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Brasil não conhece o perfil nem o tamanho de sua população de rua, adverte especialista da Fiocruz

Maria Carolina Santos / 15/03/2022

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

O Núcleo de Populações em Situações de Vulnerabilidade e Saúde Mental na Atenção Básica (Nupop) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) foi criado em 2017 para pesquisar e atuar nas políticas públicas da população de rua no Brasil. Nesta pandemia da covid-19, lançaram duas publicações sobre saúde mental e atenção psicossocial desta população. Uma das coordenadoras do Nupop, a pesquisadora Fabiana Damásio conversou com a Marco Zero sobre os desafios em atender a população de rua no Brasil.

Marco Zero Conteúdo – Não há uma pesquisa nacional, atualizada, sobre população de rua na pandemia. Algumas prefeituras fazem suas próprias pesquisas ou usam do Cadastro Único ou estimativas do Ipea. Como você vê essa questão da falta de dados?

Fabiana Damásio – Essa é uma questão muito importante, de saber quantos são os moradores de rua. Segundo uma estimativa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), realizada no início de 2020, havia aproximadamente 220 mil pessoas em situação de rua. O último censo realizado sobre essa população foi em 2009, falando em nível nacional. Depois disso, o que temos são estimativas. Uma outra informação também importante é que cada estado acaba realizando uma pesquisa, mas apenas em determinados momentos. Não existe uma pesquisa periódica. Por exemplo, agora a última pesquisa que saiu foi realizada pela prefeitura de São Paulo, que fica no estado que concentra o maior número de população em situação de rua, cerca de 25% do Brasil. E indica que houve um aumento de 31% durante a pandemia. Esse é o registro mais recente que nós temos, de janeiro. Hoje ,não há um censo da população em situação de rua para sabermos qual é o tamanho desse universo e quais as ações necessárias. O que temos observado nos estados é que com a pandemia esses números cresceram. Mas não dá para dizer que esse aumento de 31% se reflete no país todo, porque a realidade dos estados são bem diferentes.

Existe um perfil da população de rua? E esse perfil mudou com a pandemia?

Os motivos pelos quais as pessoas se encontram em situação de rua passam por questões de trabalho, de fragilidade dos laços familiares, da ausência de moradia. Além das próprias mudanças de contexto do país, das situações econômicas, que repercutem socialmente. Fatores que também podem ser rompimentos de vínculos familiares ou o próprio uso de álcool e drogas. Como pode existir uma situação como a que vivemos agora na pandemia, que trouxe consequências que acabaram por gerar um aumento da população em situação de rua. Foram realizados levantamentos que apontaram um aumento do número de famílias em situação de rua. Estima-se que houve um aumento aproximado de 30% das famílias em situação de rua. Isso se reflete muito em função da própria consequência da pandemia no mundo do trabalho. Muitas vezes a família não consegue sustentar o pagamento das suas contas na sua integralidade. Famílias que migraram para as cidades em busca do auxílio emergencial, em busca de algum benefício, mas também em busca da sobrevivência.

Encontramos muitas mulheres, com mais de 50 anos, que não conseguiram auxílio ou que estão atrás de alguma aposentadoria. Esse é um perfil comum de mulheres em situação de rua?

Crédito: Sergio Velho Junior/Ascom Fiocruz Brasília

Sim, é. Vou dar um exemplo de uma pesquisa que nós realizamos aqui no Distrito Federal. O perfil das mulheres era com idade média de 45 anos. Há várias questões para elas estarem em situação de rua. Podem ser desde de situações relacionadas ao emprego, fragilidade de vínculos familiares e também ao uso de álcool e drogas e questões de saúde mental também.

Nos últimos anos o Brasil teve muitas perdas na assistência social, na dificuldade do acesso à aposentadoria. Essas mudanças também influenciam a ida dessas mulheres para as ruas?

Sim, observamos que as desigualdades sociais históricas existentes no país se agravaram agora. Então, toda falta de amparo acaba gerando essa migração para a rua no sentido de buscar formas de sobrevivência ou de realmente não conseguir uma sustentação. Então, quando falamos dos amparos e da proteção social é porque são fundamentais para garantir o cuidado a essas mulheres. São mulheres mais idosas, já com mais dificuldades de inserção em postos de trabalho e ainda com a situação de perda de direitos. Isso faz com que as mulheres tenham dificuldade na garantia de sobrevivência, o que faz com que elas migrem para a rua.

A política nacional de saúde voltada para a população de rua é o programa Consultório na Rua. Como você avalia esse programa?

A política do Consultório na Rua se legitima em 2011, mas tem uma história anterior e foi criada exatamente para garantir a visibilidade dos problemas vivenciados pela população em situação de rua. É um espaço em que população de rua pode pode ser acolhida e pode ter acesso aos dispositivos existentes. Quando falamos em mulheres, tem também a política nacional de saúde integral à mulher. As equipes do Consultório na Rua acabam fazendo essa ponte com o serviço existente, já que a saúde da mulher tem uma série de especificidades e cuidados. É claro que ainda é necessário a ampliação desse serviço e a garantia de inclusão. Há cerca de 170 equipes de Consultório na Rua para uma população de mais ou menos 220 mil pessoas. É necessário ampliação e qualificação das equipes que possam acolher os problemas pré-existentes. E para garantir que as políticas de saúde sejam acolhedoras, por exemplo agora com a vacinação contra a covid-19. Quando falamos de saúde como um direito é importante que seja garantida também para pessoas em situação de rua.

Algumas mulheres falaram que não gostam de ir para os abrigos, porque não se sentem seguras. Como você vê a questão do abrigamento? Que exemplos deram certo no Brasil?

A questão dos abrigos é uma questão muito importante de ser discutida porque é necessário criar condições para que, no abrigo, a população em situação de rua também se sinta segura. É importante ter abrigos, mas é importante também criar condições para que o abrigo seja um espaço de acolhimento efetivo considerando as necessidades da população em situação de rua. Um exemplo que eu posso dar foi o plano de ação intersetorial que nós desenvolvemos aqui no Distrito Federal, durante a pandemia, com a participação dos profissionais da residência multiprofissional em atenção básica e que trabalhamos com a rede de saúde, a rede de desenvolvimento social e com a sociedade civil nos abrigos que foram construídos para o acolhimento à população de rua no momento da covid-19. Realizamos desde atividades voltadas para a escuta da população em situação de rua, rodas de conversa com psicoeducação, sempre reconhecendo a importância de todos os atores presentes para a promoção do cuidado. Por outro lado, a disponibilidade de alimento é uma questão que é muito presente hoje. Como consequência da pandemia, vimos um aumento do número de pessoas em situação de fome: quase 20 milhões de brasileiros e brasileiras estão em insegurança alimentar. A questão da alimentação é central e precisa ser cuidada. É importante que haja uma estrutura intersetorial de cuidado com promoção de atividades e com ações que façam com que os moradores se sintam amparados. O abrigo não deve ser só um lugar pra dormir e pronto.

As imagens desta reportagem foram produzidas com apoio doReport for the World, uma iniciativa doThe GroundTruth Project.

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AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org