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Enem da pandemia reforça apartheid da educação no Brasil

Raíssa Ebrahim / 31/07/2020

Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

A pandemia do novo coronavírus aprofundou a histórica desigualdade de acesso à universidade no Brasil e escancarou o elitismo educacional. As aulas presenciais estão suspensas há mais de 120 dias e a prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) foi adiada sem levar em consideração a opinião da maioria dos estudantes em consulta pública realizada pelo Ministério da Educação. Enquanto isso, o desemprego e a queda na renda se acumulam e o auxílio emergencial tem data para acabar, levando junto a saúde física e emocional de milhões de brasileiros. Mais uma vez, são as pessoas de baixa renda que vêm seus sonhos sendo interrompidos.

O adiamento do Enem de novembro de 2020 para janeiro de 2021 de pouco adiantou para a maioria dos estudantes, uma vez que o cenário de dificuldade para manter a preparação não se alterou. Muita gente precisou largar o cursinho preparatório porque não tinha mais como pagar ou porque não estava conseguindo acompanhar o ensino online.

Nem todos têm computador, celular e acesso à internet. A tecnologia por si só também não garante o letramento digital. E nem só de aparelhos eletrônicos se constitui a aprendizagem: é preciso espaço, aparato familiar, tempo e comida na mesa.

Este ano, dos quase 5,8 milhões de inscritos na prova, 83% não pagaram a taxa de inscrição de R$ 85 por atenderam aos critérios de isenção ou porque irão concluir o ensino médio em escola pública. Neste ano, a concessão de gratuidade foi dada automaticamente a todos os inscritos que se enquadraram nos perfis de isenção, mesmo sem pedido formal.

O percentual cresceu em relação ao ano passado, quando 58,5% ficaram isentos do pagamento. A grande diferença é também um indicativo de que mais gente não tem condições de arcar com a inscrição ou que mais estudantes estão na rede pública de ensino.

Joyce Lorena de Barros se formou no ensino médio numa escola do estado no ano passado. Apesar do pouco tempo para estudar e do cansaço, porque também estagiava, a nota dela do Enem 2019 foi suficiente para conseguir um bom desconto numa faculdade privada no curso de direito, mas ela não tinha renda para pagar a mensalidade reduzida.

Moradora do Alto Santa Izabel, Zona Norte do Recife, com quase 20 anos, Joyce começou 2020 conciliando estudos e o trabalho como atendente de uma padaria de alto padrão em Casa Forte, ganhando um salário de pouco mais de R$ 1 mil e enfrentando uma carga horária de quase 12h por dia.

Com menos de um mês de contrato, Joyce foi demitida junto com outros colegas por conta da pandemia. O pai dela, que trabalhava em outra unidade da rede de padaria, também perdeu o emprego. Ela vive com a mãe, que não trabalha. “Nós duas recebemos o auxílio, mas, quando acabar, não sabemos como vai ser”, diz.

Por conta da conjuntura, Joyce não conseguiu ingressar no cursinho preparatório e vem estudando sozinha em casa, se garantindo na internet e nos livros que tem. “Eu tenho um pouco de suporte que dá para estudar. Mas poderia ser bem melhor. Se não tivesse a pandemia, ia ter aulão e eu prefiro as aulas presenciais porque dão mais emoção e a pessoa entende mais. Com a internet, é aquele negócio meio sem graça”, detalha.

“Agora nem estou mais com muita expectativa. Odiei a data que botaram para o Enem, foi muito perto. Por conta da pandemia, a gente deveria ter uma preparação maior, a data de maio estava ideal. Não sei como vai ser a prova, muita gente não teve base nem estrutura e ela é difícil e avançada. Se colocassem uma prova num nível que todos pudessem alcançar, seria bom. Mas, a cada ano, fica mais difícil”, lamenta.

Joyce lembra ainda que, com o fim da escola, perdeu o suporte que tinha no estágio no Ministério Público de Pernambuco, onde contava com computador, fazia curso de Ensino à Distância (EAD) e usava a biblioteca.

Em 2019, o Valor mostrou, a partir dos microdados do Enem, que, entre os 5% com as melhores notas no exame em 2018 (um grupo de 171,8 mil alunos), apenas 0,5%, ou 919 pessoas, era de baixa renda. Em 2020, inscrições de pessoas pretas e pardas somam 60,3%.

(infografia: Thiko Duarte/MZ Conteúdo)

A professora Amanda Alves acompanhou de perto realidades semelhantes à de Joyce. Ela tem um curso de matéria isolada de português e redação no Bongi, Zona Oeste do Recife, há quatro anos, e, dos 12 alunos que iniciaram na turma, cinco tiveram que largar as aulas porque não tinham mais como arcar com a mensalidade de R$ 120 por serem comerciantes ou filhos de comerciantes autônomos.

A professora Amanda perdeu cinco alunos do cursinho que não conseguiram mais arcar com a mensalidade (foto: Instagram)

Os estudantes já haviam pago a matrícula e Amanda não tinha nem como restituí-los porque investiu o dinheiro em infraestrutura e material. “Cheguei a deixar a matrícula como uma mensalidade, mas nem assim eles tiveram como se manter. Um deles me contou ‘meu pai não tem condições e está pensando até em cortar a internet’”, relembra.

