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Conciliar cuidados com filhos e campanha eleitoral: o duplo desafio para candidatas negras da periferia

Giovanna Carneiro / 23/09/2022
Em primeiro plano, silhueta de criança de cabelos escuros, desfocada, pois o foco da lente está na sua mãe, uma mulher negra de tranças no cabelo, de óculos de aros escuros, sorrindo enquanto segura um brinquedo amarelo em frente ao rosto da criança. A mulher aparece do busto para cima, usando uma camisa branca com fragmentos ilegíveis de texto em letras pretas.

Crédito: Divulgação/Gerson Damasceno

Em meio a uma campanha política intensa e com a agenda cheia de compromissos exaustivos como debates, rodas de conversa, panfletagens e visitas a comunidades, Elaine Cristina, candidata a deputada estadual pelo PSOL, precisou cancelar as atividades para cuidar de seu filho, João Pedro, uma criança de 11 anos portadora de hemimegalencefalia – um distúrbio congênito raro que afeta o hemisfério cerebral e causa convulsões graves.

Em suas redes sociais, Elaine contou que no dia 9 de setembro seu filho precisou passar por uma cirurgia de emergência e estava na UTI, em processo de recuperação. Na postagem, desabafou que “a vida da mulher negra e mãe não paralisa durante o período de campanha”.

Com um registro recorde de candidaturas de pessoas negras e mulheres nas eleições de 2022 em todo o país, com percentuais de 49,3% e 33,4% respectivamente, de acordo com as estatísticas oficiais do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), experiências como a de Elaine expõem as barreiras políticas e sociais impostas pelas desigualdades de gênero e raça.

Mãe solo de uma criança atípica, Elaine explicou as dificuldades em conciliar a maternidade com a política e a importância de se manter candidata: “eu não posso abandonar a campanha, tem mulheres que confiam em mim, que eu represento com a minha candidatura, mulheres mães, negras, periféricas, mães atípicas, que muitas vezes não conseguem nem sair de casa justamente porque não têm condições. Essas mulheres também têm dificuldades de estar na política porque o Estado faz com que a gente não se sinta capaz de ocupar esses espaços e eu estou na disputa justamente para mostrar que essas mulheres são capazes, sim”.

A necessidade da rede de apoio

Quando decidiu ser candidata a vereadora no Recife, em 2020, Elaine Cristina não teve uma agenda de campanha muito movimentada, afinal, a corrida eleitoral ocorreu em meio a uma fase crítica da pandemia de Covid-19 no Brasil e muitos dos compromissos eram realizados remotamente. Este ano, no entanto, a rotina é outra. Concorrendo a um cargo maior e com muitas demandas de atividades presenciais, Elaine passa mais tempo fora de casa e consequentemente precisa deixar seu filho sob os cuidados de outras pessoas.

“Pedro é muito apegado a mim porque eu estou todos esses anos em casa cuidando dele e, por isso, é novidade para ele que eu precise me ausentar com tanta frequência. […] Quando você tem um pai presente, e não apenas um genitor, é diferente, você tem um apoio constante, mas infelizmente na maioria das vezes não é assim e por isso é preciso ter uma rede de apoio para ajudar nos cuidados”, afirmou a candidata.

Elaine, que conta com a ajuda das irmãs para cuidar de Pedro durante o período de campanha, enfatizou a solidariedade das mulheres, sobretudo das mulheres negras, em dar suporte umas às outras. “A verdade é que só mulheres pretas estão realmente preocupadas em ajudar outras mulheres pretas a construir uma rede de apoio”, disse.

A candidata a deputada estadual contou que anos atrás seria impossível concorrer a um cargo político devido às condições de saúde do seu filho, que demorou a ter um diagnóstico médico preciso para viabilizar um tratamento eficaz. “Antes, quando Pedro não tinha um diagnóstico correto e eu não fazia o uso da Cannabis no tratamento dele, era impossível sair de casa porque ele tinha muitas convulsões, mas depois da Cannabis isso mudou, e hoje eu consigo sair de casa tranquila e deixar ele com outras pessoas”. Sabendo da importância da planta na melhoria da qualidade de vida do seu filho, e consequentemente na sua, Elaine Cristina fez da legalização das drogas e do cultivo da cannabis uma das bandeiras de sua campanha e adotou o “Mãeconheira” como um dos seus motes.

