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“Corpxs em Alvo”: festival na Comunidade do Bode promove política com tintas

Raíssa Ebrahim / 09/09/2019

Crédito: Thiago Miranda/Divulgação

O Festival Internacional Pão e Tinta, que acontece há oito anos na Comunidade do Bode, Zona Sul do Recife, já se consolidou como uma das principais datas do grafitti no Brasil. É um evento sobre arte, mas principalmente sobre política. Política feita na base, política que discute direito à cidade, juventude, racismo e violência.

Com o tema “Corpxs em Alvo”, durante três dias, de 6 a 8 setembro (sexta a domingo), dezenas de artistas de vários estados se reuniram para pintar os muros da comunidade tradicional pesqueira onde vivem 25 mil pessoas, cravada no bairro do Pina, um dos metros quadrados mais caros do país. Também veio gente do Equador, da Argentina, França e Alemanha.

(crédito: Thiago Miranda/divulgação)

Na foto, o trabalho de Alexsandra (@alexsandraribeiro_dinha), do Bode e moradora do Farol. Crédito: Thiago Miranda/Divulgação

“Não são só os muros pintados. Pintar se tornou a parte mínima, o Pão e Tinta é um movimento político”, resume Shell Osmo (@shell.osmo), artista e um dos idealizadores e organizadores do festival. “No mês de setembro, a gente passou a ir para a capa dos jornais, e não foi com morte nem carro roubado”.

“Cada dia mais o Pão e Tinta se transforma num coletivo de arte que pauta a política, de maioria favelada e preta, todo ano com um tema que reflete a nossa realidade”, explica Stilo Santos (@stilosantos), acelerador social, agitador cultural e também um dos idealizadores e organizadores. Sobre os corpos que sempre estiveram em alvo, ele conta que perdeu 26 amigos vítimas de homicídio em 2017. “Não é fácil descapitalizar. Por isso temos que nos aquilombar nas lutas, descristalizar esse sistema nos juntando”.

(arte: Wendell Araújo - @wendellnarkedmi)

Arte: Wendell Araújo – @wendellnarkedmi

O Festival Pão e Tinta é sobre isso, é sobre a força de resistir e salvar vidas. O mais recente Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, publicado em junho, mostrou um patamar recorde de violência, em que 75,5% das vítimas de homicídio no país são pessoas negras, a maior proporção da última década (em 2007, esse percentual era de 63,3%). Enquanto 16 mil pessoas não negras foram assassinadas, 49,5 mil corpos negros foram alvo de violência letal.

“Sete de Setembro, independência para quem?”, questiona Stilo, na problematização sobre a data, no sábado, enquanto o Festival Pão e Tinta tomava conta dos becos do Bode com o mutirão de grafitti e também com shows, poesia, batalha de break e de rap e oficinas, sem contar com o estímulo à economia e ao consumo locais.

Segundo os organizadores do evento, o conceito de mutirão de grafitti nasceu nas periferias do Recife e se espalhou pelo mundo. Hoje inspira iniciativas como o famoso Meeting of Favela (MOF), que virou tradição na Vila Operária, em Duque da Caxias, no Rio de Janeiro.

Tanto a abertura na sexta (6) quanto o domingo (8) do festival não poderiam ter acontecido num local mais simbólico, o terreno de 21 hectares (cerca de 21 campos de futebol) do antigo Aeroclube do Recife, área fechada em 2013 para a construção da Via Mangue. A prefeitura da cidade já anunciou que pretende construir os residenciais Encanta Moça 1 e 2 em uma parte da área, que deve ser transformada num espaço multiuso. Mas as comunidades do Bode e de Brasília Teimosa reivindicam mais unidades habitacionais para que mais famílias possam ser contempladas.

Segundo Shell, mais de 100 casas já foram medidas para desapropriação por técnicos da Prefeitura do Recife este ano e a informação dada aos moradores e às moradoras é que as negociações começam em janeiro do ano que vem.