Amanda, que também oferta bolsas de estudo para pessoas de baixa renda, conta que passou quase um mês para conseguir se adaptar às aulas online e também conseguir se manter. “Eu comecei a investir em correções e orientações online de redação para concurso e, através desses novos alunos, consegui mais estudantes para os cursos online. Tive uma queda brusca, mas pude tirar lições, vou manter os dois quando as aulas voltarem e aproveitar para profissionalizar as aulas remotas”, comenta.

LEIA TAMBÉM: Campanha “4G para estudar” supre falta de políticas públicas de acesso à internet

Ensino remoto é excludente

Malu Silva tem 25 anos, mora com os avós em Cruz de Rebouças, Igarassu, Região Metropolitana do Recife, e vai prestar Enem pela sexta vez. Uma das vezes foi por experiência e as outras cinco para entrar no curso de medicina. Em 2020, ela decidiu mudar de opção, vai fazer para informática.

A mudança aconteceu porque Malu não conseguiu entrar na área médica nem pelo Programa Universidade para Todos (Prouni) nem pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu) e terminou conseguindo uma vaga no Instituto Federal de Pernambuco (IFPE) de Igarassu para um um curso técnico de informática. Agora ela quer se manter na área, mas no ensino superior.

Porém, com a pandemia, Malu, que está matriculada num cursinho preparatório inclusivo, esbarrou num problema tecnológico e de acesso à internet. “Estou bastante desanimada agora. Pensei em desistir, mas, como já me inscrevi e estou estudando, tenho que pelo menos tentar. Estou tendo dificuldade com a internet, porque às vezes ela cai, e meu aparelho de celular não ajuda muito”, detalha.

Malu não tem wifi em casa e atualiza os estudos com um aparelho de celular que não funciona bem (foto: acervo pessoal)

Malu não tem wifi em casa e conta com o da casa da prima, que vive no mesmo terreno. A família está recebendo o auxílio, mas, quando a assistência terminar, Malu, o irmão, a prima, a tia e os avós voltarão a depender somente da aposentadoria do avô. A estudante votou pelo adiamento da prova para março. Sobre a nova data, não achou ideal, mas acha que foi ao menos razoável.

Isailma Barros, doutora em educação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), pedagoga e professora universitária, avalia que, por conta do contexto da pandemia, a escola virou, metaforicamente, uma “vitrine”. “Porque ela parou, mesmo sabendo que o ensino remoto existe, pois ele não é para todos. O ensino remoto é excludente por envolver uso da tecnologia, letramento digital e acesso à internet. Isso também vale para os educadores, eu sou professora e tive que fazer vários cursos em tempo recorde”, argumenta.

A especialista acredita que o Enem acabou tendo uma balança com vários pesos que não dialogam: o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), que aplica a prova, os estados, que ofertam o ensino médio, as instituições de ensino e os estudantes. “Qual o acesso que está sendo promovido com equidade aos estudantes de baixa renda?”, questiona.

Na enquete feita pelo Ministério da Educação, a maioria optou pela aplicação do exame em maio de 2021. Mas quem venceu foi o lobby das instituições de ensino superior e a nova data foi agendada para janeiro. “Não sei então para que essa enquete. Ela foi usada como elemento democrático, mas o que as pessoas disseram não foi ouvido”, provoca Isailma.

“O que aconteceu no Brasil tem a ver com a gestão do MEC, com vários ministros, mas todos alinhados às políticas públicas excludentes do atual governo. Me preocupo muito com a situação dos alunos do ensino médio das escolas públicas e também das particulares de periferia”, lamenta a professora.

Quase metade dos estudantes pensou em desistir

A pesquisa “Juventude e pandemia do coronavírus”, publicada em junho, mostrou que a instabilidade, tanto financeira como emocional, e a falta de estrutura levaram 49% dos jovens entrevistados a pensar em desistir do Enem 2020. Além disso, 28% dos entrevistados pensaram em deixar a escola e 32% afirmam que falta um ambiente tranquilo para estudar em casa.

O levantamento foi feito pelo Conselho Nacional da Juventude (Conjuve) junto com Fundação Roberto Marinho, Unesco, Rede Conhecimento Social, Em Movimento, Porvir, Mapa Educação e Visão Mundial.

Ana Alice Soares, moradora da Mangueira, na Zona Oeste, foi uma das estudantes que terminou desistindo das aulas preparatórias para o Enem. Com apenas 17 anos, cursando o terceiro ano do ensino médio e sonhando com o curso de enfermagem, ela saiu do Projeto Carolina de Jesus que dava aulas solidárias porque não estava dando conta de conciliar com a escola. Uma amiga da mesma sala desistiu pelos mesmos motivos.

“Eu não estava conseguindo nem acompanhar, apesar do projeto ser muito bom. Antes da pandemia, eu estava colocando todas as minhas energias nele, mas, com a pandemia, estavam chegando tarefas online de uma vez só e eu não estava conseguindo dar conta do projeto e da escola ao mesmo tempo. Presencialmente também tinha muitas tarefas, mas eram mais separadas e na escola eu já adiantava”, lamenta.

PODCAST “ARRUMADINHO”: Episódio #14: Quem vai assumir os riscos da volta às aulas presenciais?

AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com