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A ameaça ao Centro de Saúde Alternativa da Muribeca e a extinção de um bairro

Maria Carolina Santos / 29/11/2019

Giselda Alves, do Cesam (Foto: André Soares)

Pelo caminho até o Centro de Saúde Alternativa da Muribeca (Cesam) o
que se vê parece um cenário de filme pós-apocalíptico: construções
comerciais semidestruídas, prédios abandonados, entulhos com muitos
metros de altura, grandes áreas sem nada. O Cesam lembra, então, um
oásis: uma casa grande, com primeiro andar, rodeada por jardim e quintal
repletos de plantas. O cheiro de ervas no ar se harmoniza com a
serenidade das mulheres que, há 21 anos, trabalham na terra e no
laboratório do centro, plantando, manipulando e vendendo remédios
fitoterápicos. Agora, esse espaço também está ameaçado pelo processo
judicial que determinou a demolição dos 69 blocos do
ConjuntoResidencial da Muribeca.

No dia 13 deste mês, as seis mulheres que fazem parte do Cesam receberam uma notificação da 5ª Vara Federal para desocupar o prédio em um prazo de 15 dias. A alegação é de que o prédio estava em terreno irregular, no entorno do bloco 10 quadra 1 do conjunto Muribeca. Além do Cesam, cinco pequenas casas na frente também foram notificadas no mesmo dia. O temor de moradores e entidades que atuam no bairro é que a ação judicial, que começou há mais de 20 anos por conta de falhas estruturais nos blocos do conjunto habitacional, agora está se expandindo, já em sua fase de execução, para uma ação voltada para desocupar terrenos sem documentação na Muribeca.

Imagens: André Soares (especial para MZC)

OCesam é uma terra fértil para mais de 100 plantas com propriedades
medicinais. Para várias enfermidades, há uma solução ou um alívio.
Tintura de azeitona para diabetes, shampoo de babosa para queda de
cabelo, xarope de xambá para tosse, tintura de mulungu para insônia.
Algumas plantas são sazonais: só quando as chuvas batem na terra, elas
começam a brotar. É uma riqueza que está, então, não apenas no
laboratório onde os medicamentos são feitos, mas na própria terra.

Em uma comunidade onde há apenas um posto de saúde – só com
consultas, sem atendimento de emergência – as mulheres do Cesam têm
também um papel importante de oferecer noções básicas de saúde. Enquanto
conversava com a reportagem da Marco Zero, Giselda Alves, uma das
fundadoras, atendia com atenção quem chegava por lá em busca de algum
remédio, oferecendo informações e encaminhamentos. “Médicos do posto da
Muribeca e de bairros vizinhos também costumam receitar nossos
remédios”, comenta.

O trabalho do centro é amplamente reconhecido na comunidade
acadêmica. Já foi tema de pesquisas de mestrado na UFPE e de curso de
extensão da Universidade de Ottawa, no Canadá. As fundadoras já
participaram de seminários até na Holanda. A UFPE, a UFRPE, o IFPE e a
Fiocruz desenvolveram trabalhos em conjunto com o Cesam. Excursões de
alunos de escolas públicas e privadas são frequentes por lá.

Em frente à casa do Cesam está um enorme terreno vazio, onde antes eram blocos de apartamentos. As cinco edículas  – como Justiça e prefeitura de Jaboatão dos Guararapes chamam as pequenas construções e puxadinhos – notificadas na mesma data ficam coladas com o muro, mas não afetam a construção principal.

A quem interessa, então, a desocupação do Cesam?

Não dá para falar do Cesam sem falar também da história da Muribeca.
Em 1988, pouco depois da entrega dos blocos aos proprietários, o bloco 1
já apresentou problemas na estrutura e foi apelidado de “Balança mas
não cai”. O extinto Banco Nacional de Habitação (BNH) – absorvido pela
Caixa – fez a mudança das famílias para outro residencial e demoliu o
prédio.

A igreja Católica, que havia recebido do BNH um terreno que alagava,
fez uma troca em 1996: ficou com o terreno do bloco 10 em troca do
outro, cedido pelo banco como um espaço de convivência presente no
projeto original da Muribeca. Como a igreja já havia sido construída em
outro local, em 1998 o padre Paulo apoiou a proposta para que no local
funcionasse um centro comunitário, do qual o Cesam faz parte. A casa foi
construída por meio de doações do Lions Clube da Holanda.

À época, o BNH fez um documento de cessão do terreno para a paróquia.
Semana passada, com a inesperada notificação de desocupação, o Cesam
foi atrás de um documento da Arquidiocese repassando o terreno para o
centro comunitário. “Fomos muito bem recebidas. Dom Saburido (arcebispo)
não estava, mas deixou um representante para nos receber e dizer que o
que fazemos aqui é o evangelho vivo”, contou Giselda.

