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Crédito: Andréa Rêgo Barros/PCR
Quem lê o protocolo estadual de volta às aulas, com seus 51 tópicos, rapidamente percebe que ele é incompatível com a realidade da maioria das escolas públicas. Muitas unidades da rede de ensino enfrentam superlotação e problemas graves de infraestrutura. Há locais em que, por exemplo, os banheiros sequer têm torneira ou as pias estão quebradas. Os trabalhadores e as trabalhadoras em educação, assim como as famílias dos alunos, estão apreensivas com o retorno das atividades presenciais.
Somente os estudantes matriculados na educação básica (pública e privada) junto com os profissionais envolvidos efetivamente no trabalho escolar correspondem a cerca de 25% da população do estado. Isso significa um contingente de mais 2,4 milhões de pessoas circulando.
O governo do estado, por meio da Secretaria de Educação de Pernambuco, divulgou as regras de retomada na semana passada, mas ainda não há fases nem datas definidas. Será preciso, por exemplo, manter pelo menos 1,5 m de distância entre os estudantes, trabalhadores em educação e colaboradores em todos os ambientes do estabelecimento de ensino, além de promover diferentes intervalos de entrada, saída e alimentação entre as turmas para evitar aglomerações;
Também será preciso usar máscara, evitar tocar a boca, o nariz e o rosto com as mãos, e lavar sempre as mãos quando tocá-los, disponibilizar álcool 70% para limpeza das mãos e local para lavagem frequente das mãos e higienizar com frequência materiais e superfícies.
No entanto, até o momento, não foram apresentadas estratégias de como colocar o protocolo em prática, se haverá investimentos para readequação das unidades escolares e se há um plano de testagem e afastamento dos profissionais da educação eventualmente contaminados.
Também não se sabe como ficará o plano caso ele não dê certo e os níveis de contaminação cresçam e se haverá um monitoramento específico e mais próximo para o aumento da vigilância epidemiológica nas escolas, consideradas um dos ambientes de maior potencial de transmissão do novo coronavírus.
Pernambuco ainda está com um alto nível de casos e óbitos diários, ou seja, uma situação longe de ser considerada controlada. O informe desta quarta-feira (22) traz 941 novos casos da Covid-19 e 63 óbitos (ocorridos desde o dia 12 de maio). Recife nunca deixou a faixa vermelha de risco da Covid-19, como mostrou a Marco Zero Conteúdo.
“Esse contexto desautoriza pensar em uma abertura das atividades escolares”, avalia Tiago Feitosa, médico sanitarista e doutor em saúde pública pela Fiocruz. Membro da Rede Solidária em Defesa da Vida, ele detalha que o contingente de estudantes, familiares, professores e funcionários que está sem circular é um dos motivos de ainda haver uma estabilização, apesar de em um patamar elevado.
Na avaliação de Tiago, é necessário também haver capacitação de professores e funcionários para o manejo dos alunos em sala de aula e nos outros ambientes escolares. Para ele, “o risco de um repique é muito grande”. O especialista concorda que é visível que as regras divulgadas excedem a capacidade organizacional e de recursos das escolas.
Tiago também questiona se haverá um monitoramento forte para detectar rapidamente qualquer início de surto. “Isso aconteceu na França, por exemplo. De forma rápida, eles cancelaram o retorno às aulas em cerca de 70 escolas, orientaram e refizeram um calendário de reabertura. Isso numa situação epidemiológica bem melhor que a nossa”, pondera.
Crianças têm menos chances de desenvolver a Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars), mas pelo menos 30 crianças de até 9 anos já morreram em decorrência do novo coronavírus em Pernambuco. Elas são potenciais vetores porque circulam nos transportes coletivos, que já são precários e superlotados, e dentro de casa e nos bairros onde vivem.
Uma projeção do matemático Eduardo Massad, professor titular da Escola de Matemática Aplicada da Fundação Getúlio Vargas (FGV), mostra que uma reabertura precipitada das escolas pode acarretar na morte de 17 mil crianças com menos de cinco anos até o fim de 2020 no Brasil. Ele defende que o momento ainda não é bom para a retomada das aulas presenciais, mesmo usando máscara e contando com o distanciamento.
Um estudo da Universidade de Granada, amplamente divulgado pela mídia, demonstrou que colocar 20 crianças em uma sala de aula implica em 808 contatos cruzados em apenas dois dias. No Chile, houve um surto do novo coronavírus em março numa escola e o caso, que contou com ampla testagem, mostrou que, das crianças, 18% apresentaram sintomas e 10% testaram positivo. Mas, entre professores e funcionários, esses percentuais foram bem maior, de 40% e 17% respectivamente.
Para Tiago, é complicado condicionar o retorno às escolas a uma vacina, pois ela poderá demorar muito ou nunca chegar. Porém, é preciso condicionar a volta a um nível baixo da circulação do vírus. Um parâmetro usado em alguns países, segundo ele, é ter pelo menos 14 dias sem nenhum caso novo.