“Monte sua panela”

Como todo ano tinha reclamação de que o festival só escolhia “a panelinha” – expressão recifense usada quando só se escolhe gente de um grupo restrito -, o Pão e Tinta resolveu montar um conselho de curadoria coletiva. Foi daí que surgiu a ideia do “Monte sua panela”. Quinze coletivos listaram suas preferências, minimamente paritárias entre homens e mulheres, e a organização tirou uma média dos nomes que mais apareceram, sendo que quatro deles foram de pessoas LGBTQI.

Marqx (@maxmottawtf) foi um dos selecionados do “Monte sua panela”. Designer gráfico e artista visual nascido nos Torrões, Zona Oeste do Recife, ele grafita desde 2003 e conta que, desde que voltou, em janeiro, de uma temporada de quase seis anos no Sudeste, esperava ansioso pelo Pão e Tinta – “é o principal evento do ano”.

O portão antes e depois de receber o grafitti de Marqx:

(crédito: Raíssa Ebrahim/MZ Conteúdo)

Antes. Crédito: Raíssa Ebrahim/MZ Conteúdo

(crédito: Raíssa Ebrahim/MZ Conteúdo)

Depois. Crédito: Raíssa Ebrahim/MZ Conteúdo

Ao todo, a curadoria este ano selecionou 70 artistas, que foram custeados pelo evento e receberam material da Paris 68, uma das principais marcas de tinta spray do mercado. Além dela, o Pão e Tinta contou com apoio da Escola de Ativismo, Action Aid, Pacs e Fase.

Mas as atividades rolam mesmo é através do esforço coletivo e da vontade de fazer acontecer. “A gente começou fazendo um luau, reunindo os amigos e cada vez foi chegando mais gente. A própria comunidade passou a pedir para a gente pintar, para se empoderar no lugar daquele cinza que já não existia mais”, relembra Shell.

Ele é dos leiloeiros do “Leilão em chamas”, que também rolou durante o festival. Funciona assim: os artistas colocam seus trabalhos na roda e um lance mínimo é dado. Se ninguém levar, a obra é queimada.

(crédito: Raíssa Ebrahim/MZ Conteúdo)

Na foto, Hugão e João, de Fortaleza, que pintaram o mesmo portão em 2017 – @hashtag.eu Crédito: Raíssa Ebrahim/MZ Conteúdo

Mulheres no grafitti

“Assumir e impor a nossa presença no grafitti é uma batalha diária para nos superarmos e sermos respeitadas”, diz Cona (@cona.opg), artista de Ouro Preto, Olinda, no grafitti desde 2017. Junto com um grupo de mais de 10 mulheres, elas formam o Pixe Girls (@pixegirls) e brigam por espaço na cena. “Eu já tive que ouvir frases do tipo ‘vou salvar teu trampo’”, conta Mila Barros (@millabaarros), que é mãe e luta também pelo lugar da maternidade solo nesse universo. “É para que a gente esteja no rolé sem ter que ouvir ‘com quem tu deixou teu filho?’”.

Parte do coletivo Pixe Girls (crédito: Raíssa Ebrahim/MZ Conteúdo)

Parte do coletivo Pixe Girls. Crédito: Raíssa Ebrahim/MZ Conteúdo

A presença de Naara Tati (@naaratati), artista e organizadora do Point Bomb, movimento que reúne grafitti e hip hop, foi também representativa da resistência das mulheres e das pessoas com deficiência. “Esse universo é uma resistência para mim que sou mulher e tenho um defeito no olho, para mostrar que podemos, sim, quebrar barreiras”, defende.

Ela costuma fazer trabalhos de grande porte para provocar, “para as pessoas ficarem encucadas mesmo, pensando ‘porra, é uma mulher’”. Naara fala da necessidade e importância de olhar o próximo, de prestar atenção nos corpos em alvo ao redor.

Naara Tati (crédito: Thiago Miranda/divulgação)

Naara Tati. Crédito: Thiago Miranda/Divulgação

O artista que aparece na foto de abertura desta matéria é Rodolfo de Araújo Tavares (@antsocialmfc)

AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com