que a culpa pelo descontrole reside no fato do prédio ter sido construído em terreno dunar.

A inauguração aconteceu em 1998, ano eleitoral, no dia 26 de março. Na primeira transferência de presos para o presídio ― cuja propaganda governamental tachou de “segurança máxima”― foi necessário usar os faróis de uma moto para iluminar o caminho por onde os presos estavam sendo levados. Faltava energia elétrica na região. (Seria um prenúncio?)

Apenas três meses após a inauguração do então presídio de segurança máxima, um detento, Otacílio Soares da Costa, 30, fugiu pela porta da frente. Pouco tempo depois, em agosto, outros dois fugiram. Em novembro, outra dupla, desta vez pulando o muro.

Em abril de 1999, pouco mais de um ano após a inauguração do suposto presídio de segurança máxima, 11 fugiram usando cordas artesanais, as chamadas “terezas”. Depois foram registradas outras fugas, maiores e mais cheias de detalhes, que atestam a falta de segurança desde a origem da construção e a perda do controle sobre os que ali estavam custodiados.

Em novembro de 2000, por exemplo, 28 fugiram após um grupo parar uma caminhonete do lado de fora do presídio e ― usando uma metralhadora calibre .50 ― dar cobertura à fuga.

Em 2001, um túnel de 30 metros foi encontrado e ligava uma cela do pavilhão 1 ao muro do lado leste da penitenciária. Foi a primeira vez que esse tipo de estrutura foi descoberta.

Até essa época, o método mais comum de fuga consistia em pular a muralha do presídio, que jamais teve o chamado “muro invertido”, barreira construída dentro da terra, para impedir túneis.

A partir de 2010, os túneis passaram a ser o método mais usado. Em janeiro daquele ano, 15 fugiram assim, por um túnel de 20 metros. Em maio, outros sete. Em 2011, as escavações continuaram: setembro terminou com nove presos fugitivos.

Essa fuga aconteceu 14 dias após uma rebelião na qual pela primeira vez foi exposta uma bandeira com a sigla da facção paulista Primeiro Comando da Capital (PCC).

Pela primeira vez também Natal assistiu a uma ação coordenada de dentro do presídio que trouxe implicações fora: oito ônibus foram incendiados e a facção assumiu a autoria. Mesmo assim as forças de segurança do Rio Grande do Norte seguiram negando a existência do grupo criminoso, sua atuação em solo potiguar.

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Domingo, 15 de janeiro de 2017, 6h06. Foto: Everton Dantas

Em janeiro de 2012, fuga de mais quatro, também usando túnel. No dia 19 de janeiro, dez dias após a primeira fuga de 2012, 41 detentos conseguiram escapar do Pavilhão 5. Cadeados foram deixados abertos, segundo se noticiou na época.

Aquele ano terminou com pelo menos 63 fugitivos do presídio. Esse total só foi superado em 2015, quando com uma diferença de 17 dias ocorreram duas fugas, uma de 32 presos e outra de 35.

Essas fugas aconteceram cerca de um mês após a pior rebelião até aquela época. No dia 12 de março de 2015 os detentos destruíram todas as celas, arrancando as grades e a partir daí ficaram soltos nos pavilhões.

A única barreira entre eles e o restante do presídio eram as paredes dessas alas. Além de Alcaçuz, foram registrados motins em outras três unidades prisionais. E houve ainda ataques nas ruas de Natal: cinco ônibus foram incendiados.

Foi a partir desse episódio que o governo do Rio Grande do Norte decretou “calamidade pública no sistema penitenciário” e também convocou a Força Nacional para reforçar a segurança na capital do estado.

No dia 19 de março de 2015, a rebelião terminou. E o que restou como saldo foi um presídio plenamente destruído por dentro.

Seis empresas foram contratadas para reformar os pavilhões. Em setembro, após suposto investimento de R$ 418 mil na reforma, a obra foi concluída. Ao todo, 107 celas foram reconstruídas. Dois meses após isso, nova rebelião. Toda reforma se perdeu.

