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Ilustração: Thiko Duarte
Por Joana Suarez
Durante o rigoroso período de isolamento social por causa da Covid-19, no Recife, o Centro de Referência da Mulher Clarice Lispector passou a atender, pela primeira vez, as vítimas de violência doméstica por um número de Whatsapp – (81) 99488-6138 – , que funciona 24 horas. O serviço foi divulgado em carros de som nas comunidades da cidade e em propagandas, já que muitas poderiam estar em casa com os agressores e o atendimento presencial estava reduzido.
Em poucos dias, chegaram mais de 100 pedidos de ajuda ou orientação, informou a coordenadora, Avani Santana. Ela identificou uma mudança no perfil das vítimas atendidas por Whatsapp (em comparação com as presenciais), pois a localização delas passou a ser entre bairros mais nobres do Recife. O anonimato das mensagens pode ter encorajado essas mulheres.
Enquanto a reportagem conversava com Avani e ela mostrava algumas mensagens desesperadas que chegaram nos últimos meses, uma mulher fez contato, escrevendo que o companheiro tinha ido embora com o filho, após ameaçar ela de morte. “Você tem que procurar a delegacia e denunciar o rapto”, escreveu a coordenadora iniciando o atendimento, interrompendo a entrevista.
Neste vídeo, Avani relata um dos primeiros casos atendidos pelo Whatsapp. Por quase duas horas, trocaram mensagens de noite: uma atendente do centro de referência e a vítima trancada no quarto dos filhos, podendo apenas escrever mensagens, pois o agressor estava na casa quebrando as coisas. A coordenadora conta que a funcionária do Centro precisou chamar a polícia no lugar da mulher, convencer o porteiro do prédio a não avisar que os policiais subiriam até o apartamento, informando que o condomínio teria responsabilidade caso ocorresse algo com a mulher. Um roteiro de agonia.
Aos poucos a rotina de atendimento presencial no Centro Clarice Lispector vem sendo retomada. Antes da pandemia, o local recebia cerca de 50 novas vítimas de violência por mês, para serem atendidas por psicólogas, assistentes sociais e advogadas. Entre abril e maio deste ano, no auge da quarentena, o movimento caiu para apenas cinco e seis mulheres atendidas, respectivamente. Em junho, subiu para 24, em julho, 35 e, em agosto, 56 primeiros atendimentos.
Enquanto elas não apareciam no Centro de Referência, as agressões em casa passaram a ser todos os dias, o tempo inteiro, e não mais “só” quando o marido voltava do trabalho e/ou fins de semana, quando estavam em casa. Mas algumas encontraram no aumento da violência a força para pedir socorro e se desvencilharam do controle abusivo do companheiro, ou até mesmo do cárcere privado.
No fim de maio, no Recife, Rosa*, de 30 anos, pegou os filhos Joaquim*, de 13, e Rita*, de 11, colocou poucos pertences em três mochilas escolares e saiu de casa escondida. Foi para junto dos pais, interrompendo 16 anos de um relacionamento violento. A coragem para dar um basta, palavra que repete pronunciando as sílabas com força, veio com o coronavírus que a prendeu em casa por mais tempo com um marido agressivo durante dois meses.
Antes da Covid-19, por medo, ela se trancava no quarto com as crianças sempre que o marido voltava do serviço, bêbado ou não. Com ele em casa sem trabalhar, Rosa passou a ouvir o dia inteiro – invariavelmente aos gritos – as palavras puta, rapariga, desgraçada… O homem retomou o trabalho em esquema de rodízio e Rosa partiu com os filhos. “Deixei tudo lá, meus movéis, minhas coisas, minha TV, porque eu não suportava mais”.
O alívio pelo fim do sofrimento não foi sentido só por ela. “Obrigada por estar ajudando minha mãe nesse caso dela com meu pai”, essa foi a mensagem que Rita, de 11 anos, mandou para a advogada popular Margareth Senna, que atuou no caso de Rosa, para libertá-la da violência doméstica.
