Apoie o jornalismo independente de Pernambuco

Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52

“O déficit habitacional é feminino”: falta de moradia atinge mais mulheres do que homens

Raíssa Ebrahim / 18/03/2022

Crédito: Raíssa Ebrahim/MZ

Na quinta-feira, 17 de março, movimentos e organizações sociais ocuparam as ruas de pelo menos 20 cidades do Brasil para dizer “não ao despejo” e pedir a prorrogação de uma medida cautelar do Supremo Tribunal Federal (STF) que suspende remoções durante a pandemia de covid-19 (ADPF 828). No Recife, uma das capitais com o aluguel mais caro do país, o ato se concentrou em frente à Câmara de Vereadores. O que se viu nas manifestações é o que se vê historicamente: a luta por moradia é feminina e negra. São elas que compõem o retrato das ocupações e dos protestos.

São jovens e também idosas, carregando suas crianças e o peso do cuidado. O encarecimento do aluguel e de praticamente todos os itens básicos de sobrevivência levou milhares de brasileiras a perderem o teto e também o chão nestes dois anos de pandemia. Dados recentes da Fundação João Pinheiro (FJP), publicados em 2021, apontam que 60% dos casos de moradia irregular são ocupados por mulheres, o que significa 15 milhões de moradias inadequadas. Além disso, a taxa de crescimento do indicador de precariedade habitacional foi de 7% ao ano para elas e de 1,5% ao ano para eles.

A FJP, criada em 1969, é uma instituição de pesquisa e ensino vinculada à Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão de Minas Gerais. É uma referência nacional em levantamento, sistematização e análise de dados sobre questões habitacionais. Este ano, pela primeira vez, a fundação desagregou dados de gênero na pesquisa. “E provou o que a gente já sabia, que o déficit habitacional é feminino e cresce mais entre as mulheres do que entre os homens”, resume Raquel Ludermir Bernardino, doutora e mestra em desenvolvimento urbano e coordenadora de Incidência Política da Habitat para a Humanidade Brasil.

Protesto contra despejo na pandemia

Ato contra despejos no Recife. Crédito: Raíssa Ebrahim/MZ Conteúdo

“Para mulher, tudo é difícil. A gente tem que lutar muito para conseguir o que quer”, disse Jéssica Silva, durante o ato desta quinta (17) no Recife. Desempregada, ela tem dois filhos, mora na Ocupação 8M, na Zona Sul, e precisa passar o dia cuidando das crianças. No local, estão vivendo 235 famílias. “Meu dia na ocupação é isso e ainda ajudo fazendo mutirão e muitas coisas que fazemos lá”, fala.

São mulheres como Jéssica que acumulam múltiplas jornadas: do trabalho doméstico ao coletivo. “É o exercício do papel político como extensão do papel do cuidado”, sintetiza Raquel. O que não significa necessariamente que são elas que ocupam sempre os papéis de decisão e de fala. De acordo com a especialista, não há no Brasil dados numéricos oficiais sobre os recortes de raça e geracional em relação ao déficit habitacional. Mas basta ir a uma ocupação ou a um ato nas ruas para comprovar esses recortes.

Lorena Melo, do Cendhec. Crédito: acervo pessoal

Na avaliação da assistente social do Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social (Cendhec) Lorena Melo, “a pandemia agudizou uma situação que já vivíamos historicamente”, lembrando da quantidade de movimentos que surgiram nos últimos anos em defesa de habitação digna. Ela reforça que a falta de acesso à moradia é algo que fere diretamente a vida das mulheres negras que ocupam esse lugar de estar “em mil e uma frentes de atuação”.“A partir do que observamos nas ocupações, as mulheres ocupam desde as camadas mais privadas do cuidado na unidade doméstica até a demanda da organização da ocupação e dos movimentos. Há um esgotamento muito grande do corpo dessas mulheres e vemos isso nas marcas que elas carregam”, acrescenta.

Violentadas, sem casa e sem estatísticas

A violência doméstica, do qual muitas mulheres são vítimas cotidianamente, não entra nas estatísticas do déficit habitacional. Muitas brasileiras se mantêm em relacionamentos abusivos porque não têm para onde ir. Ou, quando conseguem sair de casa, terminam indo morar de favor com parentes ou amigos. “É uma demanda por moradia invisibilizada”, define Raquel, que já documentou, avaliou e colaborou com boas práticas urbanas em países da América Latina, África e Ásia.

A alternativa pública de proteção, as Casas Abrigos, não é, nem de longe, suficiente. São menos de 80 equipamentos desse tipo no país inteiro. Em Pernambuco, são quatro, cerca de 120 vagas para todo o Estado. “Um número absolutamente inferior ao necessário”, frisa a especialista. E pior: só acessa uma Casa Abrigo a mulher com risco iminente de morte, ou seja, uma vítima já na ponta final do ciclo de violência de gênero, que, na maioria dos casos, é praticada dentro de casa. São meninas e mulheres agredidas por parceiros, ex-parceiros, pais, padrastos, irmãos, tios, cunhados, avós.

“Em uma pesquisa recente sobre as trajetórias de moradia de mulheres residentes em assentamentos precários, pude observar como as violências – física, psicológica, moral, sexual e patrimonial – atravessam a vida das mulheres desde a infância”, comenta Raquel. “Uma situação marcante é quando meninas são abusadas por pais ou padrastos e saem de casa, por vezes migrando para outras cidades, em busca de trabalho, mesmo que precário, mas que ofereça também moradia”, complementa.