“Vendiam as esposas e as filhas no dia da visita”

Após a segunda rebelião, em 2015, o Tribunal de Contas do Estado (TCE-RN) estimou que o prejuízo causado pelos presos foi de R$ 2,4 milhões. Dessa vez, nenhuma reforma foi feita. E a partir daí, os presos ficaram em definitivo “livres”, dentro dos pavilhões. Em novembro de 2015, Alcaçuz e Pavilhão 5 tinham sob custódia um total de 1.100 presidiários. Para vigiá-los, apenas sete agentes penitenciários por dia. Sem concurso desde 2010 e com a criação dos Centros de Detenção Provisória (CDPs) – delegacias que por determinação do governo viraram cadeias (entre os anos de 2008 e 2009) –  não havia como manter uma quantidade adequada de agentes em Alcaçuz.

Com a falta de efetivo e estrutura, somado ao fortalecimento das facções, armou-se com pelo menos um ano de antecedência o cadinho onde, em janeiro de 2017, ferveu em branda calma a tensão dentro da cadeia.

Entre 2015 e 2017 não se tem notícia de alguma medida realmente eficiente para desarmar a “bomba-relógio” sobre a qual foram emitidos alertas ainda em abril de 2016. Somou-se a isso o fato de que desde o início de 2015, em crise financeira, a  maior preocupação do governo do estado se concentrava em pagar as folhas salariais do funcionalismo.

O descontrole chegou a tal ponto no Complexo de Alcaçuz que tudo virou um bom negócio para o crime organizado. O juiz Henrique Baltazar, que foi responsável pela Vara de Execuções Penais de Nísia Floresta, conta que “uma das grandes fontes de renda das facções criminosas era que os presos vendiam a comida dentro do presídio”.

“O Estado pagava a comida e os presos vendiam. A facção vendia. Então, se você tava num pavilhão que era controlado pelo PCC, você só comia se você fosse do PCC. Se você não fosse do PCC, você tinha que pagar. O Estado mandava a quentinha, entregava dentro, mas você só recebia se você pagasse ao PCC. Se você não pagasse você não recebia”.

O absurdo maior dessa situação de descontrole também é relatada pelo juiz: “Esse pagamento era de várias formas, inclusive favores sexuais”.

“Vendiam as esposas e as filhas no dia da visita, porque a visita também era feita assim: Todo mundo, as mulheres iam para dentro do pavilhão e lá dentro acontecia o que quisesse, inclusive tem muitos casos de prostitutas”.

E, segundo ele, o Estado tinha conhecimento do que acontecia dentro de Alcaçuz, mas nunca promoveu nada para acabar com isso.

Em 9 de janeiro de 2017, toda essa situação de descontrole e alertas oficiais já estava devidamente temperada com as notícias sobre os massacres na região Norte do Brasil.

A calma transbordava em Alcaçuz e se espraiava para fora dos pavilhões, para além dos muros, por dentro dos túneis jamais fechados, na falta de vigilância, na solidão e insegurança das guaritas, para dentro do vazio das cabeças dos presos, o tempo inteiro, que é todo livre, alimentando o medo, forjando a desgraça, como que numa oficina.

Dia 10 de janeiro, o então secretário de Justiça do Rio Grande do Norte, delegado Wallber Virgolino da Silva Ferreira, deu uma entrevista ao jornal O Globo e falou sobre o risco de acontecer no Rio Grande do Norte algo semelhante ao que houve no Amazonas e em Roraima. Afirmou que não havia indicação de futuras rebeliões no Rio Grande do Norte ligadas aos massacres na região Norte. Para ele, as mortes no Amazonas e em Roraima eram resultado de uma briga “isolada”.

O jornal Tribuna do Norte, impresso de Natal, publicou as declarações de Virgolino na página 11 do caderno de Cidades no dia 11 de janeiro. Coincidentemente, trouxe na meia página de baixo uma entrevista feita pela jornalista Aura Mazda com o juiz titular da Vara de Execuções Penais de Natal, Henrique Baltazar Vilar dos Santos.

