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Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

As mortes deste fim de semana, após os temporais que atingiram principalmente a Região Metropolitana do Recife e a Zona da Mata, têm relação direta com as políticas de planejamento urbano, uso do solo e habitação das cidades. E não apenas isso: a falta de estratégias e de investimentos para lidar com as mudanças climáticas, que, ano a ano, reservam cenários ainda mais extremos. Até o fechamento desta reportagem, foram contabilizadas 93 mortes e aproximadamente 5 mil pessoas desabrigadas em Pernambuco. Ao menos 26 ainda estão desaparecidas. Essas perdas, todas em áreas vulneráveis, ocupadas por uma maioria negra, não são consequência apenas dos elevados índices pluviométricos.

Está no relatório do Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês), da Organização das Nações Unidas (ONU): Recife é a capital mais ameaçada do Brasil e a 16ª cidade mais ameaçada do mundo pelas mudanças climáticas com o aumento do nível do mar. Em vez de ações e investimentos para mitigação e adaptação, o que tem se visto no Recife – e também em outros municípios metropolitanos – são gestões na contramão do direito à cidade, com poucos recursos destinados a moradia, urbanização de áreas de risco e requalificação das Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis).

Enquanto uma pequena parcela da população, formada majoritariamente pela elite branca, usufrui de uma infraestrutura digna e que atrai o mercado imobiliário, a classe trabalhadora mais pobre é empurrada para áreas vulneráveis de morros e encostas, construindo suas casas de forma irregular e em pontos de risco.

Em 2020, uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostrou que Recife é a capital com maior índice de desigualdade do país. Para a diretora da Habitat para a Humanidade Brasil, Socorro Leite, isso se reflete nas condições de moradia da cidade. “O contexto é bem grave. O Recife não tem uma política habitacional que enfrente essa situação de desigualdade em suas diversas necessidades. Não é só construir novas moradias. Muitas comunidades não têm infraestrutura, estão em áreas de risco em que uma ação de mitigação poderia tirá-las do risco. O que temos é um vazio de política habitacional. E isso significa condenar à morte parte da população”, avalia.

Socorro também critica a falta de uma política de ação emergencial: “Não tem um desenho de monitoramento e de uma resposta a um desastre, como locais adequados para receber as famílias e um auxílio que viabilizasse o aluguel de uma moradia em outro lugar. O auxílio moradia do Recife é de R$ 200 e isso não dá para alugar nem um barraco. Não temos atenção nem para as emergências, quanto mais para as questões estruturadoras, como a contenção de encostas e a construção de novas moradias em locais seguros. É algo generalizado na região metropolitana”.

Na avaliação da especialista, é fundamental que as prefeituras revejam os mapas das áreas de risco. “Por conta do volume das chuvas e de ficarem em regiões mais baixas, alguns locais que não constavam como de risco também foram afetados, com as famílias tendo que recuperar casas e móveis”, explica. Com as mudanças climáticas, as perspectivas são de que cada vez mais será necessário mais atenção à prevenção. “Não precisaremos só de mais investimentos, mas também de planejamento urbano, leis e planos em uma outra lógica. Não podemos continuar adensando as cidades do jeito que adensamos, desrespeitando as áreas de proteção ambiental, sem produzir moradia adequada em locais seguros. Não é só recurso, é uma postura diferente dos governantes. O planejamento urbano não pode ser guiado pelo mercado imobiliário, como é hoje. As chuvas vão estar cada vez mais imprevisíveis e intensas. E não estamos minimamente preparados para isso”, criticou.

Não há, contudo, sinais de melhorias a curto e médio prazo. O novo Plano Diretor do Recife, aprovado durante a pandemia, é criticado pela sociedade civil por descaracterizar as Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis) e não preservar as áreas verdes. “Esse novo Plano Diretor piora tudo. Porque ele continua na lógica de adensamento da cidade em áreas sem infraestrutura, não reserva áreas bem localizadas e seguras para habitação de interesse social e abre parte das Zeis para o mercado imobiliário, muitas em áreas ambientalmente frágeis e que poderão receber mais construções. É desse tipo de mudança que também estamos falando, que não é só na lógica de investimentos, mas de planejamento e ocupação da cidade”, detalha Socorro.