Não bastasse todos esses problemas, Elaine também luta para conseguir uma nova cadeira de rodas para que Pedro consiga se locomover de forma mais confortável e segura, uma vez que a atual já não o comporta mais. “Ele já devia ter recebido a cadeira há muito tempo, mas a entrega do Governo do Estado está atrasada. Já tiramos as medidas para a nova cadeira mais de uma vez, mas nada dela chegar e não dão nenhum prazo para a entrega”. Com a renda do Benefício de Prestação Continuada (BPC) sendo insuficiente para custear as despesas da família, Elaine também faz de suas redes sociais uma rede de apoio para conseguir manter o tratamento de Pedro. “Eu não queria ter que expor ele, mas foi a forma que eu encontrei para conseguir apoio. Tem dado certo”, afirmou a candidata.

Mães periféricas

A candidata a deputada federal pelo PSOL Janielly Azevedo, moradora do bairro de Zumbi do Pacheco, em Jaboatão dos Guararapes, também reconhece a importância da rede de apoio para garantir a ascensão política de mulheres negras. Mãe de Lua Maria, de 18 anos, e Alabà, de 8 anos, a Ialorixá e produtora cultural conta como é desafiador adaptar a rotina de cuidados com as filhas às outras atividades do dia a dia: “É muito difícil encontrar alguém que queira ficar com a Alabà porque eu sei que ela não é fácil, criança dá trabalho mesmo, mas porque a gente não faz o mesmo questionamento para os pais e responsabiliza só as mães por esse cuidado?”

“Acho que o desafio é sempre financeiro também, porque quando você tem dinheiro para pagar alguém que possa cuidar de seus filhos você fica com uma preocupação a menos, mas a realidade das mães da periferia não é essa”, defendeu Janielly.

A condição financeira é uma das questões que difere as experiências políticas de mulheres brancas e negras, e a coordenadora da plataforma Eu Voto em Negra, Piedade Marques, explica o porquê: “Há estruturas de desigualdades muito bem estabelecidas no Brasil. Por isso, as mulheres negras são totalmente desamparadas, mas as mulheres brancas têm dinheiro para garantir que o cuidado seja garantido. Enquanto a gente tem mulheres negras em uma estrutura ainda precarizada do cuidado com as suas crias, as mulheres brancas conseguem colocar os filhos em escolas de tempo integral, contratar cuidadoras e tudo é relacionado ao poder aquisitivo. Muitas vezes as mulheres brancas estão indo para o trabalho e é a mulher negra que está cuidando das crianças”, Piedade Marques, coordenadora da plataforma Eu Voto em Negra.

Janielly contou também que tem preocupações redobradas pois sua filha mais velha está grávida e enfrenta uma gestação de risco e sua filha mais nova é cardiopata e asmática. Contudo, graças a sua rede de apoio, formada por mulheres negras da periferia, incluindo sua própria mãe, a candidata tem cumprido seus compromissos políticos. “Apesar dos desafios e dificuldades, a gente precisa continuar participando ativamente das campanhas porque se nós não estivermos nos lugares nós somos esquecidas e invisibilizadas. As pessoas não estão preocupadas em saber porque você deixou de participar de alguma atividade, elas querem que nós estejamos presentes”, afirmou Janielly.

Janielly Azevedo e sua filha Alabà em plena atividade eleitoral. Crédito: Reprodução/Instagram @janiellyazevedopsol

“É muito importante que a gente tenha uma rede de apoio dentro da própria política, pois a gente percebe que as mães estão preocupadas umas com as outras, justamente porque compartilham das dificuldades. Eu me preocupo com as companheiras do partido que são mães como Elaine, Raphaela, Luiza Carolina, mas juntas nós vamos construindo um espaço político onde nos sentimos acolhidas e fortes para continuar a luta. Todas nós entendemos a importância de ocuparmos esses espaços”, concluiu a candidata.

