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Grafiteiros se arriscam para pintar encostas dos morros do Recife sem equipamentos de proteção

Raíssa Ebrahim / 17/02/2021

Prefeito João Campos (PSB) posa para foto com o artista Lelo Boy sem equipamentos de segurança adequados (crédito: Marcos Pastich/PCR)

Grafiteiros e grafiteiras vêm denunciando, há algum tempo, a falta de condições adequadas para pintar encostas sob contrato com a Prefeitura do Recife. O programa Colorindo o Recife começou como uma forma de gerar renda e dar cor a muros e fachadas de equipamentos municipais. Mas, nos últimos anos, foi crescendo e passou a contratar artistas também para pintar espaços maiores – e mais altos – sem que houvesse qualquer atualização das condições de trabalho, segurança e contrato.

A situação coloca em risco a vida de quem exerce a função. No último fim de semana, o que era para ser uma pose de propaganda do prefeito João Campos (PSB) nas redes sociais terminou expondo a insegurança com que esses artistas atuam para pintar encostas como a das fotos, que mede 6.450 metros quadrados, na Comunidade Rosa Selvagem, na UR-7, no bairro da Várzea, zona oeste.

O artista que aparece nas imagens não está usando sequer os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) básicos necessários, como capacete, luvas e calçados especiais. Também não há cintos e cordas adequadas, com ancoragem e proteção em pontos de atrito. Numa das postagens, o prefeito posa segurando a corda que prende o grafiteiro de forma irregular.

Print de postagem no perfil oficial do prefeito João Campos (PSB) mostra o gestor segurando a corda que prende o artista na encosta (crédito: Instagram João Campos)

“Nem precisa ser técnico para ver as irregularidades. É um absurdo. O pessoal está pintando a barreira sem segurança nenhuma e o prefeito segurando a corda achando que está fazendo uma foto bacana”, reclama Shell Osmo, alpinista industrial, artista visual e integrante do Coletivo Pão e Tinta.

Prefeito João Campos (PSB) em selfie com artistas sem equipamentos de segurança adequados na encosta de Rosa Selvagem (crédito: Marcos Pastich/PCR)

No final de 2018, o artista Raoni Assis se acidentou enquanto pintava uma barreira de 40 metros de altura no Vasco da Gama, na zona norte. Sem proteção adequada, ele escorregou e, ao tentar se segurar de alguma forma, machucou mãos, pés e cabeça.

“Como não havia posto de saúde perto, me levaram numa farmácia para eu mesmo fazer os primeiros socorros. Passei cerca de 15 dias sem conseguir trabalhar direito”, lembra Raoni, que destaca a importância da política pública do Colorindo o Recife, mas afirma que é preciso fazer ajustes e dar mais apoios.

O edital do Colorindo o Recife de 2017, que nunca foi atualizado, diz que ao credenciado, ou seja, ao artista, compete realizar algumas atribuições, entre elas “cumprir as regras de segurança e observar as melhores técnicas e as empregar corretamente de maneira a obter os resultados estabelecidos para cada intervenção”.

A classe artística, porém, reclama que esse tipo de cláusula é incompatível com o que vem sendo requisitado nos trabalhos de grande porte. Além disso, diz que as “regras de segurança” não estão especificadas no documento.

Sem apoio nem transparência

Os grupos de grafiteiros também reivindicam mais diálogo e transparência na gestão das políticas públicas de arte urbana da Prefeitura . Morador do Bode, no Pina, zona sul, Shell expõe a falta de apoio de transporte, alimentação, água e ajudante para execução de trabalhos de grande porte e longe de casa, que levam vários dias para serem executados. “É só você”, resume. 

“Quem pega um lugar que é uma barreira tem que se desenrolar. Nós (do Coletivo Pão e Tinta) passamos 45 dias pintando a Ponte do Pina, uma equipe de oito pessoas tendo que se organizar para comer e beber água”, conta ele, que participa desde o início do Colorindo o Recife, em 2013. 

Executado por meio da Secretaria de Turismo e Lazer, atualmente comandada por Cacau de Paula, o Colorindo o Recife é o carro-chefe da política pública de arte urbana da cidade e integra o Mais vida nos morros, gerido pela Secretaria Executiva de Inovação Urbana, que tem Tullio Ponzi à frente.

Prefeito João Campos (PSB) e secretária de Turismo e Lazer, Cacau de Paula, com o artista Marquinhos Atg em agenda do Colorindo o Recife edição de "não Carnaval" (crédito: Marcos Pastich/PCR)

O cachê pago pela gestão municipal é de R$ 5 mil mediante nota fiscal. Quem não tem inscrição de MEI (Microempreendedor Individual) ou outro CNPJ sofre um desconto previsto em contrato e o valor recebido cai para R$ 3,8 mil.

Mas a cena reclama dos atrasos de pagamento. O artista Marqx executou um mural completo e 90% de outro, em 2019, mas, por falta de material, não conseguiu finalizar inteiramente o segundo trabalho, que somava cerca de 60 metros quadrados. Está até agora sem receber o cachê. 