Primeira morte pelas chuvas em 2022 aconteceu no Córrego do Abacaxi. Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

“É uma política de extermínio”

Quando o contabilista Robson Silva levanta a mão e pede para falar nos encontros com representantes da Prefeitura do Recife ou no Fórum do Plano de Regularização das Zonas Especiais de Interesse Social (Prezeis), os demais participantes costumam prestar atenção no que virá. Morador do Bode, no Pina, zona sul do Recife, ele se considera um militante da luta pela regularização fundiária, sem filiação partidária nem vínculo com nenhum político. Foi essa postura independente e o cuidado de sempre fundamentar sua argumentação usando documentos públicos que garantiram o respeito da vizinhança, das lideranças de outras comunidades e até mesmo do Ministério Público. “Nunca desdigo o que disse em entrevistas ou em reuniões. Se eu falei, é porque posso provar”, assegura.

Com essa firmeza, Robson usa palavras fortes para definir a política de moradia e de planejamento urbano do Recife: “É uma política de extermínio, e não é coisa só desse prefeito ou do outro. É uma política dos ricos dessa cidade, que tanto a esquerda quanto a direita executam”. Uma política que tem várias faces e está tão enraizada que “só 15 minutos de entrevista não dão para nada”, alerta.

Em resumo, segundo Robson, a dinâmica dessa estratégia, implementada pelo mercado imobiliário e pelo poder público, poderia ser resumida assim:

  • Leis são criadas para dificultar a permanência dos pobres nas áreas planas e nobres da cidade;
  • Outras leis facilitam empreendimentos imobiliários ou obras de pontes, viadutos e avenidas que exigem a remoção dos moradores;
  • A prefeitura define projetos que desapropriam moradores, paga valores abaixo do mercado e só considera a área construída. Nenhum projeto de realocação é previsto pelo poder público, que, depois de pagar, lava as mãos para os destinos dos moradores;
  • Com o dinheiro da desapropriação, o morador só consegue comprar um terreno informal, em algum morro distante do centro da cidade e do seu local de trabalho;
  • Depois que a barreira desaba, os ricos e as pessoas de classe média comentam que “é isso que dá construir onde não pode”. Ao mesmo tempo, a prefeitura culpa a natureza.

Robson alerta que, exatamente nesse momento, mais um episódio dessa dinâmica está em curso na Vila Esperança, no bairro do Monteiro, zona norte da cidade. A Prefeitura do Recife já definiu, sem dialogar com a comunidade, que irá praticamente liquidar a Zeis Vila Esperança-Cabocó, desapropriando, inicialmente, pouco mais de 50 famílias. No lugar das casas dessas pessoas, construídas numa área que a Lei Municipal 16.113 define que a prioridade é a habitação, serão construídas vias de acesso à ponte que vai ligar a zona norte à zona oeste.

Moradora da Vila Esperança, Maria Helena Vicente também usa um termo forte para resumir o projeto municipal: “É uma sacanagem”.

O desabafo dela é cheio de dor: “Além de me sentir empurrada para os lugares mais difíceis, é nítido que ele, o prefeito, não está priorizando as pessoas. Ele deveria é estar entregando títulos e documentos para quem já tem situação legalizada em ruas urbanizadas. Nada disso, vão enxotar o povo daqui com a cara de pau de só pagar a desapropriação porque não temos o título em mãos, título que a prefeitura já deveria ter entregue. Querem destruir, querem massacrar”.

Juntos, mercado imobiliário e prefeituras empurram mais pobres para áreas de risco. Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

Baixo investimento em habitacionais e áreas de risco

O mandato do vereador Ivan Moraes (Psol) realizou um levantamento, a que a Marco Zero teve acesso, que mostra o baixíssimo investimento da Prefeitura do Recife na requalificação das Zeis. Nos nove anos de gestão do PSB, foram investidos apenas R$ 3,58 milhões nas 67 Zeis da cidade. Isso dá uma média de R$ 397 mil ao ano, ou seja, somente R$ 6 mil por Zeis anualmente.

A equipe de Moraes também levantou os investimentos da Prefeitura do Recife com a implementação de habitacionais, entre 2013 e 2021. O resultado é uma queda vertiginosa, como mostra o gráfico a seguir. Parcela significativa dos recifenses, com destaque para as famílias que vivem em palafitas na beira do rio, ainda aguarda pelas promessas de habitacionais, enquanto recebem um auxílio aluguel irrisório.