Na segunda-feira (25), munida dos dois documentos, a advogada Lívia Santos, que cresceu acompanhando as atividades da mãe, Arnaílda Ferreira, no Cesam, despachou com a juíza Nilcéa Maggi. Além do documentos que comprovam que o terreno não é da Caixa, levou um dossiê sobre a importância do trabalho do Cesam e uma carta de apoio com a assinatura de mais de 80 entidades. A juíza, então, solicitou duas notas técnicas: uma à Caixa e outra à prefeitura, sobre a legalidade do terreno e o impacto no imóvel da demolição de outras estruturas. A pedido das mulheres do Cesam, Lívia também incluiu no pleito as cinco construções na frente do centro. Tanto a Caixa quanto a prefeitura têm cinco dias para apresentar à Justiça as notas. A partir delas, e com o material entregue pela defesa, a juíza deverá dar sua decisão sobre o futuro do Cesam.

Vista aérea de parte da Muribeca, já com os blocos demolidos (Foto: André Soares)

Não se sabe quemapontou à Justiça a desocupação do Cesam. Em nota à
Marco Zero, tanto a Caixa quanto a prefeitura de Jaboatão dos Guararapes
negaramter feito qualquer pedido desta natureza. A Caixa disse que
acompanha exclusivamente a demolição dos blocos residenciais
originalmente existentes no Conjunto Residencial Muribeca. No mapa de
demolição da AC Engenharia, contratada pela Caixa para as demolições,
também não consta o prédio do Cesam.

Por um termo assinado na Justiça em 2015, a Prefeitura de Jaboatão
dos Guararapes ficou responsável por indicar e notificar as edículas do
Conjunto Residencial da Muribeca. Isso porque, como são muitas pessoas,
seria muito complicado usar oficiais de justiça. À prefeitura, também
coube demolir essas construções. Em nota, a prefeitura afirma que “fez
acordo com a CEF para a própria instituição financeira realizar o
serviço na mesma ocasião em que demolisse os prédios. Quanto ao Cesam,
cabe à Justiça Federal e à Caixa Econômica Federal esclarecer o motivo
da demolição do imóvel”. O motivo, como está escrito na própria
notificação, seria por estar ilegalmente em terreno da Caixa, o que não é
o caso.

“Talvez tenha sido um equívoco. Não queremos apontar o dedo para a prefeitura, não é o nosso intuito. Essa ação serviu para mostrar a força popular, acadêmica e comunitária do Cesam. Veio para mostrar para o município, o estado e a União a pedra preciosa que está aqui na Muribeca”, defende a advogada Lívia Santos.

Muribeca, um bairro em extinção

Tentar entender a situação dos moradores do bairro da Muribeca é como
caminhar em um labirinto: há vários caminhos a se seguir e nem sempre
uma saída. Existem os que eram mutuários/proprietários dos apartamentos
do conjunto habitacional. São em torno de 2 mil famílias. Recebem
auxílio aluguel da Caixa Econômica, no valor de R$ 907, e receberam uma
indenização por danos morais (em torno de R$ 12 mil), mas ainda aguardam
a indenização pela perda do imóvel ou a construção de um outro. Os
valores ainda não foram definidos.

Dos que moravam nos puxadinhos dos edifícios, a maioria foi para o
conjunto habitacional Fazenda Suassuna, na Muribequinha. Foram
enquadrados na faixa mais baixa do Minha Casa, Minha Vida, que beneficia
famílias que recebem até R$ 1,8 mil. “Para quem recebe um pouco a mais
que isso, não foi concedida nenhuma opção”, reclama Luiz Cláudio Gomes,
do movimento Somos Todos Muribeca. “É, também, um bairro longe, quase
sem comércio, com dificuldade de transporte, de educação e saúde”,
continua.

Uma terceira leva de moradores da Muribeca é a que está agora no
centro da ameaça à despovoação do bairro. São aqueles que moram em casas
nos arredores do antigo conjunto habitacional. Surgiram de ocupações
das terras ao redor, que foram crescendo ao longo dos anos. No final de
2018, o grupo Somos Todos Muribeca conseguiu uma verba para fazer um
censo de quantas pessoas estão nessa situação. A pesquisa é comandada
por mulheres da Ilha de Deus, que já têm conhecimento sobre como fazer
recenseamentos em áreas de comunidades.

Até recentemente, a determinação da Justiça era de que as construções distantes até seis metros dos conjuntos também deveriam ser demolidas. As situadas entre seis e doze metros, seriam desocupadas somente durante as obras de demolição, para evitar riscos. Mas no começo de novembro esse entendimento mudou: o critério deixou de ser o de risco para ser o de legalidade. No caso de uma Igreja Batista, que foi notificada e recorreu, a juíza Nilcéa Maggi decidiu que “toda e qualquer construção que estiver dentro do terreno Conjunto Muribeca, em conformidade com a planta apresentada pelo Setor de Engenharia da Caixa, precisarão ser demolidas, independentemente da distância que estejam dos blocos do conjunto”. Ou seja, as ocupações, mesmo as que não oferecem riscos, poderão ser demolidas.