Ele, a exemplo de Virgolino, achava pouco provável que o Rio Grande do Norte passasse por algo semelhante ao Amazonas. Mas era mais realista e crítico: “As facções criminosas estão praticamente controlando os presídios”. E dizia mais: “Diante do descontrole nos presídios, os grupos criminosos haviam tomado o lugar do Estado”.

Em outro impresso natalense, o Novo Jornal (fechado em novembro de 2017), o mesmo juiz observava que a separação de presos por facções, medida formalizada em 2015, havia sido um erro, a princípio, porque havia fortalecido os grupos criminosos. Mas que naquele momento, diante dos massacres ocorridos em outras regiões do Brasil, a medida acabara sendo útil porque poderia evitar conflitos.

A reportagem que documentou a fala do juiz foi feita pelo jornalista Rafael Barbosa e revelava que o sistema prisional norte-rio-grandense, composto na época por pelo menos 8 mil presos, tinha na sua maioria detentos ligados ao Sindicato do RN. Tanto que em Alcaçuz, apenas o Pavilhão 5 tinha a presença de membros do PCC.

Nessa mesma edição, foram publicadas declarações da presidente do Sindicato dos Agentes Penitenciários do RN, Vilma Batista; e do então secretário de Justiça, Wallber Virgolino. Ela dizia não acreditar que o Rio Grande do Norte viesse a registrar algo semelhante ao que havia acontecido no Amazonas.

Domingo, 15 de janeiro de 2017, 15h15. Foto: Frankie Marcone/Arcevo Novo Jornal

Domingo, 15 de janeiro de 2017, 15h15. Foto: Frankie Marcone/Arcevo Novo Jornal

Ele explicava que não havia aqui movimentações de adesão ao massacre ocorrido em Manaus. E acrescentava informando que ao final de sua gestão pretendia entregar o sistema penitenciário sem problemas do ponto de vista da superlotação.

As entrevistas do juiz, da sindicalista e do secretário foram feitas durante aquela semana, entre os dias 9 e 13 de janeiro. A publicação da reportagem tem data do 15 de janeiro, um domingo. Mas o jornal começava a circular no sábado, dia 14 de janeiro, pela parte da tarde, por volta das 15h, 16h.

As declarações dadas por eles só foram reais até por volta das 16h30 daquele dia. Tudo o que eles disseram com base na sua sólida experiência e conhecimento do sistema penitenciário potiguar se desfez no ar, em questão de minutos.

No domingo pela manhã, então, aquelas falas não significavam nada além de o registro de um engano, publicado na página de um jornal, para a história depois resgatar, como uma curiosidade constrangedora.

“Nós tivemos de viver o caos”

Sempre que acontece algum problema envolvendo agentes penitenciários, motim ou rebelião, o telefone de Vilma Batista da Silva toca. Presidente do Sindicato da categoria, ela sempre é chamada para atuar nessas situações. Dia 14 de janeiro de 2017 não foi diferente. A exemplo de Ivo Freire, ela também sabia que aquela rebelião estava há muito tempo marcada para acontecer. Só não sabia como e que dia aconteceria. E também já havia alertado para o risco de que o pior acontecesse.

Vilma Batista conhece o sistema há pelo menos 16 anos. Aprovada na primeira turma de agentes penitenciários do Rio Grande do Norte ― no concurso de 2000, com convocação em 2002 ― ela pôde acompanhar de perto as mudanças pelas quais o sistema passou; principalmente depois da chegada das facções.

“Desde 2005 que começou a mudar, a crescer a população carcerária. Em 2002, tínhamos uma população carcerária de quase 3.000 presos, então nosso concurso foi para 320 homens e 90 mulheres. Nós não tínhamos ainda superlotação. Nós não tínhamos ainda crime organizado. O crime organizado começou a se estabelecer aqui no Estado do Rio Grande do Norte em 2004. Foi quando nós começamos a perceber a mudança da rotina e também da população carcerária”.

