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Crédito: Fotos: Andréa Rêgo Barros/PCR
“Nessa pandemia sofri violência. Quando pegava dinheiro emprestado, meu marido tomava. Quando reclamava, ele me batia. Vivi muito tempo isolada por causa dele. E passei muito tempo também apanhando por causa de dinheiro. Meu auxílio ele também tomava”, Carla*.
“Essa pandemia deixou muita gente precisando das coisas. Eu sou uma. Mãe de seis filhos. Tenho meu marido desempregado, sou desempregada também. Recebi meu auxílio, mas não dá pra pagar quase nada. Às vezes falta comida para eles e eu tento arrumar, ver se consigo… E agora sem o auxílio é que tá mais difícil ainda”, Luiza*.
“Foi muito difícil receber o auxílio, porque a quantidade de pessoas na minha casa é grande e as coisas estão muito caras. Então, está sendo ainda muito mais difícil ainda agora. Preciso comprar as coisas para minhas netas, meus filhos e só compro pela metade”, Ana*.
Os depoimentos são mulheres da comunidade Santa Luzia, no Recife. Todas desempregadas, aguardando a volta do auxílio emergencial para levar comida para a família no momento em que o Brasil atravessa o pior momento da pandemia do novo coronavírus, mesmo depois de um ano de convívio com a doença. Se o ano de 2020 foi particularmente difícil para as mulheres, especialmente as vítimas de violência doméstica, 2021 corre o risco de ser ainda pior porque não há qualquer perspectiva de que o país reverta as crises sanitária, econômica e política que enfrenta simultaneamente.
Durante a pandemia, muitos serviços de assistência social não estão funcionando como deveriam, incluindo o atendimento às vítimas de violência doméstica. A Marco Zero revelou este problema na edição anterior do monitoramento Um vírus, duas guerras e agora, já em 2021, o problema persiste. “Em fevereiro fui encaminhar uma pessoa para um centro de assistência e não tinha nem assistente social nem psicóloga. Tivemos que esperar até de tarde pelo atendimento”, conta Sílvia Dantas, do Fórum de Mulheres de Pernambuco (FMPE). “A verdade é que não sabemos a real situação desses serviços no estado, porque não temos dados”, diz, completando que ainda, em março, o FMPE vai fazer um levantamento da qualidade desses serviços em Pernambuco.
Diante das dificuldades impostas pela pandemia, o auxílio emergencial foi a principal política pública para as mulheres em vulnerabilidade social. Os dados mais recentes do IBGE, de 2019, mostram que a taxa geral de desocupação (pessoas sem trabalho, mas à procura de um) é de 15,1% em Pernambuco mas o mesmo indicador foi ainda maior para as mulheres: 17%, contra 13,6% dos homens. No recorte de raça, 18,8% das mulheres negras estavam desocupadas, enquanto para mulheres brancas a taxa era de 13,2%. “Conquistamos o direito ao auxílio emergencial de R$ 600 e R$ 1,2 mil para as famílias chefiadas por mulheres e isso foi uma grande conquista. Depois, em setembro, conseguimos que o governo prorrogasse o auxílio até dezembro, mas foi reduzido para R$ 300”, lembra Verônica Ferreira, pesquisadora do SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia e integrante da campanha Campanha da Renda Básica Emergencial.
Um novo auxílio deve começar a ser pago nas próximas semanas, mas o valor exato ainda não foi divulgado. Em uma rede social, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que seria de R$ 250, com quatro parcelas, mas há especulações de que os valores podem variar entre R$ 375, para mulher chefe de família, e R$ 150, para beneficiários que morem só. A intenção do governo é lançar a Medida Provisória do novo auxílio assim que a PEC da Chantagem, como a PEC Emergencial é chamada pelos movimentos sociais, seja aprovada na Câmara dos Deputados.
Independentemente do valor que cada beneficiário vai receber, o montante geral será bem menor do que no ano passado, quando foram investidos R$ 300 bilhões. Agora, serão apenas R$ 44 bilhões. Além do valor reduzido, um número bem menor de pessoas deve ter direito ao benefício. No ano passado, mais de 65 milhões de brasileiros receberam alguma parcela do auxílio. Para Verônica, quando o auxílio entrou em vigor, em abril do ano passado, era para garantir proteção contra a pandemia, para que as pessoas não tivessem que se expor ao novo coronavírus. Um ano depois do início da pandemia, a situação ficou mais precária. “Hoje é uma questão de sobrevivência”, diz.