Corroborando com o relato de sua correligionária, Elaine Cristina reconheceu a capacidade do ambiente político em criar uma rede ainda mais ampla para apoiar as mulheres. Ela contou que nunca se sentiu tão acolhida como agora: “Toda a minha campanha é feita com base no afeto, no amor e uma rede de apoio que eu nunca tinha tido antes, e para nós mães, principalmente mães de crianças atípicas, é muito importante não nos sentir sozinhas. Mesmo nos momentos em que eu preciso me ausentar para cuidar do meu filho, as minhas companheiras políticas me ajudam a colocar a campanha na rua”.

Pautar a maternidade na política

Não há nenhum dado formal sobre a incidência das mães na política e o crescimento numérico de suas candidaturas. No entanto, o recorde de candidatas mulheres nas eleições de 2022 traz ao debate público as pautas da maternidade. Um exemplo disso é a candidatura da professora e ativista ambiental Adriana Souza. Moradora da periferia do bairro Industrial, em Contagem (MG), Adriana é candidata a deputada estadual pelo PT em Minas Gerais.

Mulher negra e mãe de três crianças, de 18, 12 e 4 anos, a professora escolheu o lema “Maternar a política” como o principal tema de sua campanha eleitoral. “A minha vida inteira eu vi as mulheres pretas e mães da periferia sendo responsáveis pela vida de todos que vivem na comunidade, eram elas que gestavam aquele lugar. Eu me inspirei muito nisso. Então, quando eu comecei a entrar no movimento feminista, na militância, e pensar de forma mais política eu comecei a sentir falta dessas mulheres [mães negras] ocupando aquele lugar”, afirmou Adriana.

Neta e filha de mulheres negras e mães solo, Adriana enfatiza a necessidade de ter mais representatividade na política institucional: “Porque, até hoje, nós ainda não temos um sistema amplo de creches que atenda toda a população brasileira? É porque as mães, sobretudo as mães pretas e periféricas, não são protagonistas na política institucional do Brasil e isso precisa mudar. Só quem passa pela experiência de ter que conciliar trabalho e cuidado com os filhos e a família é que sabe a importância de ter uma creche garantida”.

“Quando eu penso e falo em maternar a política é no sentido de garantir uma política do cuidado, cuidado com a infância, com a juventude, com os idosos, com o meio ambiente, um cuidado que nós mães já estamos habituadas a fornecer, principalmente no contexto de periferia no Brasil. A gente precisa ter mais mulheres negras e mães na política institucional justamente para cobrar esse cuidado do Estado, um cuidado que nós conhecemos e exercemos muito bem”, reforçou a petista.

Adriana Souza e suas filhas. Crédito: Reprodução/Instagram @adrianasouza.13

Adriana contou ainda que diferente das mulheres de sua família ela tem o apoio de seu companheiro na criação de seus filhos, mas isso não impede que ela sofra durante sua trajetória política. “É muito comum as pessoas perguntarem às mães ‘você está aqui fazendo campanha e quem está cuidando dos seus filhos?’, mas a gente não vê o mesmo acontecer com os homens que são pais”, disse.

Além das dificuldades de uma experiência materna marcada por abandono paterno e exercida de forma solitária e sem um apoio financeiro por mulheres negras, a violência a que essas mulheres estão expostas na vida política e pública também precisam ser levadas em consideração. De acordo com a pesquisa Violência Política Contra Mulheres Negras, realizada pelo Instituto Marielle Franco, mais de 70% das candidatas negras que disputaram as eleições municipais em 2020 foram agredidas em suas campanhas. Refletindo sobre o papel central que as mulheres negras têm no sustento e na manutenção de milhões de famílias, sobretudo nas que vivem nas periferias, é fundamental garantir um espaço de disputa política seguro e justo para essas mulheres.

“Para essa campanha nós tivemos que montar um esquema de segurança rigoroso, porque, como eu ando sempre com camisas do PT e de Lula, os bolsonaristas me ameaçam mesmo, então eu evito ir sozinha às ruas. Uma vez, um deles comentou a minha semelhança com Marielle Franco em um tom de ameaça mesmo, como se estivesse desejando que acontecesse comigo o mesmo que aconteceu com ela”, contou Adriana Sousa.

Esta reportagem foi produzida com apoio doReport for the World, uma iniciativa doThe GroundTruth Project.

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AUTOR
Foto Giovanna Carneiro
Giovanna Carneiro

Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.