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Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo
Para saber como evitar tragédias como a desses dias, com 128 mortes, a maior em Pernambuco neste século, o Recife e a Região Metropolitana não precisariam ir buscar soluções em outros estados ou outros países. Veneza e Amsterdam sem dúvidas são cidades que aprenderam a conviver com a fúria de suas águas. Há bons exemplos de convivência com riscos também em Minas Gerais. Mas para começar a evitar que a tragédia se repita, basta que o Recife olhe para o seu passado. E o atualize para enfrentar cenários ainda mais adversos.
À falta de orçamento para habitação e melhoria da vida nos morros se aliou um desmantelamento das políticas públicas que foram adotadas pela prefeitura do Recife desde a década de 1990. Nos dois mandatos de Geraldo Julio (PSB) foi onde se gastou menos com os morros recifenses, que ocupam 67,43% da área da cidade. Em um texto que viralizou, a engenheira civil Edinéa Alcântara, que também é professora do Instituto Federal de Pernambuco (IFPE), fez um breve histórico sobre como foi o tratamento aos morros em gestões anteriores.
“Muitas cidades têm situações de vulnerabilidade por conta da condição geográfica. Não é justificativa para que se aconteçam tragédias como essa. Se fosse assim, o Japão estaria acabado, já que são ilhas em cima de placas tectônicas que se movem”, afirmou à Marco Zero. “Na gestão de Jarbas Vasconcelos começaram a levar os morros mais a sério e, principalmente nas duas gestões de João Paulo, ocorreram ações de tratamento das barreiras, obras de melhorias urbanas, deixando os morros mais seguros. Também ações disciplinadoras das águas, como plantio de gramas, colocação de lonas…são ações simples, mas que impedem que as chuvas encharquem o solo. Se um morro estiver com lona, a água não chega na barreira. As lonas precisam ser trocadas periodicamente, porque ressecam e rasgam. É uma ação paliativa, mas rápida de ser feita”, afirma.
Para a engenheira e professora, foi o abandono das ações preventivas que levaram à tragédia. “Como temos um engenheiro (João Campos é formado em engenharia civil pela UFPE) à frente da prefeitura há um ano e meio e porque ele se descuidou dos morros, eu não sei. Se tivesse feito uma ação emergencial, de colocar lonas de plástico e revestir tudo, muitas barreiras não teriam caído”, acredita. “Agora, é hora de aproveitar para fazer uma política robusta e efetiva. Temos conhecimento técnico para isso e experiências anteriores. Nas inundações de Barreiros, por exemplo, o pai dele (o ex-governador Eduardo Campos) fez uma boa gestão do desastre”, diz.
Nas gestões do PSB, o carro-chefe foram ações de pintura e embelezamento do programa Mais Vida nos Morros. “Pintar o morro é massa, mas vamos cuidar antes? Beleza é ótimo, mas é algo secundário. Primeiro temos que pensar em obras que contemplem a contenção das águas, o saneamento, tragam conforto e segurança às pessoas. Não adianta construir um muro de arrimo e ele cair, construir uma escadaria e os moradores sofrerem acidentes nela. Segurança tem que vir antes”, critica Edinéa.
Outro ponto que o Recife tem deixado a desejar é no cuidado com o escoamento das águas, haja visto a grande quantidade de bairros, ruas e avenidas que ficaram alagados com as chuvas de 2022 – ou em qualquer outra grande chuva antes. “As micro e macro drenagens não estão funcionando. A macro são os canais, os rios, que precisam estar sem lixo, com suas margens preservadas, sem assoreamento. E esse cuidado não se faz durante as chuvas, se faz antes. Tem também o sistema de micro drenagem que são as sarjetas, as galerias, tudo que passa nas ruas para escoar as águas. Isso também não está funcionando”, diz.
