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Cabo Anselmo, um dos personagens mais sombrios da ditadura militar, é tema de série de TV que estreia hoje

Inácio França / 11/04/2022

Crédito: HBO/Divulgação

O cabo Anselmo, na verdade, nunca foi cabo; fez treinamento de guerrilha em Cuba sem acreditar na luta armada; jamais foi o verdadeiro líder dos marinheiros amotinados alguns dias antes do golpe militar de 1964; e sequer era filho do homem e da mulher cujos nomes apareciam em sua verdadeira certidão de nascimento. Por fim, ao morrer no dia 15 de março deste ano, foi enterrado com o nome falso de Alexandre da Silva Montenegro.

É difícil encontrar um fio de verdade na trajetória e nas palavras de José Anselmo dos Santos, um dos mais sombrios personagens da ditadura militar brasileira, iniciada em 31 de março de 1964 e encerrada em 21 de abril de 1985. Os registros e a memória de quem viveu aquele período informam que, de liderança dos marinheiros que formaram uma inédita Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais e “estrela” dos guerrilheiros treinando em Cuba, ele passou a ser conhecido como dedo-duro que entregou amigos e a namorada grávida para serem torturados e fuzilados.

Odiado pela militância de esquerda e desprezado pelos militares, Anselmo (ou Alexandre, ou Jonâtan, ou Daniel, ou Américo Balduíno, ou companheiro Renato, ou Mário Soria) é tema e protagonista da série documental Em busca de Anselmo, com direção e roteiro do jornalista Carlos Alberto Jr.. O primeiro dos cinco episódios irá ao ar hoje, 12 de abril, no canal HBO e a partir de amanhã, quarta-feira, dia 13, na plataforma de streaming HBO Max.

A série conta com depoimentos de 50 pessoas ligadas direta ou indiretamente a organizações de esquerda ou que conviveram com o “cabo”, além de imagens de arquivo tão raras quanto históricas que, ao menos nos dois primeiros capítulos disponibilizados pela HBO, se encaixam muito bem à narrativa. Um dos pontos altos dos primeiros episódios ocorre quando ele é confrontado não por um ex-militante, mas por um parente, no interior de Sergipe.

No entanto, o maior mérito da produção é ter conseguido convencer Anselmo a participar. “Não havia sentido em narrar sua história e suas traições sem ouvi-lo. Assim que ele concordou, decidimos que seus depoimentos seriam a base sobre a qual a série seria assentada”, explica Carlos Alberto. O diretor tem esperanças que a produção “estimule a retomada das discussões sobre o papel da tortura, a revisão da lei de anista e a Justiça de transição no Brasil”.

Carlos Eugênio Paz, o militante "Clemente", da ALN, é um dos 50 entrevistados da série documental. Crédito: HBO/Divulgação

Amoral e mentiroso

Carlos Alberto conviveu por semanas com Anselmo para gravar em São Paulo, Rio de Janeiro, Sergipe e Pernambuco. As impressões do diretor e roteiristas confirmam o que se vê na tela: “Ele era um mitômano [quando uma pessoa mente compulsivamente, entrando num ciclo em que as falsas histórias acabam se tornando um estilo de vida], não dava para acreditar numa só palavra do que ele dizia, porém quando se referia a alguma pessoa viva, que podia desmenti-lo, ele mencionava fatos que poderiam ser comprovados. Quando se referia a pessoas que tinham morrido, aí mentia sem pudor”.

Para Carlos Alberto, havia método nessa aparente loucura, pois a desinformação e a confusão interessam aos torturadores e agentes da repressão.

E o “cabo” Anselmo tinha muito a esconder, tanto que passou a usar a identidade falsa de Alexandre Montenegro fornecida pela equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury. Tudo indica que sua última tarefa como informante da repressão tenha sido a que resultou no episódio conhecido como “O Massacre da Chácara São Bento”, em Paulista, território do atual município de Abreu e Lima.

Durante meses, ele atraiu militantes para formar uma suposta nova célula guerrilheira da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) na periferia do Recife. Apesar da sequência de mortes que levou a organização ao colapso, aos poucos Anselmo, formou o novo grupo. As desconfianças de que ele era traidor já existiam, mas demoraram meses para se espalhar no ambiente de clandestinidade.

Anselmo aglutinou seis jovens apenas para entregá-los aos policiais, que os prenderam ilegalmente, torturaram e mataram. E aqui há um detalhe cruel: uma das jovens assassinadas era a paraguaia Soledad Barret Viedma, sua própria namorada, grávida de um filho seu.

Nos dois primeiros episódios da série, provavelmente o mais completo retrato já produzido sobre esse personagem, o “cabo” se revela amoral, tratando com frivolidade o destino trágico das pessoas que cruzaram seu caminho nos anos 1960 e 1970. Em vez de um militante convicto, Anselmo se mostra um homem que aproveitou o momento e “satisfez o ego”, como ele mesmo admite, junto a líderes autênticos como Carlos Marighella ou Leonel Brizola, porém sem vínculos ou apego às pessoas e àquilo que, ao menos aparentemente, fazia parte.

Em vários momentos, o dedo-duro comete atos falhos, cai em contradições e parece estar próximo de confessar seus crimes, um dos objetivos da série.

Anselmo comete atos falhos e chega a insinuar uma confissão durante as gravações. Crédito: HBO/Divulgação

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Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.