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Crédito: Aluísio Moreira/SEI
Foi em um já longínquo 12 de março que Pernambuco confirmou os primeiros casos de coronavírus no estado. De lá para cá, foram 140.235 infectados e 7.971 mortos pela pandemia que tomou o mundo de assalto. O auge da doença na Região Metropolitana do Recife ocorreu em maio e, até julho, chegou ao topo em todo o estado. A partir de então, óbitos e casos descem, mas ainda estão em patamar alto. Quando, então, poderá ser dito que a epidemia passou em Pernambuco?
Temporalmente seis meses já é muito tempo para a duração de uma epidemia. No livro O carnaval da guerra e da gripe, o escritor Ruy Castro relata que a epidemia da gripe espanhola (que, apesar do nome, surgiu no Kansas, nos Estados Unidos) durou menos de dois meses no Rio de Janeiro. Curta, mas destruidora: estima-se que matou 15 mil pessoas na cidade.
Com a Covid-19, o que vemos em Pernambuco é um patamar alto de casos, enquanto o número de mortes cai ou se estabiliza. No feriadão do 7 de Setembro, milhares – milhões? – de brasileiros desafiaram a ciência com a situação em que o vírus mais gosta, a aglomeração.
O que vamos ver nessas próximas semanas pode ser decisivo para saber como a epidemia ainda poderá pressionar o sistema de saúde em Pernambuco. A Marco Zero conversou com alguns profissionais de saúde e os efeitos do feriadão, nesses quase 15 dias depois, são sentidos em alguns hospitais, mas não em outros. “Há um aumento de casos, nada comparado a maio. Mas voltou a aparecer Covid em plantões em que há um mês nem se falava mais da doença. Isso era esperado. Aconteceu antes. Vem a grande onda, depois que flexibiliza vem as ‘ondinhas'”, conta um médico que atua na linha de frente em hospitais público e em particulares.
Se o aumento da infecção era esperado, e faz parte da dinâmica do vírus, a grande pergunta parece ser outra. “Precisamos observar o que vai acontecer com os óbitos. Se nada acontecer, se continuarmos com 20 e poucos óbitos, com as UTIs sem solicitação maior…será algo a ser estudado. Talvez signifique o vírus até tenha mudado o comportamento, mas teremos que esperar as próximas semanas”, diz o epidemiologista de dados Jones Albuquerque, da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e do Instituto Para Redução de Riscos e Desastres de Pernambuco (IRRD), que vê as aglomerações do último feriado como “um grande experimento científico gratuito e voluntário”.
Pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz em Pernambuco, o epidemiologista Wayner Vieira também vê que o número de óbitos, mais do que de casos, é o que deve ser o foco da atenção. “Os óbitos em Pernambuco estão caindo constantemente há várias semanas, o que é uma boa notícia. Hoje a média móvel fica entre 18 e 25 óbitos quando já foi de 98. No dia 27 de maio, no auge da pandemia, foram 140 mortes”, relata.
Com a queda sustentada de óbitos em algumas cidades, a epidemia já até pode ter passado. Mas isso não é uma boa notícia. Ao contrário de regiões que chegaram a zero óbito e superaram a primeira onda, estaríamos então em uma fase endêmica – quando a doença já é instalada em um local -, mas com patamares ainda muito altos.
“A pandemia vai ser declarada final mas vai ficar endêmica em alguns locais, alguns países vão ficar com o coronavírus. O Brasil com certeza vai, a América toda, provavelmente. O conceito de epidemia compreende um intervalo de tempo, é uma grandeza temporal. E seis meses é tempo suficiente para dizer que ‘adotamos’ o vírus. Surtos são grandezas temporais pequenas, em semanas. Estamos há quase 30 semanas com o coronavírus. O pico de óbitos em Pernambuco já passou, o de infecção, estamos com ele, ficamos com ele”, explica Jones Albuquerque.
Desde o começo de agosto, a ocupação das UTIs de Covid no estado têm se mantido em cerca de 70%. “E o que seria um novo surto, nesse cenário endêmico? Seria os óbitos aumentarem. Por isso que esse feriadão é uma grande incógnita sobre o futuro da epidemia. Não temos mais como nos livrar do vírus. Temos que reforçar as medidas sanitárias, mas, sem vacina, vamos conviver muito tempo com o coronavírus”, diz o epidemiologista.
Se você acompanha as notícias sobre coronavírus, já deve ter ouvido falar em Rt ou em taxa de transmissão. É aquele número que indica o ritmo de contágio: se está acima de 1, a epidemia está crescendo. Abaixo, diminuindo. Nesta semana, o Imperial College de Londres – que vem fazendo constantes previsões sobre o espalhamento da Covid-19 – calculou em 0,90 a taxa de transmissão no Brasil. Foi a mais baixa desde abril. Isso significa que 100 pessoas passariam a doença para outras 90, e assim sucessivamente.
“Em tese, assim a epidemia iria se resolver”, conta Jones. Esse cálculo, porém, tem se mostrado instável. Pernambuco, por exemplo, chegou a ter na primeira semana de setembro um Rt de 0,7. Mas, na quarta-feira (16), já estava em 1,2. Ou seja: epidemia acelerada. “O Rt não funcionou no mundo. E por quê? porque a Covid demandou um sistema de testagem muito rápido, o que é normal em pandemias. Mas a latência dos testes de Covid chega a 21 dias, é tempo demais”, explica Jones.
