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Crédito: Fábio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil
por Jeniffer Mendonça, publicada originalmente no site Ponte
Em menos de uma semana três letras se destacaram por episódios de violência: PRF. Polícia Rodoviária Federal. A primeira, na terça-feira (24/5), após a regional do Rio do Janeiro atuar em uma operação conjunta com o Bope (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar), a tropa mais letal do estado, no Complexo da Penha, na zona norte da capital fluminense, em que 26 pessoas foram mortas. Dois dias depois, filmagens à luz do dia mostravam dois agentes de Sergipe transformando uma viatura em câmara de gás ao prensar um homem negro com esquizofrenia no porta-malas com munição química, em Umbaúba, no litoral sul. Genivaldo Jesus dos Santos, 38, morreu por asfixia, segundo o Instituto Médico Legal.
Diferentemente das polícias militares, apesar de terem divisões estaduais, a PRF está subordinada ao governo federal, na figura do Ministério da Justiça e da Segurança Pública. “É uma polícia criada, basicamente, para cuidar das rodovias federais e fazer um trabalho de prevenção e repressão destinado a um olhar tanto para segurança viária, a questão de cumprimento do Código de Trânsito, evitar acidentes, fiscalizar motoristas, mas também a crimes relacionados à malha viária, [como] roubo de carga, contrabando, tráfico, esse tipo de atividade”, explica o gerente de projetos do Instituto Sou da Paz Bruno Langeani.
Então, o que os policiais rodoviários federais faziam numa operação na favela? Esse é um dos questionamentos, inclusive, do titular do Núcleo de Controle Externo da Atividade Policial no Rio de Janeiro, procurador da República Eduardo Benones, que abriu procedimento investigatório para apurar o caso e mostrou preocupação com a mudança de atuação em entrevista ao jornal O Globo. “A justificativa para este tipo de ação é o de somar competências. Se você quer interceptar uma carga roubada, a PRF pode agir com a Core, com o Bope. Claro que pode. A nossa preocupação é entender: tem alguma estrada federal no Complexo da Penha? Pelo que sei, não há nenhum beco federal na Vila Cruzeiro. Não faz muito sentido”, declarou.
A PRF alegou que recebeu uma solicitação de apoio da PM do RJ e que a Portaria nº 42/2021 do Ministério da Justiça “estabelece diretrizes para a participação da Polícia Rodoviária Federal em operações conjuntas, permitindo que este órgão atue em operações com a participação de órgãos integrantes do Sistema Único de Segurança Pública – SUSP e de outros órgãos das esferas federal, estadual, distrital ou municipal”.
E o caso de Genivaldo? Mesmo com registros feitos em vídeo por testemunhas, mostrando que gás foi usado em ambiente fechado, com a vítima algemada com as mãos para trás, a assessoria da PRF em nenhum momento repudiou a conduta dos agentes, justificando que o uso de armamento menos letal foi por conta da resistência do abordado. Apesar de o IML apontar a causa da morte como asfixia, relatório interno divulgado pela Folha descreve que a corporação desvincula sua responsabilidade e atribui a morte a “mal súbito”. “Você não vai encontrar em nenhum manual de polícia no Brasil, nem de polícia no mundo, mesmo os mais autoritários, alguma instrução de imobilização que permita fazer aplicação de munição química em ambiente confinado”, critica Langeani. “Foi uma sessão de tortura”.
Para o gerente do Sou da Paz, além de uma questão histórica de racismo (e capacitismo no caso de Genivaldo) presente nas polícias, a “bolsonarização” da PRF, em que se vê “um alinhamento da instituição trocando pautas mais caras, trocando um trabalho da sua missão institucional, para fazer um alinhamento com o presidente”. “A imagem que passa para a população é péssima, vendo que, em alguns casos, a PRF aparece fazendo escolta da motociata do presidente, um presidente branco, aliado da PRF, que, em muitos casos vai para essa motociata sem capacete. Então, a mesma situação de uma parada que resultou na morte de um homem negro tem uma vista grossa da PRF quando são outros agentes”, pontua.
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Leia a entrevista:
Qual a atribuição da Polícia Rodoviária Federal? A quem é subordinada?
Bruno Langeani – A Polícia Rodoviária Federal é uma polícia criada, basicamente, para cuidar das rodovias federais e fazer um trabalho de prevenção e repressão destinado a um olhar tanto para segurança viária, a questão de cumprimento do Código de Trânsito, evitar acidentes, fiscalizar motoristas, mas também a crimes relacionados à malha viária, [como] roubo de carga, contrabando, tráfico, esse tipo de atividade. E está subordinada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Como você avalia a atuação da PRF no Complexo da Penha (RJ) e em Umbaúba (SE) nesta semana?
