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Foto: Ana Barbosa
No Dia da Visibilidade Trans, a Marco Zero conta histórias de acolhimento de três jovens. Anne Mota é atriz e youtuber, tem 22 anos. Davi Gabriel, 15 anos, é estudante e filho de Danielle. Luiz*, 12 anos, é o mais jovem homem trans a conseguir a retificação do nome em Pernambuco.
No país que mais mata travestis e transexuais, segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais, onde a expectativa de vida para esta população é de 35 anos, de acordo com o IBGE e, ainda, a evasão escolar supera 80%, de acordo com pesquisa do defensor público João Paulo Carvalho Dias, Anne, Davi e Luiz* são inspiração.
Anne é protagonista do longa-metragem vencedor de 21 prêmios Alice Júnior (Netflix), que conta a história de uma adolescente trans. A também criadora do canal Transtornada, no Youtube, fala das experiências na infância e na adolescência, da reação da família, de aceitação e de questões pessoais.
No canal, com tom divertido e, às vezes, com toque de deboche, ela dá exemplos de como enfrentar a transfobia na escola, na faculdade, nos círculos sociais e fala para um público jovem que quer conhecer a perspectiva de uma mulher trans.
Transexual é aqueleque nasce com um gênero e não se identifica com ele. Por exemplo: a pessoa nasce com o corpo de uma mulher, com genitálias e órgãos sexuais femininos, mas não se identifica/sente como mulher. Existem homens e mulheres trans. É importante não confundir com homens gays e mulheres lésbicas, pessoas que se relacionam afetivamente com outras do mesmo sexo ou gênero. Transfobia é qualquer tipo de preconceito, aversão ou descriminação com pessoas transexuais, que vão desde agressões morais, psicológicas, até a agressões físicas que muitas vezes lavam a morte.
“Minha infância foi marcada pelo que podia ou não fazer, falar, sobre o que era de menino e o que era de menina. No meu quarto era um pouco mais livre porque minha mãe tentava me dar proteção mas, na escola, era diferente”, conta Anne, que entendeu sua identidade de gênero aos 12 anos ao assistir ao documentário My Secret Self.
“Depois de um tempo, mostrei o documentário para minha mãe, falei que era trans e minha vida virou de cabeça para baixo. Foi difícil porque ela se assustou e já cheguei falando que queria fazer minha hormonização, mudar meu nome e outras coisas. Ela me levou a médicos e passou a aceitar melhor a ideia. Só em 2014, quando fiz intercâmbio, me tornei Anne”, conta.
Aos 17 anos, viu na internet um anúncio de seleção de elenco para garotas trans. Mesmo destinado a garotas do Sul e Sudeste se inscreveu. “Deveria ter um ou dois vídeos no canal, e mandei para a seleção. Falei que tinha feito teatro quando criança e enviei algumas fotos. Entraram em contato, pediram para gravar um vídeo com parte do roteiro, marcamos algumas reuniões por Skype, algumas com a minha mãe, porque era menor de idade, e me convidaram para ir para Curitiba. Nessa ida soube que iria interpretar Alice. Gil Baroni, o diretor, e o roteirista Luiz Bertazzo falaram que desde o primeiro vídeo eles já estavam apaixonados”.
As gravações aconteceram em 2017. “Foi incrível, estava vivendo o sonho da minha vida. Tenho essa veia artística desde criança e amava gravar o dia todo. Quem assistir Alice Júnior vai entender o poder desse filme. É uma história incrível. Alice também é foda pra caralho!”, comenta.
“Ainda não caiu a ficha, mas algumas crianças trans falam comigo e dizem que se viram ali e que, quando crescerem, querem ser iguais a mim. É muito importante. Já teve uma garota trans que colocou o nome dela de Alice Vitor, inspirada no filme”, completa.
Em 29 de janeiro de 2004, pela primeira vez na história do Brasil, travestis e transexuais estiveram no Congresso Nacional para falar aos parlamentares sobre a realidade dessa população. A data tem o objetivo promover reflexões sobre a cidadania e violações de direitos humanos da população trans no Brasil.
Davi Gabriel, hoje com 15 anos, também encontrou na rede as respostas para entender seu gênero e compreendeu a transexualidade masculina. Conversou com dois amigos e tomou a decisão de contar para a mãe em julho de 2020. “Me assumir para minha mãe foi um negócio de coragem. Há dois anos questionei meu gênero, depois entendi que era um homem trans e compreendi o vazio que sentia. Fiquei por muito tempo só guardando aquilo comigo”, diz Davi Gabriel.
Para Danielle, mãe do garoto, o primeiro momento não foi fácil. Confusão, medo e incerteza foram os sentimentos. Passada a turbulência, com muita conversa, escuta, acolhimento, abriu a cabeça e o coração. “Não é de uma hora para a outra, é um processo difícil. Com o passar dos dias fui encontrando meu eixo, meu eu, e o amor vai reconstruindo a gente. Sou um individuo e ele é outro, só cabe a mim respeitar, amar e acolher”, conta a mãe.