Margô, como gosta de ser chamada, auxiliou pelo menos 40 vítimas nesses meses de pandemia, através do Instituto Maria da Penha (IMP), da ONG Tamo Juntas e na Coletiva Mana a Mana, em que é voluntária no Recife e Região Metropolitana. “Com todas as vítimas, percebi que as agressões se intensificaram na pandemia, porque o homem, que não estava saindo para trabalhar, passou a ser violento por mais tempo”, disse.
Margareth observa que, quando começa a atender as mulheres, as fotos de perfil do Whatsapp delas são os filhos ou um versículo da bíblia. Elas se afastam dos agressores e, passados três a quatro meses, Margô sabe que seu trabalho começou a fazer diferença quando quem aparece na imagem de destaque são elas próprias, sempre bonitas. É o primeiro sinal de que estão recuperando a autoestima.
Em agosto, os áudios que a reportagem da Marco Zero recebeu de Rosa estão carregados de orgulho, de quem sabe da necessidade de encorajar outras mulheres. “Não aceite ser maltratada, humilhada. Tem que ter força, fé em Deus e vencer. Só vivemos uma vida, e tem que ser bem vivida”.
A primeira vez que Rosa prestou queixa contra o marido foi em janeiro de 2018, quando começou um curso técnico e se percebeu como vítima. Esteve na Delegacia da Mulher sozinha.O marido nunca foi intimado da Medida Protetiva solicitada após o boletim de ocorrência. Isso, por sinal, ocorreu em vários casos que Margareth atendeu como advogada: os agressores não ficam sabendo do comunicado judicial, por alguma falha no sistema.
Sem afastamento oficial, o homem insistiu por cinco meses para Rosa voltar para casa e conseguiu. “Eu cai na lábia dele, no começo ele ficou bonzinho. Mas na verdade foi muito pior, eu não desejo isso pra ninguém”, contou Rosa.
Foram mais dois anos de “inferno”, nas palavras dela. Foi ameaçada de morte e decidiu, definitivamente, se livrar das agressões. Rosa descobriu o IMP e começou a conversar com psicólogas e assistentes sociais. Margô acompanhou a vítima até a delegacia, conseguiu efetivar a Medida Protetiva de Urgência, além de ações para que o pai pagasse pensão alimentícia (essa ainda em andamento).
Rosa vem de uma família evangélica. Isso atrapalhou bastante a separação dela do agressor e que ela entendesse seu direito de viver sem violência. Margô precisou conversar várias vezes pelo telefone no viva voz com os pais de Rosa para explicar que ela estava certa em deixar o marido, que eles precisavam ajudá-la. Os pais diziam que o agressor ia melhorar, mesmo sem nem pagar pensão. “Ela não queria desagradá-los e pediu ao pastor da igreja para conversar e eles ‘autorizaram’ a medida protetiva”, narrou a advogada.
A filha de Rosa, Rita, que agradeceu Margô por ter afastado a mãe do pai, enviou áudios à advogada dizendo que não queria voltar para casa deles de jeito nenhum, que queria que a mãe vendesse o imóvel para elas comprarem algo em outro lugar, bem longe dali.
A menina demonstra muito medo que o pai apareça e a violência seja ainda pior. Ela chegou a gravar um vídeo dele gritando com a mãe. “Quando vejo eles brigando eu fico com raiva, com ódio… ele dá uns tapas, depois passa, mas a morte não”, falou a criança, prevendo o pior.
Por estarem sem escola, os filhos também estão sendo mais afetados pela violência em época de coronavírus, presenciando e sofrendo em frequência maior.
O irmão de 13 anos, nota Rosa, absorveu a personalidade do pai. Ê difícil de lidar, de escutar um conselho, não respeita, bate na menina, esculhamba, “mas foi o que o pai passou para ele, hoje me arrependo, antes tivesse criado meus filhos sozinha”, admitiu Rosa.
