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Epidemiologista alerta: “Recife nunca deixou zona vermelha de risco da Covid-19”

Maria Carolina Santos / 21/07/2020

Crédito: Arte de Thiko Duarte sobre foto de Veetmano/Agência JC Mazella

Desde março o cientista Jones Albuquerque vive enfurnado com os números da Covid-19 para os relatórios epidemiológicos do Instituto Para Redução de Riscos e Desastres de Pernambuco (IRRD-PE). Antes de chegar no coronavírus, trabalhou com modelos matemáticos, foco do seu estudo de doutorado, para acompanhar o movimento da esquistossomose, dengue, malária, doença de Chagas, cólera, chicungunha, zika e H1N1, em parcerias com a Fundação Oswaldo Cruz. “Nada se equipara à Covid-19. É devastadora”, diz.

Há quatro meses ele acreditava que o coronavírus em Pernambuco iria ser controlado em 70 ou 80 dias. “Até o 25º dia estávamos muito bem. Depois, perdemos o rumo”, diz. Agora, ele não vê o coronavírus sendo controlado em Pernambuco ainda neste ano, nem mesmo no próximo. “Sem vacina, vamos entrar e terminar 2021 de máscaras, com distanciamento e sem aglomeração”, diz Jones, que considera as hipóteses de imunidade coletiva absurdas. “Somos 212 milhões de brasileiros. Temos em torno de 10 milhões de infectados. Ainda estamos muito longe”.

Se as manchetes de jornais e a propaganda parecem mostrar que na cidade do Recife a situação está controlada, a realidade dos números é outra. “Não há óbito em queda no Recife. Há uma redução da aceleração, isso é fato. Houve um aumento da capacidade per capita de UTIs no estado e isso desafogou os hospitais. O problema também é que os óbitos de hoje só vão entrar nos boletins daqui a dois meses, então como posso dizer agora que são poucos? Hoje mesmo temos mortes de abril sendo registradas. O que se está tentando fazer aqui é controlar a doença no número de mortes. O mundo todo não controla assim, mas em transmissão. O carro ainda está muito veloz no Recife. Para perder o controle é em dois tempos”, alerta.

A zona vermelha em que o Recife está é considerada de risco porque significa que ainda há alta circulação do vírus: é um cálculo feito com a taxa de transmissão e o número de pessoas infecciosas a cada 100.000 habitantes. Quando a resposta dessa conta é acima de 100, significa que há alto risco de contágio. No Recife, está perto de 150.

Na entrevista abaixo, o professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e pesquisador do Laboratório de Imunopatologia Keizo Asami (LIKA-UFPE) fala sobre a situação da Covid-19 em Pernambuco e que esta realidade de platô alto de casos e mortes pode se arrastar indefinidamente no estado.

Jones Albuquerque e Andrew Likaka (Secretário Nacional de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde do Malawi) em missão humanitária para controle do surto de cólera após passagem do Ciclone Idai na região Sul do Malawi. Foto: Arquivo pessoal

Recentemente você trabalhou na epidemia do zika vírus. O que aprendeu com ela que serviu para essa agora do coronavíus?

Aprendemos que se não agirmos rápido, anos se passam e continuamos sem algumas respostas e, o pior, continuamos tão suscetíveis quanto antes quando não conhecíamos uma determinada doença. Aprendemos também que as ações devem partir de todos e não só dos gestores e que colaboração e parcerias entre público e privado são essenciais para dar respostas rápidas e salvar o maior número de pessoas. Às vezes demoram-se meses para se obter um equipamento ou financiar uma equipe, e dias, numa pandemia, podem significar dezenas de óbitos, como estamos vivendo em Pernambuco. Precisamos mudar o nosso modus operandi para sermos ágeis para estarmos à frente das perguntas da sociedade. Parece estarmos sempre atrás, tentando “encontrar respostas”. E o tempo para encontrá-las, como acontece com a Covid-19, tem um preço muito alto, vidas.

Pernambuco está com uma média móvel de mortes perto de 70 por dia. Apesar da queda em junho (para cerca de 52 mortes por dia) ainda estamos em um patamar muito alto. Ainda sem vacina, nem tratamento eficaz contra o coronavírus, outros lockdowns serão necessários?

