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Desarticulação do atendimento no SUS prejudica crianças com microcefalia

Mariama Correia / 06/08/2019

Crédito: Izabele Brito/Fundação Altino Ventura

Desde novembro de 2015, quando o Ministério da Saúde declarou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional por causa do surto do vírus Zika, algumas medidas foram tomadas para fortalecer a rede de atenção. Em Pernambuco houve a descentralização e a ampliação da rede para atender os nascidos com microcefalia, de duas instituições para atualmente 34 unidades de referência. Ainda assim as famílias relatam dificuldades para marcar consultas e tratamentos.

Leia a primeira parte da reportagem:

Quatro anos depois do surto do Zika, crianças com microcefalia ainda não têm assistência adequada

“Sei de mães que esperam na fila por anos para ter acesso a uma fisioterapia. Muitas vezes só conseguimos marcar terapias de 15 em 15 dias. Isso prejudica o desenvolvimento porque elas precisam se estímulos diários, cada pequeno avanço é uma vitória”, explica Germana Soares, presidente da União de Mães de Anjos (UMA). “Imagine se seu filho só vai para escola de 15 em 15 dias? O que ela vai aprender?”, questiona.

Bernadete Perez, pesquisadora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), acompanha crianças que nasceram com microcefalia no estado desde 2015, ano do pico do número de casos, para analisar rede de assistência do ponto de vista clínico e psicossocial. “O problema é que a rede pública é desarticulada. As equipes não se comunicam, os tratamentos não são coordenados e não se considera as particularidades do desenvolvimento de cada indivíduo”, analisa.

A pesquisa realizada por ela em Pernambuco  constatou problemas como a demora da resposta por parte do poder público às complicações desenvolvidas pelas crianças ao longo do tempo de crescimento; a falta de continuidade de atendimento quando os bebês saem da maternidade; a falta de comunicação entre as equipes de saúde, entre outros.

Apesar de todas as queixas das mães e das constatações da pesquisadora, feitas com bases científicas, do ponto de vista do Ministério Público de Pernambuco (MPPE) não há problemas da rede de assistência pública. Um inquérito de dois anos que investigava falhas nos atendimentos às crianças com microcefalia no estado foi encerrado no fim do ano passado e “todos os problemas foram sanados”, garante a promotora do MPPE, Helena Capela. “As famílias se queixavam que tinha que andar mais de 200 km para serem atendidas, isso foi resolvido com a descentralização das unidades. Também pediam a liberação do medicamento anticonvulsivante, o Kepra, que foi incorporado pela farmácia do Estado antes mesmo de ter sido incorporado no SUS”, detalha.

Sobre os problemas no SUS, a secretaria de Saúde de Pernambuco informou que tem incorporado medicações para atender às necessidades clínicas das crianças com microcefalia e feito investimentos na contratação de profissionais e na rede de assistência (reproduzimos  parte das respostas no fim da reportagem). Por três vezes, o ministério da Saúde pediu que reenviássemos o e-mail com perguntas alegando não ter recebido a mensagem. O primeiro envio foi feito em 25 de julho. O último em 2 de agosto. Até o momento da publicação, a reportagem não recebeu respostas do ministério.

Sinal de alerta na saúde e desamparo social

Liana Ventura é médica da Fundação Altino Ventura (FAV), onde funciona um centro de atendimento que reabilita 156 crianças com microcefalia pelo SUS. Depois de uma avaliação global, elas recebem um plano terapêutico específico para cada caso com estímulos diversos. A família também é incluída no acompanhamento,  que conta com grupo de apoio psicológico e social.

Esse modelo de assistência articulada e mais completo é o ideal por ser o que melhor contribui para o desenvolvimento dos pacientes, defende Liana, mas é preciso investir. Em vez de avançar neste sentido, a assistência pública mostra retrocessos. Por limitações financeiras, por exemplo, a FAV não consegue atender mais crianças no centro de reabilitação. Há meses o governo de Pernambuco atrasa repasses para a instituição. “O que recebemos cobre apenas o custeio no centro de reabilitação. Precisaríamos contratar mais profissionais para ampliar nossa capacidade de atendimento”, comenta a médica.