O pai falava coisas horríveis com as crianças: “imundos, nojentos, filhos de rapariga, vou jogar vocês no lixo”, cita Rosa fazendo uma pausa longa, como quem relembra as cenas.As mulheres suportam a violência na esperança de proteger os filhos. “Os casos mais graves sempre envolvem crianças”, aponta Margareth. Da mesma forma, acrescenta a advogada, eles os utilizam como armas de chantagem.
Para se libertar do marido, Rosa teria que ir para a casa dos pais com dois meninos, foi então aguentando todos esses anos com ele. “Não valeu a pena, não sei o que é um casamento feliz”. Um homem que nunca a deixou trabalhar e a humilhava dizendo que ela só estava comendo por causa dos filhos.”A gente se ilude, pensa que eles são príncipes. Botei um ponto final e agora posso dizer que vivo na paz”.
Na pandemia, ficou ainda mais custoso fugir da violência com a vigilância do isolamento em casa. Em outra situação acompanhada por Margareth, foi necessário falar por diversas vezes por telefone com uma mulher em cárcere privado. De noite, ela ia para o banheiro, abria o chuveiro para fingir que estava tomando banho e ligava.
“Ficava 5 minutos falando com ela chorando. Foi assim de abril a maio, muito sofrido”, contou Margô, que precisava sempre aguardar a ligação da vítima, porque o chip do celular era retirado. A mulher dizia que não tinha coragem de denunciar, que ele ameaçava matar a ela, as crianças, e se matar. “Ela tremia a voz”. Aos poucos Margô foi fortalecendo ela, que só aceitou chamar a polícia porque a advogada prometeu que estaria presente quando o oficial de Justiça fosse lá.
Para afastar o marido da casa, combinou com a vítima que a polícia interfonaria no apartamento dizendo que a encomenda de livros que a mulher havia feito chegara. Vítima e agressor são professores, moradores de classe média do Recife – o que não altera o grau de violência, avalia Margô.Hoje, essa mulher já está com foto nova no Whatsapp, fazendo acompanhamento psicológico. Os filhos também. “Conversei com os meninos, tenho esse cuidado, porque a mãe não consegue explicar”, falou a advogada.
Os homens usam os filhos como arma mas não têm interesse na paternidade em si, percebe Margareth. Ela narra um terceiro caso com crianças, em abril passado, onde uma vítima de 29 anos, analfabeta funcional, fugiu do interior de Pernambuco no meio da noite com os filhos para a casa da irmã em Jaboatão dos Guararapes, Região Metropolitana do Recife.
O agressor, companheiro desde os 13 anos dela, foi atrás, batia na porta e só aceitou ir embora, cessar os gritos e ameaças, quando levou crianças com ele. “Fiquei uma hora e meia no telefone com ela, ouvindo choros dos filhos e da irmã no fundo”.
Depois que são obrigados a se afastarem das vítimas, Margareth sempre pergunta aos agressores se há interesse em regulamentar as visitas com os filhos, mas esses pais só estão preocupados em reverter a medida, diz a advogada, afirmando ter sido esse o caso do homem que chegou a roubar as crianças para a mulher voltar para casa, e depois não quis ver os filhos.
Esta reportagem faz parte da série “Um vírus e duas guerras”, que vai monitorar até o final de 2020 os casos de feminicídios e de violência doméstica no período da pandemia. O objetivo é visibilizar esse fenômeno silencioso, fortalecer a rede de apoio e fomentar o debate sobre a criação ou manutenção de políticas públicas de prevenção à violência de gênero no Brasil. Ela é resultado de uma parceria colaborativa entre as mídias independentes Amazônia Real, sediada no Amazonas; #Colabora, no Rio de Janeiro; Eco Nordeste, no Ceará; Marco Zero Conteúdo, em Pernambuco, Portal Catarinas, em Santa Catarina; AzMina e Ponte Jornalismo, em São Paulo.
*Nomes fictícios
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.