Mesmo tímido, está mais confiante e confortável. É com gratidão e admiração que Gabriel olha para a mãe, enquanto ela o abraça com carinho durante a entrevista. “A gente tem que manter a família como porto seguro”, aconselha Dani.
Respeitar, combater o preconceito, oferecer vagas no mercado de trabalho, convidar pessoas trans para falar de temas que não necessariamente são sobre o universo transexual são formas de visibilizar essas pessoas.
Para Maria Silva*, mãe de Luiz*, 12 anos, a descoberta veio ainda mais cedo, há 4 anos. Descobriram juntos, com ajuda da psicoterapia, e foram aprendendo aos poucos o que significava ser trans.
“Levei oito anos para me assumir, mas desde os 5 anos já achava que tinha algo de errado, que aquele corpo não era meu, não era aquilo. Na época que me assumi não sabia que existia trans, só sabia o que era gay. Minha mãe fala que se eu fosse um canguru, ela ia ser a mãe de canguru mais feliz do mundo”, conta entre um riso e tom de orgulho.
“Ele dizia que não gostava da genitália, do nome, do cabelo, das roupas, que tinha vontade de chorar quando se via no espelho. Guardou o segredo de não se sentir menina dos 5 aos 8 anos. Parti para a batalha, fui ler, fui procurar literatura. Hoje a gente ainda encontra, mas quatro anos atrás era muito chocante, se falava muito de doença mental. Dizia que não, meu filho não é louco, eu sei, eu pari. Disse a ele que estaria com ele para tudo”, relembra Maria que recentemente concluiu o processo de retificação do nome de Luiz*.
Maria comunicou o gênero do filho aos familiares, vizinhos, pais dos amigos e pediu respeito. Os amigos comemoraram seu nome de menino.
O pai de Luiz também o acolheu. Segundo Maria, demorou um pouco mais. “O amor que ele tem por Luiz desconstruiu ele. É massa quando a gente aceita de primeira, mas também é massa quando você se desconstrói, quando se abre”, desabafa.
“A transição não é feita só por ele, é por todo mundo. Não poderia pedir um tempo a ele já tinha esperado demais. Engoli meu choro. Tem o luto da mãe, dói, sim, mas doía muito mais ver ele infeliz”, conta Maria, orgulhosa e emocionada.
Com autorização dos pais, Luiz toma Testosterona há dois anos, com acompanhamento médico e apoio da família e rede de pessoas LGBT. “Isso livrou ele da depressão, da mastectomia futura, da primeira menstruação, do peso do corpo feminino que ele não aceita”, explica Maria.
O Processo Transexualizador foi instituído em 2008, permitindo o acesso a procedimentos com hormonização, cirurgias de modificação corporal e genital, assim como acompanhamento multiprofissional. Para todas as pessoas, a idade mínima para procedimentos ambulatoriais é de 18 anos. Para os hospitalares, 21 anos. Qualquer indivíduo pode procurar o sistema de saúde público e é seu direito receber atendimento humanizado, acolhedor e livre de discriminação.
No Recife, o Hospital das Clínicas, o CISAM, o Posto de Saúde Lessa de Andrade, Ambulatório LBT do Hospital da Mulher contam com Assistência à Saúde da População LGBT, além do Ambulatório LGBT Darlen Gasparelli, em Camaragibe.
A Resolução 2265/2019 do Conselho Federal de Medicina dispõe sobre o cuidado específico à pessoa transgênera:
• A adoção da nomenclatura médica da transexualidade como “incongruência de gênero” nos termos da atualização da CID feita pela OMS em junho de 2018;
• A previsão do Projeto Terapêutica Singular (PTS) que servirá para elaborar o conjunto de propostas terapêuticas articuladas do paciente, que deve ser objeto de discussão coletiva da equipe multiprofissional e interdisciplinar com participação de cada indivíduo e de seus responsáveis legais;
• Para crianças e adolescentes na pré-puberdade: previsão somente do acolhimento e do acompanhamento por equipe multiprofissional e interdisciplinar;
• Para crianças e adolescentes em puberdade: previsão da possibilidade de bloqueio hormonal que consiste na interrupção da produção de hormônios sexuais, impedindo o desenvolvimento de caracteres sexuais secundários do sexo biológico. Prática condicionada à anuência da equipe multiprofissional e do responsável legal do paciente;
• Para adolescentes a partir dos 16 anos: previsão da possibilidade da hormonoterapia cruzada que é a reposição hormonal na qual os hormônios sexuais e outros medicamentos são administrados nas pessoas trans para desenvolverem a feminização ou masculinização de acordo com a sua identidade de gênero. Prática condicionada à anuência da equipe multiprofissional e do responsável legal do paciente;
• Previsão de realização de procedimento cirúrgico somente a partir dos 18 anos e com acompanhamento prévio mínimo de 01 ano por equipe multiprofissional e interdisciplinar;
• Avanço na cirurgia de metoidoplastia para homens trans que deixa de ter caráter experimental.
Dados da Antra
*Nome fictício
*Para preservar a privacidade Danielle e Davi preferiram não mostrar os rostos
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