Os gastos com urbanização em áreas de risco também são outro problema. Estão num patamar menor do que nas gestões passadas, apesar do crescimento dos últimos anos, com destaque para 2021, quando o prefeito João Campos (PSB) quase dobrou o valor em relação a 2020, como aponta este outro gráfico:

As gestões socialistas apresentam os níveis mais baixos de verbas destinadas a urbanização em áreas de risco destes últimos 20 anos, com uma média de 0,37% do orçamento geral nos últimos nove anos (tempo do partido à frente da prefeitura). É um percentual bem abaixo da média de 0,94% nos anos anteriores. A gestão Geraldo Julio (2013 a 2020) destaca-se negativamente nesse quesito.

Nesses nove anos, a Prefeitura do Recife aportou R$ 152,5 milhões em urbanização de áreas de risco, enquanto, no mesmo período, foram investidos três vezes mais em manutenção do sistema viário, ou seja, recapeamento e tapa-buraco, num total de R$ 452 milhões. Os R$ 42,9 milhões investidos pelo prefeito João Campos (PSB) em 2021 representam o maior volume da gestão do PSB até agora, porém ainda são 40% inferior ao gasto com manutenção do sistema viário no mesmo período, de R$ 71,2 milhões.

Além disso, nos últimos três anos, período em que passou a publicar os gastos com propaganda, o Recife gastou mais com campanhas de publicidade (R$ 142 milhões) do que urbanização de áreas de risco (R$ 84,8 milhões).

Apesar dos números, o vereador Ivan pondera que o problema “é mais do que uma gestão”. “A maior parte das nossas gestões e também da nossa sociedade ainda atua numa lógica pré-mudanças climáticas. A questão ambiental em geral ainda é tratada de forma muito cosmética, não está no centro dos debates”, reflete ele, lembrando que, diante dos alertas do IPCC, é preciso uma responsabilidade muito maior diante dessas questões.

Ivan lembra que a necessidade que se tem hoje é bem maior que a de 20 anos atrás, o que obriga mais investimentos e também mais estratégias, como também disse Socorro Leite, no início desta reportagem. O que existe, na verdade, é toda uma lógica, além dos dados numéricos. O vereador lembra, por exemplo, que Recife só recicla 2% do material que poderia ser reciclado . “O meio ambiente hoje não pode ser só discurso, viajar pelo mundo, fazer um projeto-piloto. O meio ambiente tem que ser prioridade em tudo, nada mais na cidade pode ser feito sem a gente pensar nas mudanças climáticas”, conclui.

A Prefeitura da Cidade do Recife foi procurada para se posicionar a respeito do tema, mas não obtivemos respostas. Quando isso acontecer, o texto será imediatamente atualizado ou outra reportagem será produzida a partir do posicionamento do poder público.

Moradia para além da construção de habitacionais

O professor de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e integrante do grupo de pesquisa Recife Exchanges, Fabiano Diniz, acredita que o diálogo com as comunidades que ocupam áreas de morro é fundamental para promover um melhor planejamento urbano e diminuir os riscos de acidentes. “Não adianta sair criando diversos conjuntos habitacionais porque é preciso compreender muito bem o tipo de situação que existe nessas ocupações e orientar políticas de habitação, de distribuição de infraestrutura, políticas de controle ambiental urbanístico”, ressalta. Fabiano sustenta que é preciso pensar nas ações estruturais, com as físicas, mas também nas não-estruturais, como educação e controle urbano e ambiental.

“Devido a ausência histórica do estado no planejamento, essas áreas com risco de enchentes e deslizamentos, se consolidaram de uma maneira tão forte que a possibilidade de retirar essas pessoas dos seus territórios é quase uma ilusão. Por isso, é preciso ter consciência de que essas áreas ainda podem ser reorganizadas, reduzindo as situações de risco, se adaptando ao planejamento de cada território, e não ao contrário”, acredita o arquiteto.

Ao comparar as obras feitas por grandes empreiteiras que ocupam áreas de risco, como mangues, e a construção de casas em áreas de morro, Fabiano aponta como a condição socioeconômica determina a forma como os territórios são ocupados. A questão é quem vai ocupar o morro? É sobretudo quem está em uma situação de vulnerabilidade e, logicamente, não haverá estudos e cuidados, afinal trata-se de um espaço rejeitado pelo mercado imobiliário e escanteado pelo poder público. “Porém, é nessa mesma cidade (Recife) que o governo opta por desmatar uma área de dezenas de hectares para implantar uma grande via de automóveis, a Via Mangue”, contrapõe.

Alagamento é rotina na avenida Pres. Kennedy. Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Esta reportagem contou com apoio doReport for the World, uma iniciativa doThe GroundTruth Project.

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AUTORES
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Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com

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Giovanna Carneiro

Jornalista e mestranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco.

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Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com

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Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.