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Vista aérea do bairro do Poço da Panela. Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo
Não bastasse a aprovação a toque de caixa em primeira votação do Plano Diretor do Recife na Câmara, quinta (17), um outro projeto de lei está sendo encarado pelas entidades da sociedade civil da área de direitos urbanos como o começo do fim das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), marco da legislação urbanística da cidade.
O PL 24/2020 prevê o remembramento dos terrenos de ZEIS na Área de Reestruturação Urbana. A ARU abrange os 12 bairros protegidos por lei específica, que restringe a verticalização em locais como o Espinheiro, Graças, Casa Forte e Poço da Panela. Pela proposta da Prefeitura, o remembramento pode resultar num lote superior a 250 metros quadrados, limite imposto atualmente.
A repercussão negativa fez a Prefeitura retirar o projeto encaminhado no dia 3 de dezembro e reenviar uma nova versão indicando que o remembramento acontecerá “exclusivamente para atender o parâmetro da Taxa de Solo Natural, em situações preexistentes à vigência da lei”.
Em entrevista à Marco Zero Conteúdo, a doutoura em Planejamento Urbano e professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPE, Norma Lacerda, explica porque o PL 24/2020 tem recebido críticas veementes dos urbanistas e alerta para o precedente que “abre as porteiras” das áreas mais protegidas da cidade para o avanço do mercado imobiliário.
Por que o PL que permite o remembramento dos terrenos nas Zonas Especiais de Interesse Social localizados na Área de Reestruturação Urbana – ARU tem gerado tantas críticas e mobilizações da sociedade civil?
Esse projeto assusta porque está abrindo um precedente, está abrindo uma porta. Uma porta, não, um porteira, pra boiada passar e acabar com as ZEIS. Qual o dispositivo mais importante do Prezeis (Programa de Regularização Fundiária das Zonas Especiais de Interesse Social)? Exatamente aquele que não permite lotes maiores de 250 metros quadrados e que não permite o remembramento que resulte em lote maior do que 250 metros quadrados.
Diante da repercussão, a Prefeitura alterou o texto e diz que o remembramento será “exclusivamente para atender o parâmetro da Taxa de Solo Natural”.
Isso não muda nada na essência. Não muda. O que importa é a permissão do remembramento criando lotes maiores do que os 250 metros quadrados. É preciso entender que isso é só o começo, sabemos como eles atuam.
Por que essa proposta agora?
A Ferreira Costa conseguiu uma aprovação, que é irregular, de um projeto na Comissão de Controle Urbanístico, instância que analisa o projeto antes do Conselho de Desenvolvimento Urbano. Acontece que a ampliação da Ferreira Costa adentra a Tamarineira e exige que terrenos sejam remembrados para comportar a ampliação. Ademais, existe também uma demanda do setor imobiliário de produção de unidades habitacionais novas pra acabar com as ZEIS. Esse processo está começando como demanda do setor empresarial comercial, mas já era uma demanda do imobiliário habitacional.
Você disse que o PL abre um precedente…
A questão é que o precedente começa exatamente atingindo a Lei dos 12 bairros. Claro que o PL não é dirigido pra esse caso (da Ferreira Costa), ele é direcionado para todos as 10 Zonas Especiais de Interesse Social da Lei dos 12 bairros. Uma lei que foi reivindicada pelos moradores desses 12 bairros, sobretudo de Casa Forte e das Graças, que passaram a questionar o intenso processo de adensamento construtivo e de verticalização. O Prezeis, de 1987, responde a uma demanda por direito à moradia. Você está acabando com os dois. É um precedente perigosíssimo. O direito à moradia é uma reivindicação de um movimento popular e foi institucionalizado na Lei de Uso e Ocupação do Solo, de 1983. No início eram apenas 16 ZEIS. Hoje, 66. Aí ,em 1987, vem o Plano de Regularização das ZEIS, que determina as regras para se proceder a regularização fundiária e uma dessas regras é justamente a limitação dos terrenos em 250 metros quadrados e a proibição do remembramento de terreno.
As ZEIS têm preservado, mesmo nos bairros mais ricos, a população de baixa renda, permitindo que ela permaneça morando nesses locais.