Precisamos decidir o que queremos em Pernambuco. Sim, lockdowns nos aglomerados urbanos serão necessários se quisermos ter uma vida cotidiana menos restrita. Podemos decidir continuar “convivendo” com esta média móvel de óbitos e aqui será um lugar que ninguém gostará de viver e não conseguiremos atrair mais turistas, nem investidores. Quem gostaria de morar em um local endêmico por uma doença letal? Os países que declararam lockdowns (por exemplo Itália, Espanha, França, Alemanha, Reino Unido) hoje têm uma vida muito saudável (número de novos casos e óbitos indo a zero) em comparação com Pernambuco e Brasil. Observemos também que Pernambuco e o Brasil tiveram uma resposta excelente à infecção pandêmica por coronavírus, melhor que os países citados, nos primeiros 25 dias desde os primeiros casos/milhão. Pois, Pernambuco, por exemplo, parou as universidades e escolas. Depois com a reabertura das atividades perdemos a boa condição.

Há estudos que recomendam lockdowns periódicos, com o comércio reabrindo e fechando durante certos períodos, ao longo dos meses. Essa seria uma boa opção para Pernambuco?

Para pararmos de “cultivar” o vírus na população precisamos de um choque de distanciamento, para isso servem os locks. Como não realizamos nenhum lockdown efetivo, não aprendemos a como fazer um, então os intermitentes, que poderiam ser uma alternativa, sim, não serão eficazes por simplesmente não sabermos fazer um. Para o comércio, precisamos ajudá-los a se digitalizar, a se tornarem remotos e ubíquos (em todo lugar), só assim sobreviverão a esta pandemia e às outras que virão.

Nenhum lugar que foi fortemente atingido pelo coronavírus teve ainda uma segunda onda, como Nova York, o norte da Itália e a Espanha. O que houve, no máximo, foram surtos. Mas também nenhum desses lugares começou a reabrir a economia antes das taxas estarem em declínio há várias semanas – diferente do que aconteceu por aqui. Como você avalia as chances de uma segunda onda no Recife?

Nestes lugares, foi dado um “choque” na taxa de infecção do vírus na população, todos esses lugares agiram energicamente e foram a lockdown assim que perceberam a infecção contaminando a população. Sim, também só iniciaram a abrir suas economias quando estavam em zona de risco “verde”. Além disso, todos eles testaram massivamente seus cidadãos e definiram os limitantes de infecção. Na Espanha, por exemplo, Barcelona acabou de dar um passo atrás no seu plano de reabertura pois testa massivamente seus cidadãos no momento da infecção (Testes RT-PCR) e não os esperam se tornar graves para testar. Aqui não testamos massivamente, apesar de todos os esforços dos governos municipais e estadual. Há a hipótese de que passamos por uma onda de infecção no Recife, mas essa hipótese não pode ser evidenciada ao testarmos uma fração muito baixa da população como aqui. Recife por exemplo, nunca deixou a área vermelha de risco desde que se iniciaram as ações de combate à infecção. Quando comparado com Barcelona, por exemplo, que retrocede em seu plano por estar na zona “verde” e ter tendência de voltar à área amarela, observamos quão Recife está em risco.

Sem que haja novos lockdowns, poderemos ficar indefinidamente em um platô alto de casos e mortes no estado de Pernambuco?

Sim, seguramente. Mesmo com todas as campanhas de conscientização das secretarias de Saúde dos municípios e do Estado estamos adotando precariamente as medidas e práticas de contenção da pandemia. Consequentemente, os indicadores pandêmicos (Curvaturas de Ricci) explicitam estas tendências de ficarmos por um bom tempo em um “platô de infecção” e consequente “platô de óbitos”, infelizmente.

Apesar do discurso de seriedade em relação à pandemia, o Governo do Estado vem pulando etapas da reabertura e cedendo às pressões de setores econômicos, como na antecipação da reabertura de shoppings, academias, bares e restaurantes. Como você vê a atuação do governo no planejamento da reabertura?

O planejamento das ações de reabertura têm que ocorrer, fato. Mas a velocidade dele tem que seguir a aceleração da natureza, e não uma medida criada pela abstração humana. A medida “semana” como indicador de reabertura sugere uma abstração humana e não a real medida da natureza (taxa de infecção baixa na população – aceleração do vírus na população). Sem testes massivos na população, não sabemos a efetiva aceleração do vírus na população e por isso não podemos assumir “semana” como métrica temporal de reabertura. Deve ser pautada na aceleração do vírus na população e para medir isso, teste massivo em tempo real. Por analogia, dois carros com a mesma velocidade podem ter acelerações distintas, os mais acelerados têm comportamento menos previsível e por isso mais perigosos. Por isso, Fórmula 1 é tão perigoso, aceleração alta implica em risco alto o tempo todo. Estamos assim em relação à Covid-19. Reabertura em alta aceleração implica inevitavelmente em risco alto à população envolvida.