Justiça e prefeitura em sintonia

Há seis anos, o TRF-5 confirmou que a Caixa era culpada pelas falhas
na construção do Conjunto Residencial da Muribeca. O Ministério Público
Federal levantou que 63 dos 69 blocos restantes tiveram algum tipo de
erro na construção: os blocos pré-fabricados em concreto dos
prédios-caixão foram os principais responsáveis pela instabilidade das
construções, apontavam as muitas perícias da Defesa Civil e de
consultorias.

Reformas não pareciam surtir efeitos de longo prazo. Em 1994, o Bloco
15 foi interditado porque havia o risco de desabar. Após meses de
reforma, os moradores voltaram ao prédio no mesmo ano. Porém, 12 anos
depois, foi interditado novamente, com os mesmos riscos estruturais.

O foco das várias perícias eram as falhas na construção. Erros que se
repetiram em outros prédios do tipo caixão na Região Metropolitana do
Recife, o que levou o Instituto de Tecnologia de Pernambuco (Itep) a
vetar em 2005 a construção de prédios-caixão com esta técnica, chamada
de alvenaria autoportante.

A Justiça usou um estudo de macrodrenagem da região de Jaboatão Baixo
para suspender qualquer construção para habitação nos 20 hectares do
antigo conjunto, pois a área seria sujeita a alagamentos. As famílias
que tiveram seus apartamentos e casas demolidos, portanto, não poderiam
mais voltar a ter um lar na Muribeca, mesmo com edificações construídas
com técnicas seguras.

Essa decisão bate de frente com o fato de que, desde 2016, aMuribeca
voltou a ser uma Zeis (Zona de Especial Interesse Social), o que inclui
destinação para habitação popular. Mesmo assim, a prefeitura não foi
atrás de novas perícias ou estudos específicos sobre o solo da região da
Muribeca, aceitando sem contestar a determinação judicial de não
construir habitações ali. Também ainda não foi feito um plano
urbanístico específico para o bairro, como prevê a legislação das Zeis.
“A prefeitura está aguardando a finalização do processo demolitório
para estudar os novos parâmetros urbanísticos da referida Zeis”, diz
nota da prefeitura.

A CAUS – Cooperativa Arquitetura,CAUS Urbanismo e Sociedade está
trabalhando em um plano urbanístico alternativo, feito junto com a
comunidade. Estudos da topografia indicam que a área está entre sete e
nove metros acima do mar. “Não lembro de alagamento no conjunto de
prédios. Pelo contrário, pessoas de outras comunidades se abrigavam das
chuvas aqui. A única vez que entrou água foi na chuva de 2005”, conta
Luiz Cláudio. Naquela ocasião, o rio Jaboatão chegou a subir oito metros
em um único dia.

No mês passado, o prefeito Anderson Ferreira se reuniu com o
presidente do Senado, Davi Alcolumbre, para discutir recursos federais
para a construção de um parque na área do antigo conjunto, que, também
pela decisão judicial, será doado ao poder municipal. Questionada sobre
quais os planos para o futuro terreno, a prefeitura disse em nota que
“por determinação da Justiça federal, o terreno do Conjunto Muribeca
deverá ser utilizado como espaço público. Por ser uma área que mede
cerca de 20 hectares, o município trabalha para contar com recursos
federais”.

Para o advogado Renan Castro, que acompanha a situação das famílias
da Muribeca pelo Centro Popular de Direitos Humanos (CPDH), parece
existir uma espécie de força-tarefa entre o judiciário e a prefeitura
para remover as famílias do bairro. “Eles têm uma sintonia. Uma sentença
judicial determinar que não pode construir habitação é algo bastante
heterodoxo no direito. Não cabe à justiça definir planejamento urbano. A
questão da condenação dos blocos acabou dando constitucionalidade para
que o judiciário e o executivo agissem de acordo com a especulação
imobiliária”, acredita.

O que representantes de moradores veem é um projeto de gentrificação
da Muribeca: quando moradores mais pobres são expulsos de uma região,
abrindo espaço para o mercado. “Se você pergunta o que é a Muribeca para
um ex-morador, muitos têm uma visão saudosista. Houve uma época de
muitas festas, de festivais, de equipamentos públicos que funcionavam,
de acesso a transporte público. A Muribeca fica muito bem localizada:
perto da BR 101, de Suape, com acesso fácil à BR-232. Quando falam em
parque, querem atingir um outro público, diferente dos que hoje moram
aqui. E, depois, outros tipos de empreendimento podem surgir, voltados
para a classe média”, diz Luiz Cláudio, do Somos Todos Muribeca.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org