“O protocolo é muito bom, mas ele não tem aplicabilidade nas escolas”, resume Fabíola Siqueira, professora que trabalha em duas escolas do Recife. “Na unidade em que trabalho pelas manhãs, as salas são grandes, mas não têm janelas, é ar condicionado. Então elas não vão estar ventiladas nem arejadas, porque simplesmente não tem por onde o vento entrar”, descreve, preocupada.
A maioria das escolas municipais foram construídas em antigas residências. Não há espaços abertos e ao ar livre. “E mesmo se tivesse, o professor vai ter que cuidar dele, das crianças, do distanciamento, além de dar conta do barulho ambiente e ainda garantir a aprendizagem. É desumano”, diz a professora, cujo salário de um dos dois vínculos não chega a R$ 2,5 mil líquidos pelas 145 horas-aula semanais.
Ela tem turma de 21 alunos de 6 anos de idade. Os menores estão na escola para socializar e não poderão se aglomerar nem fazer atividades esportivas, nem usar parquinhos.
“Nem os adultos estão cumprindo o distanciamento de 1,5 metro nas filas de banco e lotéricas, quem dirá as crianças. Imagina dar conta disso na escola com crianças e adolescentes?”, provoca Fabíola, que ainda questiona como montar uma organização em que grupos de dezenas de alunos terão que entrar, sair e fazer as refeições em horários diferentes.
Muitas escolas não contam com refeitório, então os estudantes lancham dentro das salas de aula. Na unidade em que Fabíola dá aula de manhã, há uma pia no banheiro das meninas e uma no dos meninos. Ela não sabe como será a dinâmica para que todos lavem as mãos periodicamente, sobretudo antes de comer. Outra preocupação é o bebedouro de acionamento manual.
Sobre a situação de vulnerabilidade dos trabalhadores e das trabalhadoras em educação, ela crava: “é suicida”. “Quantos alunos a agente recebe de manhã e que não tomaram banho para ir à escola?”.
O Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Pernambuco (Sintepe) está pressionando o governo de Pernambuco por mais participação na tomada de decisão e numa mesa de diálogo aberto com participação ampla. “Houve algumas reuniões bilaterais, mas não foram suficientes. O governo planejou sem estar junto com quem está na escola diariamente. Ficamos sabendo do protocolo através da imprensa. O documento foi enviado ao sindicato algumas horas antes da coletiva”, detalha Heleno Araújo, diretor do sindicato e presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação.
O Sintepe protocolou um ofício junto à Secretaria Estadual de Educação contendo contribuições para as diretrizes da educação durante e após a pandemia e aguarda um retorno do estado.
“As condições de infraestrutura e a dificuldade de transporte são problemas sérios e isso não é tocado no documento do protocolo divulgado pelo governo. Como isso será feito? Qual será o investimento, já que as escolas não receberam dinheiro do governo federal e não há repasse de recursos por parte do estado?”, questiona Heleno.
Em coletiva de imprensa na semana passada, o secretário estadual de Educação, Fred Amâncio, divulgou o protocolo e informou que ele vale para o estado como um todo, para educação básica (educação infantil e ensinos fundamental e médio), ensino superior e cursos livres.
Mas a partir de orientações do gabinete de enfrentamento à Covid-19, pode ser que as regiões tenham retomadas em datas diferentes. O secretário, que também é vice-presidente do Conselho Nacional dos Secretários de Educação, espera que até o fim do mês sejam divulgadas as etapas e respectivas datas.
“O protocolo é o primeiro documento, vale para todas as instituições de ensino, sejam elas públicas ou privadas”, anunciou. Também poderão ser estabelecidos protocolos complementares específicos, como, por exemplo, para a educação infantil, que envolve creches e pré-escolas. Uma consulta pública está aberta até o dia 24 de julho pelo site http://www.educacao.pe.gov.br/.
A reportagem procurou a Secretaria de Educação de Pernambuco, mas a pasta disse que só conseguirá retornar a demanda até a sexta (23). Vamos receber e avaliar.
A Rede Solidária em Defesa da Vida, formada por profissionais e pesquisadores de diversas áreas que se mobilizaram em Pernambuco para ajudar a dar respostas à pandemia, elaborou um pequena proposta para o governo de Pernambuco:
Apesar de a situação ser mais crítica para a rede pública, as famílias das escola privadas também estão preocupadas com a volta às aulas por conta das incertezas. Muita gente não quer ou não pode se arriscar e algumas pessoas com filhos pequenos estão preferindo que as crianças percam o ano letivo.
O jornalista Geraldo Lélis, que tem uma filha de quatro anos, perdeu o emprego durante a pandemia, e o desconto que ele conseguiu com a escola ficou abaixo do esperado. Ele achou então que não estava valendo a pena o formato online das aulas, com apenas uma hora por dia sem satisfazer a filha, que não estava tendo aproveitamento diante de uma tela em que só os professores falam e dão os comandos.
A companheira dele, que também é jornalista, teve uma redução de 25% do salário, além do corte das horas-extras. Diante das incertezas e do medo, o casal prefere que a filha siga sem ir para a escola na volta às aulas neste segundo semestre, eles acham que o custo-benefício não valerá a pena. Na turma da menina, das 11 crianças apenas duas ficaram.
Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com