Vilma Batista afirma que já naquela época alertou as autoridades sobre o problema que estava nascendo. “Os presidiários estavam mudando seu comportamento, então nós levamos ao nosso secretário, na época, pras autoridades, inclusive até na Polícia Federal eu fui. Na época nós fomos rechaçados, rechaçados na época pelas autoridades, dizendo que não existia crime organizado aqui, que nós estávamos querendo é…, deixar a população em pânico, né?”.

“E com isso, não foi feito nada e o crime foi se ramificando, foi se expandindo, a população carcerária foi crescendo, o número de servidores foi diminuindo (….) Tanto é que o tempo passou, o tempo passou, as coisas foram se aprofundando e hoje, infelizmente, nós tivemos de viver o caos”.

No início da noite daquele sábado de janeiro, foi Vilma Batista uma das primeiras a falar com a imprensa sobre o que estava acontecendo. Naquele momento, as informações (muito desencontradas) davam conta de que pelo menos 100 pessoas tinham sido assassinadas no interior da unidade.

Não havia como confirmar isso porque ninguém entrava no presídio, totalmente tomado.

Naquele 14 de janeiro de 2017, o então diretor do presídio de Alcaçuz, Ivo Freire dos Santos Rocha, estava na casa de seus pais, naquele sábado. Durante o dia ele havia se comunicado com seus auxiliares e recebido a informação de que tudo estava tranquilo. Também tinha falado com a direção do Pavilhão 5 e recebido a mesma informação, de que estava tudo bem.

Por volta das 16h, Ivo Freire recebeu a notícia do início de rebelião no complexo. Levou cerca de meia hora para pegar seus equipamentos e conseguir chegar ao presídio. Quando chegou, “Alcaçuz estava toda tomada já”; e todos os agentes no local se concentravam em impedir a fuga em massa de presos pela parte da frente da penitenciária; o que conseguiram.

Naquela época, Alcaçuz contava com 6, 7 agentes por plantão para conter 1.200 presos. E essa situação não era daquele momento específico. Vinha de muito antes, pelo menos um ano. Ivo Freire era uma das pessoas que mais tinha informação sobre o risco que existia por conta desse quantitativo reduzido de agentes e do fato de Alcaçuz não ter mais grades nas celas, situação existente desde a segunda rebelião de 2015.

Ele foi um dos responsáveis pelos alertas feitos à Secretaria de Justiça sobre o assunto. “Os alertas que a gente fazia era justamente em relação a esse acirramento entre as facções. A gente recebia informações dos familiares: ‘uma facção tal tá querendo, ameaçando familiares de outra facção’. Começou com isso, com ameaças entre, até mesmo com familiares”.

O diretor do presídio lembra que essa situação foi constante durante todo o ano de 2016, numa crescente. A ponto do acirramento entre as facções contaminar os familiares. Houve casos de ameaças trocadas entre visitantes.

De acordo com Ivo, foi exatamente essa situação e os constantes alertas feitos por familiares que geraram o memorando do dia 11 de janeiro de 2017, no qual foi firmado o risco de invasão. Mas nem ele nem ninguém esperava que acontecesse daquela forma.

“Sem efetivo, na época, a gente tava tentando controlar da melhor forma possível, principalmente nos dias de visita. A gente pedia reforço e tudo. A gente colocava agentes em pontos estratégicos, para manter a segurança. Era o que a gente podia fazer”, explicou.

“No dia que aconteceu a gente não tinha certeza que ia acontecer naquele dia, então não tinha como a gente prever e chamar assim: ‘ó, eu quero um batalhão de choque aqui, presente na unidade que vai acontecer hoje’. Era difícil mobilizar um batalhão pra uma, pra algo que a gente não tinha certeza e na verdade, não chegou pra gente. A gente emitiu o alerta antes, dias antes falando que tava na iminência de um confronto e a gente tava tomando as medidas diante da nossa capacidade, mas o que aconteceu no Rogério Coutinho era… Foi algo que realmente, naquele dia, eu creio que nem os próprios presos imaginavam que ia tomar aquela proporção”.

Leia mais

Parte 2: “É bom botar as cabeças tudo num canto, não?”

Parte 3: “Eu não tenho certeza se a pessoa que está enterrada lá é meu marido”

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