Exatamente. Veja, o PL começa com 10 ZEIS em algumas das áreas mais valorizadas do Recife, os 12 bairros. Essas 10 ZEIS estão incrustadas em áreas altamente valorizadas. O PL é o suprassumo do retrocesso. Essas populações de baixa renda serão expulsas desses bairros. O que é que vai acontecer se você extingue esse mecanismo? As empresas vão comprar os terrenos com baixo preço porque são áreas hoje ocupadas pela população de baixa renda, não são áreas valorizadas, e vão poder construir empreendimentos imobiliários uma vez que o PL não limita o tamanho do terreno. Você pode ter uma área enorme, eles vão comprando aos poucos. Aliás, é esse o mecanismo de atuação do setor imobiliário, compram uma casinha, depois compram outra e outra… Você deve ter visto o filme de Kleber (Mendonça Filho) não é (Aquarius)? Então, é a imposição na marra. Não tem como resistir.
Quando você vai mudando as regras e as grandes imobiliárias constróem grandes prédios de luxo, aquele espaço urbano passa a ser hostil às populações locais de baixa renda?
Olha, nem sempre é hostil , afinal de contas essas zonas abrigam toda uma população cujo emprego se dá nessas áreas mais valorizadas, então as pessoas moram junto do emprego. E isso é um mecanismo positivo para quem mora lá. O que o mercado não aceita tanto é a questão, por exemplo, de uma das maiores favelas de São Paulo, Paraisópolis, que é encostada em um grande empreendimento imobiliário. Então essa presença nem sempre é desejada. Mas se você tem mecanismos de isolamento, eles não estão nem aí. Me diga uma coisa, você se dá conta da favela ali no Monteiro? Ninguém se dá conta. Quando houve o movimento (pela Lei dos 12 bairros) em Casa Forte ninguém foi contra, pelo contrário. O problema é do setor imobiliário, que quer entrar.
Como você vê o encaminhamento de um projeto desse tipo nos últimos dias da gestão…
Considero um horror. Acho uma espécie de golpe. Digo isso porque já vivenciei de perto. Eu já fui diretora geral de urbanismo da Prefeitura do Recife na primeira gestão de João Paulo e sei bem o que nós herdamos de projetos aprovados na calada da noite, no dia 28, 29 e 30 de dezembro. Uma enxurrada de projetos. Na área da Lei dos 12 bairros isso, inclusive, entrou no processo de negociação para aprová-la. Nós estávamos com 42 projetos aprovados de grandes investimento nessas áreas. Fez parte da negociação da Lei dos 12 bairros a continuidade da validade da aprovação desses projetos e isso contou muito para que a lei fosse aprovada na Câmara. Que é uma lei que eu considero de um respeito à diversidade espacial.
Na justificativa do PL do remembramento, a Prefeitura fala da taxa de solo natural…
É difícil me posicionar porque fica difícil entender o que eles estão querendo dizer. Taxa de solo natural já está definida na Lei dos 12 bairros. Eles querem também entrar nisso? Não tem o menor sentido. O que está por trás é abrir o portão pra boiada passar. É acabar com o direito à moradia da população de baixa renda, do poder público urbanizar e que essa urbanização, melhorando a qualidade de vida, seja apropriada por essa população por meio da regularização fundiária. Aí atende ao direito de moradia, dando a posse dos lotes os seus moradores. A proibição do remembramento garantirá as ZEIS. Se isso se perder, acaba. Não tem mais sentido. Se esse PL passar será o começo do fim, na verdade, será o fim. Porque nos 12 bairros pode e no resto da cidade não pode? É o fim das ZEIS.
A sociedade civil tem chamado atenção para a falta de discussão do PL nos fóruns de participação social, no Fórum do Prezeis…
Você já viu essa gestão dar crédito à população? O processo do Plano Diretor como foi em termos participativos? Os movimentos populares se retiraram. E a gestão era de quem? Do PSB. E vai continuar com quem? Com o PSB. E mandam o PL na calada da noite. Eu quero crer que eles não desacreditem do futuro prefeito, mas melhor assegurar do que remediar depois. Eles devem pensar assim.
Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República