De uma forma subjetiva, uma casa não é somente um lugar de abrigo. É, como se costuma dizer, “uma porta de entrada para outros direitos”.

Fim da ADPF 828 pode gerar despejos em massa

Mais de 132 mil famílias estão ameaçadas de despejo no Brasil. Esse número cresceu 600% (ou seja, sete vezes) desde o início da pandemia, em março de 2020, segundo a Campanha Nacional Despejo Zero. Pernambuco é um dos estados onde mais famílias estão ameaçadas de perder a moradia, são mais de 17 mil.

Movimentos e organizações sociais pedem que o STF prorrogue a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, uma medida cautelar do Ministro do STF Luís Roberto Barroso, que vence dia 31 de março, mas pode ser renovada. A ADPF impede despejos, reintegrações de posse e remoções durante a pandemia de covid-19.

No ato desta quinta (17) no Recife, uma comissão formada por representantes de ocupações, organizações da sociedade civil e políticos do PSOL e PT entregaram a Carta Despejo Zero na Câmara de Vereadores, no Tribunal de Justiça de Pernambuco e no Palácio do Governo do Estado.

Entrega da Carta Despejo Zero na Câmara do Recife. crédito: Raíssa Ebrahim/MZ

“Quem está nas ocupações são pessoas que muitas vezes não têm emprego, a começar por mim. Sou idosa e minha família toda no momento está desempregada. Se forem derrubar as casas, como dizem que vão derrubar, Deus nos livre, eu não sei para onde vamos”, falou Terezinha Francisca de Jesus, da Comunidade da Linha, no Ibura, Zona Sul do Recife, ao ser recebida pelo presidente da Câmara de Vereadores, Romerinho Jatobá (PSB).

No local, 200 famílias estão sob risco de perderem suas casas, onde moram há mais de 20 anos. Desde 2011, elas enfrentam uma batalha judicial contra a Ferrovia Transnordestina Logística, que processou os moradores, exigindo a reintegração de posse de áreas paralelas à linha férrea.

A vereadora Dani Portela (PSOL) lembra que a pandemia não acabou e trouxe uma crise econômica e social profunda, uma crise humanitária. A pauta da ADF, apesar de ser federal, extrapola essa fronteira e é também de responsabilidade dos Estados e municípios. “Existe um lema que representa muito e para cada parlamentar e chefe do Executivo deveria dizer alguma coisa: ‘Enquanto morar for um privilégio neste país, ocupar vai ser um direito’. Um direito garantido constitucionalmente”, cobra.

Dani lembra que o Recife está cheio de imóveis que não cumprem função social, muitos deles históricos, ameaçados e desocupados, sem nenhuma destinação social e que poderiam servir de moradia com dignidade no centro da cidade. “Mas a política que o Recife desenvolve para essa região, em especial o centro histórico, é uma política higienista, de gentrificação, que quer falar em restauro, em revitalizar para deixar a cidade bonita para o capital e o turista verem, empurrando as pessoas que mais precisam para as áreas periféricas. Isso é racismo, isso é racismo ambiental”, critica a vereadora.

A preocupação da codeputada Jô Cavalcanti, das Juntas (PSOL), é também sobre a possibilidade iminente de ações de reintegração de posse em massa caso a ADF 828 não seja prorrogada, mesmo com a vigência da medida cautelar do STF, da lei estadual 17.400/21, proposta pelas Juntas, e outras medidasm que vêm impedindo despejos.

A codeputada Carol Vergolino, também do mandato, atenta para um possível “efeito dominó”, caso a ADPF 828 perca realmente a validade no dia 31 deste mês. Caindo a medida do STF, as outras leis e iniciativas espalhadas pelo país podem terminar perdendo força.

Ela informa que as codeputadas estão em diálogo com a Defensoria Pública para tentar assegurar que o entendimento sobre a lei estadual seja mantida. Isso porque, no caso da ADPF, fala-se em “estado de calamidade”. Já a lei pernambucana se baseia no decreto de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin). A 17.400/21, diferentemente de outras leis aprovadas, inclusive a aprovada no Congresso, tem um importante marco de proteção tanto a famílias em áreas urbanas quanto rurais. É algo de bastante relevância, já que Pernambuco é marcado por violentos conflitos fundiários.

Seja mais que um leitor da Marco Zero…

A Marco Zero acredita que compartilhar informações de qualidade tem o poder de transformar a vida das pessoas. Por isso, produzimos um conteúdo jornalístico de interesse público e comprometido com a defesa dos direitos humanos. Tudo feito de forma independente.

E para manter a nossa independência editorial, não recebemos dinheiro de governos, empresas públicas ou privadas. Por isso, dependemos de você, leitor e leitora, para continuar o nosso trabalho e torná-lo sustentável.

Ao contribuir com a Marco Zero, além de nos ajudar a produzir mais reportagens de qualidade, você estará possibilitando que outras pessoas tenham acesso gratuito ao nosso conteúdo.

Em uma época de tanta desinformação e ataques aos direitos humanos, nunca foi tão importante apoiar o jornalismo independente.

É hora de assinar a Marco Zero

AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com