Centro de reabilitação da FAV incorpora vários tratamentos (Crédito: Izabele Brito/Fundação Altino Ventura)

Centro de reabilitação da FAV incorpora vários tratamentos (Crédito: Izabele Brito/Fundação Altino Ventura)

O comprometimento dos investimentos na saúde pública é um problema no Brasil  diante do endividamento de municípios, estados e dos contingenciamentos do orçamento Federal com a imposição do teto de gastos do governo. Tudo isso recai no sucateamento do SUS, no desabastecimento de medicamentos em farmácias públicas e em outros desajustes que aprofundam o abismo entre a assistência ofertada e as necessidades das crianças com microcefalia, cuja maioria é de baixa renda.

90% das famílias de crianças com microcefalia em Pernambuco vivem com um salário mínimo, geralmente do Benefício de Prestação Continuada (BPC)

O desamparo escancara o descaso do Estado com populações mais vulneráveis e pessoas com deficiência. “Quase que a totalidade das famílias vitimadas por essa epidemia são de baixa renda. Não têm acesso à saneamento básico, nem oferta de água permanente, fatores que contribuíram para que o vírus se alastrasse”, aponta a pesquisadora da Fiocruz, Tereza Maciel, autora de estudo sobre impactos sociais do Zika vírus. “O Estado é culpado tanto pela epidemia, quanto por não fornecer atendimento e qualidade de vida às crianças. Os governos nunca foram penalizados, as famílias jamais receberam qualquer indenização”, desabafa Germana Soares, que, além de presidir a UMA também é mãe de criança com microcefalia.

Perfil das famílias de crianças com microcefalia associada ao Zika em Pernambuco

Germana narra a luta das mães, que muitas vezes cuidam das crianças sozinhas. “Todos os meses é uma briga. Quando não é a falta de leite, que já ficou quatro meses sem ser fornecido pela rede pública, é um tratamento que deixa de ser oferecido ou tem que insistir para liberar um remédio na Farmácia do Estado”, comenta. No mês passado, 22 famílias de crianças com microcefalia em Pernambuco tiveram o BPC bloqueado sem aviso prévio do Governo Federal. “As pessoas ficaram sem ter o que comer. Quatro anos depois do surto do Zika o BPC ainda não foi universalizado. Ou seja, se a família tiver outra fonte de renda é retirada do benefício”, comenta a presidente da Associação de Mães e Famílias Raras (Amar), Poliana Dias.

Tantas agruras no cotidiano também causam o adoecimento das famílias. “Essas pessoas sofreram todo tipo de preconceito e de violência psicológica”, comenta a médica Liana Ventura. Ela diz que quando os casos começaram a surgir, havia muita desinformação. Por isso, muitas mulheres só descobriram a condição dos filhos no parto. “As pessoas apontavam as crianças na rua, achavam que era contagioso. Era horrível”, lembra.

Nadja Bezerra recorda que Alice foi desenganada pelos médicos ainda na sua barriga. “Comecei a gritar no consultório. Alice não teve chá de fraldas, porque eu não tinha esperança que ela sobrevivesse. As coisas do quarto dela ficaram empacotadas durante toda a gestação”. O trauma da mãe jamais foi superado, até porque falta estrutura para acompanhamento psicológico direcionado às famílias dessas crianças no estado.

Tereza Maciel, da Fiocruz, lembra que a maioria dos bebês com microcefalia não vieram de uma gestação planejada. Embora a rede pública distribua contraceptivos, falta orientação. Foi assim no caso de Nadja, que não esperava engravidar novamente aos 42 anos, mas suspendeu o anticoncepcional por orientações médicas. “Ele disse que a essa altura da vida não tinha mais perigo de engravidar. Quando os sintomas da gestação apareceram, pensei que estava na menopausa”, recorda.

Nadja se dedica integralmente à filha Alice (Foto: Inês Campelo/MZ Conteúdo)

Nadja se dedica integralmente à filha Alice (Foto: Inês Campelo/MZ Conteúdo)

A dedicação dela à Alice é comovente. Ainda assim, ela diz que gostaria de voltar a trabalhar, mas os cuidados com a filha a impedem. Está com depressão. A maior carga dos problemas familiares termina recaindo sempre sobre os ombros das mulheres, lembra a pesquisadora da Fiocruz, Tereza Maciel. “Muitos maridos abandonaram o lar. Sobrou para a mãe cuidar da criança, abandonar o trabalho, o estudo, os sonhos”. O adoecimento psicológico é uma consequência. “Ninguém preparou essas mães para terem um filho com deficiência.”, ressalta Germana Soares da UMA. “A vida só foi lá e entregou a criança”.