Bruno Langeani – Acho que vale até a gente dar um passo atrás porque a gente tem visto na gestão Bolsonaro (PL) uma mudança muito grande na Polícia Rodoviária Federal. A gente assiste a uma “bolsonarização” dessa força no sentido em que a gente vê, cada vez mais, um alinhamento político maior aos interesses políticos do presidente. Um exemplo prático é que a gente viu um diretor-geral da PRF que foi afastado pelo simples fato de se solidarizar com um policial que morreu de Covid-19. Naquele momento, o presidente queria negar a gravidade da doença, e isso parecia para ele inadmissível, então ele trocou o diretor da polícia. Outro episódio bastante emblemático é que a gente vê o governo empurrando goela abaixo na PRF uma supressão dos usos de radares e de falar da importância do uso de radares para controle da velocidade para reduzir mortes no trânsito. A gente viu toda essa ação do governo federal e a PRF aceitando isso, mesmo que essa ação vá totalmente contra a missão da PRF.
Esse alinhamento de ação e político tem remunerado a Polícia Rodoviária Federal com uma série de benesses. Eles têm tido um número maior de autorização para concursos e cargos, estão tendo anúncios de aumento de salários superiores a outras forças. A gente vê um alinhamento da instituição trocando pautas mais caras, trocando um trabalho da sua missão institucional, para fazer um alinhamento com o presidente.
Esse preâmbulo ajuda a explicar esses dois episódios. A gente tem, de um lado, a PRF participando de operação policial em favela que não está dentro de nenhuma rodovia federal, então claramente fora das missões da polícia, e uma operação completamente fracassada. Se a polícia anunciou que era para fazer cumprimento de mandado de prisão e ninguém volta preso, você tem aí 25 mortos, claramente é uma operação que, pelos próprios objetivos da polícia, é fracassada. E, na mesma semana, a gente tem esse episódio de Sergipe que é até difícil descrever. É um episódio que claramente tem uma ação policial que gerou a morte de um cidadão e que era uma ação para fiscalização de veículo. Se o Genivaldo estivesse conduzindo sem capacete, sem documento, isso seria infrações de trânsito, não são crimes do Código Penal.
Essa pessoa já tinha sido revistada, já tinha sido verificado que ela não portava nenhum tipo de arma e, mesmo assim, houve um abuso do uso da força que gerou uma resistência desse cidadão. Ele já foi algemado com o uso de técnicas abusivas, a gente vê pelas imagens o policial colocando o joelho no pescoço dessa pessoa, que só ali já poderia gerar um sufocamento, e dali para diante só piora. Ali começa uma sessão de tortura com uso de munição química que, no final das contas, provocou o assassinato dessa pessoa. O que a gente viu ali foi um homicídio.
Antes da bolsonarização, a gente tem nas outras polícias a questão do racismo estrutural. Como isso entra na formação da PRF?
Bruno Langeani – A PRF sofre dos mesmos problemas estruturais das outras polícias, do racismo institucionalizado. Para uma parcela da população, é admissível o uso da força de forma excessiva. O que eu acho que choca ali desse episódio é que tudo acontece à luz do dia, os policiais sabem que tem série de testemunhas, sabem que estão sendo filmados, e mesmo assim nada disso causa a interrupção dessa sessão de tortura. É até interessante fazer um paralelo, de dois pesos e duas medidas, do tratamento diferenciado. Ao que parece, pelas testemunhas, esse cidadão foi parado por estar sem capacete, então a polícia tinha uma motivação legítima para fazer uma parada e poderiam, após ter revistado aquela pessoa e visto que não apresentava ameaça para os policiais, ter feito multa, ter apreendido a motocicleta… Mesmo se o cidadão tivesse resistido e, eventualmente, fugisse, seria melhor que ele fugisse sabendo que ele tinha transtorno mental do que evoluir como a abordagem evoluiu. A imagem que passa para a população é péssima, vendo que, em alguns casos, a PRF aparece fazendo escolta da motociata do presidente, um presidente branco, aliado da PRF, que, em muitos casos vai para essa motociata sem capacete. A mesma situação de uma parada que resultou na morte de um homem negro tem uma vista grossa da PRF quando são outros agentes.
Esse alinhamento dificulta o trabalho de controle externo da PRF?
