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Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
por Vasconcelo Quadros
para marcozero.org
Pouco depois das eleições de 2014, o ex-ministro da Justiça e ex-governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro disse, num recado pelo twitter, que o que estava em andamento no Brasil era um movimento golpista ao estilo do que afastou, sem reação, o ex-presidente do Paraguai, Fernando Lugo. Há poucos dias o mesmo Genro afirmou, em artigo, que o golpe para derrubar a presidente Dilma Rousseff, já foi dado. O que está em andamento, na sua visão, é a consolidação do golpe.
Adjetivações de qualquer ordem à parte, Genro foi profético: o que se discutirá nesse domingo, 17 de abril de 2016, no plenário da Câmara dos Deputados, é apenas a possibilidade de resistência de quem se opõe a ruptura de um sistema democrático ainda frágil, mas construído, literalmente, com sangue, suor e lágrimas.
Os segmentos conscientes do que se pode perder a partir deste domingo vêm acompanhando, há 16 meses, um processo conspiratório que se diferencia do que houve no Paraguai apenas pelo seu alto grau de premeditação, planejamento e o longo tempo de maturação.
O presidente da Câmara, Eduardo Cunha, o vice-presidente do país, Michel Temer, a ala mais fisiológica e corrupta do PMDB, com apoio do PSDB e dos vira-casacas de última hora, irão detonar a armadilha. Podem apanhar a presidente, mas não estão preocupados com os sobreviventes que, feridos na consciência democrática ou porque sabem o que têm a perder, certamente reagirão.
O mais lúcido analista político é incapaz, hoje, de prever o que acontecerá assim que Cunha anunciar o resultado da votação. Não é necessário ser especialista, no entanto, para afirmar com todas as letras, que o Brasil, que já estava à beira do abismo, dará um passo em frente, um salto no escuro cujo desfecho, teme-se, pode resultar numa onda de conflitos de consequências imprevisíveis.
Também não é preciso ser jurista para observar que no pedido de impeachment não há motivo para uma medida de força de tal envergadura e que, com todos os seus erros, o governo Dilma e a democracia não devem ser pisoteados para aplacar a sede de poder dos fariseus de plantão.
A democracia brasileira vem de um processo doloroso, lento, falho, mas é a que o país tem. Melhorá-la e aprofundá-la no caminho do progresso social não passa, de forma alguma, pelo golpe que os políticos mais comprometidos com a corrupção, pela conveniência de romper as regras do jogo, pretendem dar. A parte prejudicada, e esse é o risco, vai se achar no direito de reagir.
O golpe contra o voto popular, coração de qualquer regime democrático, é uma iniciativa imoral, amparada pela ação da toga hipócrita e fascista, adesivo do que se transformou a maior ofensiva contra a corrupção desencadeada na era republicana. O brasileiro sadio sabe que o enfrentamento à corrupção se tornaria, em algum momento, necessário e inevitável, mas esperava que o tripé que sustenta o judiciário federal não se prestasse como instrumento do casuísmo e nem se misturasse, como joio e trigo, ao que há de mais podre e atrasado na política.
Até as pedras sabem que esse processo foi detonado por um personagem que, envolvido até a medula com o crime organizado na política, tinha como única alternativa de sobrevivência, forçar a barra para gerar o tumulto em curso no país. Devemos a Eduardo Cunha, no entanto, a revelação nítida e de alta resolução da imagem que mostra quem são e o que pensam os integrantes de expressivo setor da política, do meio jurídico e do jornalismo. Não por acaso, são remanescentes, em ideias e ações, dos mesmos segmentos que colaboraram decisivamente para as tragédias de 1954 e 1964, e que, por ignorância ou maldade, não aprenderam com a história.
Em raros momentos se assistiu um debate tão profundo em torno de uma peça tão dissociada do que é justo, legítimo e legal. Este impeachment é um crime político de lesa-democracia e ganhou corpo graças ao olhar contemplativo do Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição e única instituição que poderia interromper o insano processo num tempo em que os fantasmas da intervenção militar já foram exorcizados.
Meio século e dois anos depois da quartelada que instaurou a mais longa ditadura da história republicana, as novas gerações com voz ativa nas Forças Armadas não participam mais de conspirações políticas ou de movimentos golpistas.
Os militares, desta vez, cumprirão a Constituição e, nas palavras do general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército, a mais forte das três instituições consolidadas à base da hierarquia e da disciplina, seguirão uma filosofia que pelo menos na rima lembra o lema da revolução francesa: “estabilidade, legalidade e legitimidade”, disse o general ao pronunciar, num recado às ruas e aos que, abdicando da liberdade e do direito universal ao voto, ainda pedem intervenção para derrubar governos como nos velhos tempos.
A fala do general, gravada em vídeo pela assessoria de comunicação do Exército e distribuída pelas redes sociais na internet, esclarece que, 31 anos depois de deixarem o poder, os militares têm um novo papel e, se necessário e acionados por um dos poderes da República irão, sim, às ruas para garantir a ordem. Eles já não derrubam mais governos, mas podem mantê-los de pé se estiverem dentro da lei.
Villas Bôas afirma que o Exército vai contribuir para que o país supere a crise “política, econômica e ético-moral” e atuará coberto pela legalidade e dentro da legitimidade conferida pela credibilidade junto à população. A posição dos militares não tem o nervosismo do embate que atrairá a atenção do país neste final de semana.
Nas palavras do general, os militares seguirão o que determina o artigo 142 da Constituição: sob a “autoridade suprema” da Presidência da República, garantirão o funcionamento dos poderes institucionais e, por iniciativa de qualquer destes, a lei e a ordem.
Na avaliação dos militares o resultado da votação do impeachment gerará um novo cenário cujo esforço central será a volta da estabilidade. Caso Dilma não consiga os votos necessários para barrar o impeachment na Câmara e no Senado, o governo será tocado por Temer. Uma vitória do governo viria com a decisão firme de encerrar o processo conspiratório.
A realidade do país é bem diferente de outros períodos, como as crises que levaram ao suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, ou ao golpe civil-militar consumado dez anos depois. Os movimentos sociais, de direita ou de esquerda, estão organizados e, a menos que surja um inimaginável pacto, não deixarão as ruas.
É curioso observar que tanto ontem como hoje as motivações para o golpe são as mesmas: a corrupção e um sentimento anticomunista, este último, retardado e sem sentido, mas resgatado pela direita reacionária, que se veste de verde e amarelo e, nos acampamentos improvisados na Avenida Paulista, em frente a poderosa e sempre golpista Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), recebem “marmitas” de sushi, doadas por comerciantes e moradores dos Jardins paulistanos.
É a esses grupos que a história reservou a mais contundente rasteira. Quem está tendo influência sobre o papel dos militares não é mais a elite, mas um comunista, o ministro Aldo Rebelo, estrela vermelhíssima do partido que atraiu, em abril de 1972, as três Forças para as margens do rio Araguaia no mais tenebroso conflito ocorrido nos anos de chumbo.
O comportamento sóbrio do comunista como ministro da Defesa pelo PCdoB certamente tem contribuído para a nova face democrática das Forças Armadas, algo que, numa inversão de valores e dos tempos, está em falta nos grupos que gravitam hoje em torno do Palácio do Jaburu.
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