Ameaça constante

A assistência de saúde tem regredido de modo geral no Brasil, na avaliação Bernadete Perez, pesquisadora da UFPE. Ela acreditam que essa realidade é fruto de um retrocesso social percebido no aumento da desigualdade, da pobreza, de doenças evitáveis como sarampo e da mortalidade infantil, que parou de cair. O enxugamento de financiamentos para pesquisas por parte do Governo Federal é outro sintoma dessa involução.

“No começo do surto houve um investimento, mas agora deixou de ser prioridade. Se os cortes se confirmarem, o impacto na produção acadêmica pode atrasar a vacina contra o Zika, que ainda está sendo testada, e pesquisas importantes para antecipar complicações das crianças com microcefalia que podem orientar tratamentos”, considera Tereza Maciel, da Fiocruz.  

Como os problemas socioambientais não foram resolvidos, o vírus da Zika continua sendo uma ameaça constante no Brasil, assim como a dengue e a chikungunya, outras arboviroses transmitidas pelo mesmo mosquito. Depois de dois anos sem notificações, nascimentos de crianças com microcefalia pelo Zika foram registrados no final do ano passado. Em Pernambuco, um nascimento foi confirmado este ano e outros estão sendo investigados. Até maio, a secretaria estadual de Saúde de registrou crescimento de 158,1% nas notificações de Zika, 73,2% nas de chikungunya e 68,4% nas de dengue. A preocupação dos estudiosos e médicos é que os casos de microcefalia voltem a aumentar com a chegada do Verão, em dezembro, quando os mosquitos costumam se multiplicar.

Leia alguns trechos das respostas enviadas pela secretaria de Saúde de Pernambuco: 

Sobre os atendimentos:

As unidades de atendimento estão em todas as 12 Regiões de Saúde, ou seja, cada uma das Regiões conta com no mínimo um serviço estadual de referência para reabilitação e isto tem um impacto importante para estas famílias, que não precisam percorrer grandes distâncias para garantirem o atendimento. Atualmente, essa distância foi reduzida para menos de 50 quilômetros de distância.

Sobre treinamentos e profissionais de saúde na rede pública

Com o intuito de qualificar e padronizar o atendimento em todos os serviços de saúde que atendem as crianças com microcefalia, todas as equipes multidisciplinares dos serviços de referência para as crianças com SCZ/microcefalia receberam capacitação para prestar esse tipo de assistência. Entre 2016 e 2018, cerca de 3 mil profissionais de saúde de diversas especialidades e de diversos serviços, como das Unidades Pernambucanas de Atenção Especializada (UPAEs) e dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASFs), participaram de capacitações que abordaram temas como os atendimentos de urgência e emergência, estimulação precoce, reabilitação e o cuidado na puericultura. Entre as atividades, aulas teóricas e presenciais na AACD, unidade de referência de reconhecida expertise em reabilitação.

Sobre home care pelo SUS

O Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil não possui home care no seu rol de procedimentos, que é estabelecido pelo Ministério da Saúde (MS). O que existe é o serviço de assistência domiciliar, de responsabilidade dos municípios.

Sobre rol de procedimentos

O rol de procedimentos vem sendo ampliado de acordo com as necessidades apresentadas pelas crianças. A rede tem ofertado sessões de fisioterapia, cirurgias (gastrostomia, procedimentos ortopédicos), aplicação de toxina botulínica, entre outros. Importante reforçar que os tratamentos e planos terapêuticos são indicados pelas equipes multiprofissionais de acordo com a necessidade e evolução de cada paciente. Além disso, o Núcleo de Apoio às Famílias de Crianças com Microcefalia atua permanentemente para monitorar e acompanhar, de modo regionalizado, as crianças notificadas durante toda a linha do cuidado, além de prestar apoio às famílias e desenvolver estratégias para garantir seus direitos.

AUTOR
Foto Mariama Correia
Mariama Correia

Jornalista formada pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e pós-graduada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi repórter de Economia do jornal Folha de Pernambuco e assinou matérias no The Intercept Brasil, na Agência Pública, em publicações da Editora Abril e em outros veículos. Contribuiu com o projeto de Fact-Checking "Truco nos Estados" durante as eleições de 2018. É pesquisadora Nordeste do Atlas da Notícia, uma iniciativa de mapeamento do jornalismo no Brasil. Tem curso de Jornalismo de Dados pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e de Mídias Digitais, na Kings (UK).