“O que a gente pode esperar de 2021 com um auxílio de valor baixo, arrocho fiscal e pandemia em alta é o aprofundamento da pobreza. A fome vai aumentar exponencialmente. E as mais atingidas continuarão sendo as mulheres. Elas foram as mais beneficiadas pelo auxílio emergencial e são as principais impactadas pela diminuição do valor. Isso em um contexto de sobrecarga de trabalhos e de aumento da violência doméstica. Para muitas mulheres, o auxílio significou uma autonomia, uma saída de lares violentos. Estamos agora vivendo um cenário de horror, com desastre sanitário e fome. É um quadro irreparável”, afirma Verônica.
Moradora há 35 anos da comunidade de Santa Luzia, Elzanira da Silva estava trabalhando como cuidadora de idosos quando a pandemia começou. Teve que deixar o emprego e ficou em casa com os netos. O auxílio foi essencial para que ela conseguisse comprar alimentos. Deu até para passar uma “mão de cal” na casa e pagar as contas atrasadas de energia.
Também educadora social e integrante da Rede de Mulheres de Pernambuco, Elzanira notou também que faltou orientação para a população sobre o tempo de pagamento e a finalidade do auxílio. “Depois de muito tempo sem dinheiro, muita gente pegou o auxílio e saiu comprando coisas. Teve quem fez festa de criança, festa na rua. E depois ficou sem ter o que comer. Aqui na Santa Luzia quase todo mundo recebeu. E agora tem gente que está endividada, sem ter como pagar o que comprou no ano passado”, conta.
Nesses primeiros meses de 2021, sem auxílio e sem emprego, a situação está bem pior. “A violência dentro e fora de casa tem aumentado muito. A gente ouve os gritos, a gente escuta as brigas”, conta. “A pessoa olha para os quatro cantos e não tem nada. Nem perspectiva de nada, não vê a luz no fim do túnel. E a pandemia voltando com toda força. Na minha rua, tem três famílias que estou ajudando. Consigo doações e saio dividindo. A maioria das mulheres na comunidade é mãe solo ou, quando não são, os maridos estão presos. O ano passado foi muito difícil, foi de extrema pobreza mesmo. As mães sem paciência, sem nada para dar às crianças…e aí batem, gritam. Os homens indo beber. Quando chegam, batem nas mulheres. Com a pandemia, a violência dentro das casas piorou muito. O auxílio ajudou as mulheres, mas muitos homens tomavam esse dinheiro para beber. Quando elas negavam, o pau cantava”, afirma Elzanira.
Em uma rápida volta pela comunidade, de menos de 15 minutos, ela gravou para a Marco Zero os depoimentos que abrem essa reportagem. “É uma situação de desemprego generalizada. Se não tiver outro auxílio, a fome, a violência doméstica e o adoecimento vão explodir”, alerta.
A PEC emergencial vem sendo chamada de PEC da chantagem porque atrela o pagamento do auxílio a uma série de medidas de ajuste fiscal. A medida foi aprovada no Senado e seguiu para a Câmara dos Deputados, onde a expectativa é de que seja votada ainda nesta semana. Mais de 150 organizações e entidades apoiam a campanha Auxílio Emergencial Até o Fim da Pandemia, que reivindica o valor de R$ 600 enquanto durar a crise sanitária. No site da campanha, há um espaço para eleitores pressionarem os deputados a votarem contra a PEC Emergencial.
Como se a aceleração dos casos de covid-19 em todo o Brasil e a redução do auxílio emergencial já não fossem ameaças suficientes à dignidade e à vida das mulheres, em fevereiro deste ano, o presidente Jair Bolsonaro assinou quatro decretos que flexibilizam o uso e a compra de armas de fogo no país.
As novas regras passam a valer em 60 dias e basicamente flexibilizam o uso e a compra de armas, uma das principais promessas de campanha do presidente. Com os decretos, sobe de quatro para seis o número de armas de fogo que o cidadão comum pode adquirir e o governo agora passa a permitir expressamente o porte simultâneo de duas armas. Agora também deixa de ser necessário comprovar aptidão psicológica para ter armas por meio de laudo fornecido por psicólogo cadastrado na Polícia Federal e passa a valer apenas laudo ser assinado por psicólogo com registro no Conselho Regional de Psicologia, além de aumentar o número de munições que cada pessoa pode adquirir.
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Sofre ou conhece alguém que sofre de violência doméstica? Pelo número 180 é possível registrar a denúncia e receber orientações sobre locais de atendimento mais próximos. A ligação é gratuita e o serviço funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana.
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* Sobrenomes omitidos para preservar a identidade das entrevistadas.
Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org