O serviço de manutenção da drenagem, porém, pode não ter hoje o mesmo efeito que teve anos e décadas atrás. É preciso que o Recife e a região metropolitana atualizem seus sistemas. Na sua fala, Edinéa cita a tese de doutorado da engenheira Alessandra Ramos que, em 2010, já sugeria uma nova equação para calcular os projetos de drenagem na capital. A nova equação levou em conta 36 cenários e a maior intensidade das chuvas devido às mudanças climáticas. O resultado explica porque áreas que não costumavam alagar tiveram as casas invadidas pela água dessa vez: há 12 anos, o sistema de drenagem do Recife já deveria ser 41% maior.
Entre 1993 e 1996 foram registrados 757 deslizamentos no Grande Recife, que causaram aproximadamente 70 mortes. Já entre entre 1994 e 2005 foram registradas cem mortes em toda a Região Metropolitana. Em 2008, existiam 3.500 mil áreas de risco somente no Recife. Hoje, estima-se que seja três vezes mais.
Como apenas 23,26% do Recife é composto de áreas planas, e são justamente as áreas mais valorizadas pelo mercado imobiliário, é improvável que toda a população seja retirada das áreas de risco ou que todos os milhares pontos de risco sejam mitigados. Mas também é possível criar mecanismos de convivência com o risco. “Em Minas Gerais, por exemplo, há sirenes que ecoam para as pessoas deixarem suas casas quando há risco nas barragens”, conta Edinéa.
Mas só aviso é insuficiente. Na sexta-feira, quando as chuvas se intensificaram, a prefeitura emitiu um SMS para 32 mil pessoas que viviam em áreas de risco. E destinou dois abrigos, no bairro de São José, para quem quisesse dormir em segurança. Ambos abrigos, que costumam receber a população de rua, somavam apenas 120 vagas – extremamente aquém das mais de 5 mil que ficaram desabrigadas na cidade.
Para a urbanista Rebeca Mello, que em 2018 elaborou um estudo para a prefeitura sobre habitação de interesse social no Recife, é necessário mais planejamento e foco. “Por conta das mudanças climáticas já temos eventos mais extremos, com mais chuvas, mais secas. Isso tudo vai mudar a configuração do adensamento dessas áreas mais vulneráveis, que tendem a ficar ainda mais densas. A prefeitura precisa ter um plano de ação efetivo, informado com antecedência à população, não é esperar que a chuva chegue”, diz “Já estava chovendo há mais de uma semana, o solo vai encharcando e vai aumentando os riscos de deslizamento. Como a Defesa Civil não agiu antes? As áreas de risco estão mapeadas, deveriam ter sido retiradas para lugares seguros”, questiona Rebeca.
Ela cita diversos planos, projetos e estudos feitos sobre o Recife e Região Metropolitana nos últimos anos. “A prefeitura é bem munida de diagnósticos sobre a cidade. Se formos parar para analisar, vemos que a prefeitura tem um arcabouço muito bom de fontes e de cartografia. Há informações que ajudam a mitigar os deslizamentos e óbitos”, diz Rebeca. “Já tivemos gestões que investiram nos morros. O programa Guarda Chuva, por exemplo, foi um modelo usado pelo Ministério das Cidades”.
Edinéa Alcântara defende a necessidade da retomada do trabalho de educação e informação junto aos moradores dos morros. “Mostrar que não se deve plantar muitas plantas que retêm água, como bananeiras. Mas o mais importante é que os moradores saibam como é o plano de contingência. Nessa tragédia de agora, as pessoas não sabiam para onde deveriam ir, onde ia ter abrigo. Em outras gestões, havia essa integração das secretarias, os moradores eram orientados”, diz.
Na semana passada, a prefeitura do Recife anunciou que iria investir 50% a mais nos morros neste ano do que no ano passado, chegando a R$ 148 milhões. Isso aconteceu às vésperas do fim de semana de chuvas, quando já chovia no Recife há alguns dias, inclusive com cinco mortes na região metropolitana.
Para o ex-prefeito João Paulo, hoje deputado estadual, a sua gestão teve êxito nos morros porque isso foi uma prioridade. “Já havia uma política implementada pela gestão de Jarbas Vasconcelos, com o urbanista Jaime Gusmão. Na nossa gestão, expandimos essa política, sob o comando de Margareth Alheiros. Não era algo que era pensado somente durante o período de chuvas. Era 365 dias ao ano. Começamos com 10.500 pontos de risco e conseguimos ir para 3.500 pontos. Hoje, parece que estamos com 9.000 pontos de risco, então regredimos”, diz João Paulo.