Havia um receio de que os números de mortes poderiam subir descontroladamente com a reabertura do comércio no Recife. O comércio de rua começou a voltar no dia 15 de junho e os shopping no dia 22 de junho. Parques e praias, no dia 20 de junho. Já faz mais de um mês que o processo começou. Os novos casos aumentaram por conta disso? Já dá para saber se as mortes aumentaram ou ainda é cedo para avaliar, já que os casos de Covid-19 demoram para ter um desfecho?

Sim havia, mas como não testamos massivamente e ainda incluímos testes rápidos (pouco eficazes) ao protocolo de testes laboratoriais, não sabemos o quê de fato está ocorrendo. Com o aumento de leitos nos hospitais, medida enérgica e sábia dos gestores, garantimos uma tranquilidade de operação para os óbitos decorrentes da Covid-19 e há, sim, uma diminuição do número de óbitos acumulados. Entretanto, a infecção continua pois o vírus, até onde sabemos, continua infectando a população. Digo, “até onde sabemos”, porque estamos testando por demanda e não pró-ativamente a população e nem em tempo real massivamente para sabermos o que está ocorrendo no momento da testagem. Não podemos afirmar baixas e quedas sem observar em tempo real a infecção. Estamos olhando os óbitos e, mesmo eles, só são efetivamente confirmados meses depois. Com as novas estratégias de teste massivo da Secretaria de Saúde do Estado, inclusive, acrescentando quaisquer sintomáticos ao direito ao teste e não só os graves, teremos uma boa visão do que está ocorrendo na população e, aí sim, poderemos avaliar.

O agreste estava em aceleração de casos e mortes e, recentemente, Caruaru e Bezerros passaram por uma quarentena rígida de 10 dias. A quarentena nessas duas cidades teve que efeito? Que outras cidades da região merecem atenção?

Sim, tiveram resultados positivos pois pessoas ficaram em suas casas e criaram a consciência situacional que estamos numa pandemia. Mas não na escala esperada, pois a população não aderiu às medidas de distanciamento nem de isolamento social como pretendido. As medições de isolamento social por dispositivos tecnológicos baseados em telefonia não são efetivas pois a precisão de mobilidade não atende às exigidas pela epidemiologia. Assim, os índices divulgados de isolamento social são superdimensionados, o que nos sugere que a situação de risco é ainda maior que a medida. Num painel das 22 cidades em que monitoramos diariamente o risco epidêmico de COVID-19, todas estão em risco máximo.

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E o Sertão, como está a situação por lá?
O sertão segue em situação melhor em relação às demais regiões e ao número absoluto de casos ativos (diagnosticados positivos), por exemplo, mas segue em expansão de infecção e já com sinais de agravamento. Pode ser que precise de medidas mais rígidas de distanciamento social.

Covid-19 se espalha pelo interior e preocupa o sertão de Pernambuco

Recentemente o matemático Eduardo Mossad afirmou que se as escolas reabrirem, mais de 17 mil crianças podem morrer vítimas da Covid-19. Qual sua análise sobre a reabertura de escolas ainda em 2020?

Diante do risco pandêmico de Covid-19 em que estamos mergulhados, é muito preocupante e arriscado reabrir ambientes escolares fisicamente agora. Não fiz nenhuma análise numérica mais apurada, mas não duvido do número explicitado. Realmente não temos as condições sanitárias para reabertura de ambientes escolares. Não é hora de reabrir os ambientes escolares e expor nossas crianças e adolescentes a tamanho risco desnecessariamente. Se observarmos países que abriram suas escolas em meio a risco de contaminação, veremos que eles tiveram que recuar e fechar as escolas.

A Covid-19 tem se mostrado uma doença de incertezas. Ainda há muito o que se descobrir sobre seus mecanismos de transmissão e até mesmo se uma vacina será duradoura. Nesses meses de trabalho, há algo que podemos ter certeza sobre como lidar com a Covid-19? Acha que ainda há como o Brasil controlar essa pandemia antes da chegada da vacina?

A única maneira até hoje são as mesmas desde o começo dessa pandemia, e que é baseada em quatro princípios: (1) teste massivo, (2) isolamento social de infectados e contactantes, (3) práticas de vigilância sanitária (máscaras, gel, higienização de pessoas e ambientes) e (4) distanciamento social. Só temos essas ações até termos uma vacina. E não somos os únicos no mundo, todos fecharam suas escolas e não as reabriram até terem condições saudáveis e seguras, o que não é o caso de Pernambuco nem do Brasil, pelo menos por enquanto.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com