A seleção dos artistas é feita através de inscrição e, depois, sorteio dos habilitados. Mas os integrantes dos coletivos reclamam que não tem onde acompanhar os chamamentos e não dá sequer para entender qual a lógica usada pela prefeitura. Tab, artista do Pina, relata que está até agora esperando sua vez para pintar e vendo artistas que estavam depois dela na fila passarem na sua frente.

Apesar de ser cadastrada e habilitada no Colorindo o Recife desde 2018, esse foi o único ano em que ela conseguiu participar do programa, quando ministrou uma oficina de graffiti, cujo cachê é de R$ 2 mil e cai para R$ 1,6 mil com o desconto de imposto para quem não é pessoa jurídica. 

“Com a mudança de gestão, fica ainda mais difícil o contato e o diálogo. Ficamos um ano inteiro na incerteza esperando uma grana que só talvez role. Pior que você fica chateada, mas termina fazendo porque precisa”, comenta.  

O artista e acelerador social Stilo, do Bode, relembra que o Colorindo o Recife se tornou política pública de arte urbana depois da pressão feita pelo setor. Na época, o então prefeito Geraldo Julio (PSB) vendia o Recife como a “capital das artes”. “A classe artística foi chamada para pensar junto o projeto, a gestão, a seleção, o cachê. Tudo vinha sendo conversado e dialogado”, detalha. 

No entanto, segundo o grupo, desde então gestão municipal e artistas não voltaram a sentar numa mesa para avaliar as ações e dialogar. “Estão querendo fazer uma parada muito grande de qualquer jeito”, reclama Stilo, que lembra que o cachê não é reajustado desde 2017. “A questão da segurança mostra a necessidade de uma reavaliação”, destaca. 

“Queremos ao menos aplicar um questionário para saber qual a avaliação dos artistas participantes. Estamos com receio de mais perdas nas políticas públicas”, alerta Stilo. Ele reforça que programas como esse são uma forma de dar condições para que artistas continuem pintando, produzindo e criando conteúdo. 

“É uma ferramenta cultural, de troca de informação e de sobrevivência”, argumenta, lembrando que a prefeitura não teve um programa específico durante a pandemia voltada para a classe, que também não foi incluída no Auxílio Municipal Emergencial (AME) de Carnaval, apesar de já ter sido a responsável por decorações, realizar pintura de tapumes para a festa e ter sido responsável por transformar muros da cidade em painéis com a temática carnavalesca, compondo a agenda do prefeito no último fim de semana.

Mapa afetivo dos graffitis do Pina em construção pelo Coletivo Pão e Tinta, da zona sul do Recife (crédito: Coletivo Pão e Tinta)

O Coletivo Pão e Tinta está desenvolvendo um projeto aprovado por meio da Lei Aldir Blanc para mapear os graffitis do Pina. A ideia é geolocalizar cada um dos trabalhos da área para criar um mapa afetivo com comércios, escolas e muros onde há intervenções.

De acordo com o Stilo, até agora o levantamento aponta que cerca de 70% dos trabalhos foram feitos por iniciativa própria dos artistas e da comunidade.

O lançamento deve ser feito até março, quando haverá a edição anual do Festival Internacional Pão e Tinta, que acontece há quase dez ano no Bode e já se consolidou como uma das principais datas do grafitti no Brasil.

Prefeitura do Recife suspende intervenção

A Marco Zero Conteúdo procurou a Secretaria de Turismo e Lazer na tarde da última segunda-feira (15) por e-mail e telefone. Também tentou uma entrevista com Tullio Ponzi, secretário executivo de inovação urbana e idealizador do Mais vida nos morros. Mas a prefeitura se posicionou através de uma nota, enviada somente nesta quarta (17) à tarde.

Os trabalhos em Rosa Selvagem foram suspensos e serão retomados “após a adoção de todos os protocolos de segurança”, diz o texto. A gestão, no entanto, não respondeu a outros questionamentos da reportagem, como os planos de diálogo, adequação e expansão do Colorindo o Recife.

Confira a nota na íntegra:

A Prefeitura do Recife ratifica o seu compromisso com a consolidação de uma política pública voltada para a valorização da arte urbana, através de iniciativas como o Colorindo o Recife que, mesmo em um ano atípico como 2020, ampliou o acervo de murais e painéis em espaços abertos da capital pernambucana, com benefício direto a 70 artistas e coletivos cadastrados mediante o edital público de chamamento 002/2017.

A Secretaria de Turismo e Lazer reforça que mantém diálogo aberto com todos os artistas e reafirma o seu compromisso em valorizar a arte urbana na cidade. Com relação aos pagamentos, todos são efetuados em até 30 dias após a emissão da nota fiscal do projeto executado, conforme previsto em edital, instrumento jurídico que também prevê que cabe aos artistas providenciar locomoção e alimentação enquanto executam os serviços.

Em relação à intervenção feita na Encosta de Rosa Selvagem, operacionalizada pela Secretaria Executiva de Inovação Urbana através do Programa Mais Vida nos Morros, assim que foi identificada uma falha pontual pelo não-uso de Equipamentos de Proteção Individuais (EPIs), o serviço foi imediatamente suspenso e será retomado após a adoção de todos os protocolos de segurança.

AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com