Um dos problemas também é o tipo dos testes usados em Pernambuco. Pouco mais de 50% é de teste rápido: ou seja, avaliam se o paciente já teve contato com o vírus, e não se está infectado naquele momento, como os testes do tipo RT-PCR. “Estamos olhando para o passado e não para o presente”, aponta Jones.
“Outro problema é que, como tudo na vida, há uma margem de incerteza”, observa Wayner. “Quando se divulga um número de taxa de infecção, vamos dizer 1, o que não se fala é que há uma margem que pode ir, digamos, de 0,6 a 1,4. É uma diferença grande”, explica Wayner.
“É uma taxa melhor usada para doenças estabelecidas, em que todos os parâmetros são bem conhecidos, como o sarampo”, pondera. “Estava falando com um colega do Rio de Janeiro e, no ápice da pandemia, ele colocava em um dos parâmetros que eram 15 dias de internação. Mas, na prática, depois viu que eram apenas três dias. Os pacientes chegavam tão mal que logo morriam. Isso interferia no Rt“, conta.
Um dado mais confiável e de fácil entendimento são as médias móveis mostradas na televisão. Mas elas também têm suas limitações. Pernambuco, por exemplo, está há várias semanas em estabilidade ou queda de óbitos. Mas na média móvel desta semana aparece em alta: isso porque o Governo do Estado decidiu retirar 65 óbitos de pacientes que vieram de outros estados, mas morreram aqui. Com isso, baixou as médias anteriores, que chegou a ficar em 15, tendo agora uma alta artificial, com 22 óbitos por dia nesta sexta-feira (18).
Na teoria, uma epidemia só acabaria quando a taxa de transmissão estivesse em 0. Para isso, deveria haver proteção das pessoas suscetíveis ao vírus, com imunidade coletiva, ou ao controle das fontes de transmissão. Neste último, o coronavírus impõe uma tarefa muito difícil, por conta do alto percentual de infectados assintomáticos.
Alguns locais fizeram esforços hercúleos. Na semana passada, Hong Kong testou quase um quarto da população de 7,5 milhões habitantes. Quarenta e dois assintomáticos foram encontrados e isolados. Mesmo assim, os casos não chegaram a zero, mas estão em um patamar baixíssimo: nesta quinta-feira, foram registrados apenas nove.
Sem uma vacina, a imunidade coletiva, no caso da Covid-19, implica em uma conta nefasta com centenas de milhares de mortos – o que, de certa forma, está ocorrendo no Brasil com nossos mais de 135 mil mortos.
Uma pesquisa sorológica da Universidade Federal do Maranhão estimou que 40% dos habitantes daquele estado tiveram contato com o vírus. Em Pernambuco, em um cálculo a partir do número de mortos no estado, os dois epidemiologistas entrevistados acreditam que o percentual deve ficar em torno de 35 a 40%. “Não há razões para acreditar que aqui seria muito diferente do Maranhão”, diz Wayner.
Entre as muitas questões em aberto sobre o coronavírus, está qual seria a porcentagem para que a imunidade coletiva seja atingida. Mesmo sem essa respostas, epidemiologistas consideram que é cedo achar que Pernambuco ou o Recife já chegaram nesse patamar.
Autor do livro As regras do contágio: Por que as coisas se disseminam – e por que param de se propagar, o epidemiologista norte-americano Adam Kurchaski citou o (mau) exemplo do Maranhão em longo fio no Twitter sobre imunidade coletiva. Com essa faixa de 35-40% já haveria uma redução na velocidade da epidemia.”Mesmo que a epidemia esteja descontrolada e eventualmente termine em imunidade de rebanho, medidas de controle ainda podem reduzir o dano da doença a longo prazo”, escreveu.
E o longo prazo, em locais como Pernambuco, significa que até que uma vacina eficaz seja aprovada, e que boa parte da população seja vacinada, teremos que conviver com a Covid-19 assim como, há décadas, convivemos com a dengue. As medidas de contenção para o coronavírus, porém, são mais dolorosas: sem aglomerações, com máscaras, higienização das mãos, evitando locais fechados etc. “Eventualmente, poderemos ter surtos da Covid-19, com um aumento de mortes. Aí o estado deveria puxar as rédeas novamente na reabertura”, sugere Jones.
Mesmo sem uma vacina, que a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que só esteja amplamente disponível em 2022, a ciência fará com que a convivência com o vírus seja menos sofrida. De março para cá, por exemplo, houve muitas descobertas e avanços no tratamento. O que se pensava ser um vírus meramente respiratório, hoje sabemos que é multissistêmico, atacando de neurônios ao coração e até o sistema imunológico. “O HIV está aí há 40 anos sem uma vacina, mas ninguém morre mais de Aids se for medicado. Nesses seis meses de epidemia aprendemos muito sobre o vírus. O tratamento melhorou e a mortalidade também caiu. Teremos que conviver, claro, com as medidas sanitárias”, diz Wayner. A epidemia pode ter passado, mas o vírus, pelo jeito, vai ficar por um bom tempo.
Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org