A atuação maior da prefeitura nas duas gestões de João Paulo foi nos morros da zona norte e do Ibura. Outro ponto que ele destaca é a atuação coordenada de várias secretárias. “Várias secretarias atuavam juntas, inclusive as de Meio Ambiente, de Educação e de Saúde”, lembra. Sobre a tragédia do final de maio, João Paulo considera que as advertências foram ignoradas. “Houve uma certa negligência na área de prevenção nas gestões que vieram depois. Mas também não é algo que se resolve logo, é preciso tempo”, afirma.
Aconteceram oito mortes nos morros durante os dois mandatos de João Paulo. Uma média de uma morte por ano. Ele recorda de pelo menos duas: uma pessoa que morreu por conta do estouro de uma tubulação da Compesa e outra que teve a família retirada da residência, mas voltou para pegar um cachorro. Foi uma queda recorde: de 87% em relação aos anos anteriores, de acordo com levantamento da tese de doutorado da pesquisadora Werônica Meira de Souza.
No trabalho, ela mostra também que o número de ocorrências atendidas nos morros na gestão de João Paulo foi muito superior à média anterior. Em 2007, por exemplo, não teve nenhum óbito. No mesmo ano, mais de 1,6 milhão de metros de lonas plásticas foram colocadas e mais de 21 mil ocorrências atendidas. Para se ter uma ideia também do absurdo das 127 mortes somente no final do mês de maio, sendo mais de 40 delas no Recife: nos 24 anos que a pesquisa analisou, de 1984 até 2008, foram 97 mortes com relação com as chuvas no Recife.
Com Geraldo Julio, os investimentos nos morros desabaram. Como mostra a reportagem da Marco Zero (link abaixo), as duas gestões do PSB (Geraldo e João Campos) apresentam os níveis mais baixos de verbas destinadas a urbanização em áreas de risco dos últimos 20 anos, com uma média de 0,37% do orçamento geral nos últimos nove anos (tempo do partido à frente da prefeitura).
Uma planície rodeada de morros e ainda com boa parte dessa planície abaixo do nível do mar. Recife não é uma cidade fácil de se planejar. Mas é a pressão dos setores econômicos mais fortes que tem ditado há décadas como a cidade é desenhada. E não suas características geográficas.
Ao longo dos anos, a população mais pobre foi sendo sistematicamente empurrada para as regiões de morros. O Atlas das Infraestruturas Públicas em Comunidades de Interesse Social, elaborado pela Prefeitura do Recife em 2014, mostrou que 60% da população recifense mora em áreas de morro. Apenas 24% mora nas planícies e 16% na paisagem litorânea ou estuarina.
Outra pesquisa mais recente, do IBGE, divulgada no final de 2017, aponta que apenas 3,5% da população mora nas áreas de melhor qualidade de vida, como os bairros de Casa Forte, Espinheiro e Boa Viagem. A maioria da população do Grande Recife mora mal: 67% vivia, em 2017, em locais classificados como baixa (56,8%) ou baixíssimas (10,3%) condições.
Mais: segundo dados IBGE, em pesquisa realizada em parceria com o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), o Recife possui 206.761 pessoas vivendo em áreas de risco, ou seja, 13,4% da população.
“Espaço para habitação em locais seguro Recife tem. O problema não é espaço, porque sabemos adensar, Recife sabe construir prédios altos. A questão não é a falta de espaço, mas a falta de uma política habitacional consistente. As pessoas moram nos morros não porque querem, mas porque foram impelidas, porque não há outros locais em que elas possam viver. O ideal seria que todos morassem em locais seguros. Mas se não é possível, é preciso criar garantias de que as pessoas não vão perder suas vidas. Há casos em que é possível adotar medidas de mitigação de risco, e em outros casos, é necessária a remoção e relocação das famílias nas proximidades”, afirma Rebeca Mello.
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Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org