Bruno Langeani – Uma parte de uma coordenação mais direta tem uma captura dos órgãos políticos, um alinhamento grande do Ministério da Justiça. Inclusive com o Ministério da Justiça criando algumas portarias ampliando o poder da PRF para eventualmente participar de operações que, ao fim, acabam ajudando e contribuindo para esse número elevado de mortes que a gente teve na Vila Cruzeiro. No Ministério Público tem um problema tanto no âmbito estadual quanto no federal, de um controle muito falho que acaba gerando punições para casos muito pontuais como também não gerando mudança de comportamento, não exigindo mudança de protocolo, mudança de treinamento.
No treinamento da PRF, também existe esse princípio de uso escalonado da força e do uso desse tipo de armamento menos letal?
Bruno Langeani – Sim, eles também passam por treinamento de diferentes táticas que se tem disponível, mas você não vai encontrar em nenhum manual de polícia no Brasil, nem de polícia no mundo, mesmo os mais autoritários, alguma instrução de imobilização que permita fazer aplicação de munição química em ambiente confinado. Um dos principais princípios de munição química é ter que evitar o uso dessa munição em ambiente confinado porque você aumenta muito a chance de uma intoxicação ou obstrução de via que pode resultar em morte. De fato, você tem uma série de artefatos criados para ajudar o trabalho da polícia, mas o uso incorreto desses equipamentos, qualquer um, por mais banal que possa parecer, um cassetete, uma algema, um espargidor de pimenta, são todos que com mau uso podem ser letais, como foi o caso de Sergipe.
Outro ponto também é que, além da vítima ser negra, a família disse em entrevistas que o Genivaldo tinha esquizofrenia. De que maneira as polícias estão sendo formadas para lidar com pessoas com transtornos, com deficiência?
Bruno Langeani – Essa é uma falha que a gente vê nas polícias do Brasil, tem pouco treinamento para as polícias entenderem a diferença de uma pessoa com esquizofrenia, com espectro autista, de vários comportamentos dentro do mesmo espectro autista, e como lidar com isso de uma maneira mais adequada. Me parece também, e esse é um caso que se pode levar em conta, é um caso que acontece uma semana depois que dois policiais rodoviários federais foram mortos no Ceará. No caso do Ceará, parece que a pessoa [que atirou e depois foi morta por um policial de folga] tinha algum tipo de transtorno mental e, por um descuido dos policiais, tomou a arma deles [as reportagens locais apontam que era um homem em situação de rua que estava andando entre os veículos de uma rodovia].
A gente precisa fazer um paralelo de que várias dessas abordagens dependem de uma imobilização para essa pessoa se acalmar, para o policial conseguir eventualmente lavrar uma multa sem riscos para ele próprio. Esse episódio do Ceará também pode ter afetado psicologicamente os policiais que, sem uma supervisão e sem uma instrução mais adequada do comando, podem ter aumentado o grau de uso da força nas abordagens com receio de ter um desfecho do que aconteceu no Ceará. Mas uma vez que os policiais estavam com uma pessoa algemada pelas costas [caso de Genivaldo], não existe mais risco para os policiais. Então, a partir dali, o que aconteceu, foi só tortura. Não existia mais necessidade de imobilização. Que tipo de ameaça aquela pessoa poderia trazer para os policiais?
A assessoria da PRF, mesmo com as imagens, não teve esse posicionamento de repudiar essa ação que foi claramente presenciada e filmada, dizendo apenas que iria apurar o caso.
Bruno Langeani – A nota da PRF do Sergipe é inadmissível porque não dialoga com o que se vê nas imagens. O que se esperaria da PRF nesse momento é um afastamento direto dos policiais e quem registrou a ocorrência, um delegado que tenha visto essas imagens, deveria ter prendido os policiais em flagrante. Além da responsabilização penal, porque entendo que é um caso que deveria ser tratado como homicídio doloso, é preciso um processo administrativo, porque não é isso que se espera [de uma abordagem], e um processo, depois de todas as apurações, culmine numa exclusão desses policiais das suas fileiras, deixando muito claro que não é isso que a instituição espera dos seus policiais.
Como você avalia a forma como os veículos de imprensa começaram a noticiar sobre o caso?
Bruno Langeani – Acho que não precisa ser especialista em segurança ou em cobertura de análise policial, mas claramente não é uma morte acidental, não é uma morte que aconteceu por acaso, ela está diretamente relacionada à ação dos policiais. Então, acho que a imprensa precisa fazer esse link direto com as imagens, que são muito explícitas, e ajudar a cobrar uma polícia profissional. É isso que se espera em uma democracia. E que, de novo, não tenha tratamento diferenciado de acordo com a quantidade de poder, a quantidade de dinheiro ou da cor da pele das pessoas. O que se espera é que se tenha um tratamento profissional independente de quem está sendo abordado.
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