Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52
Crédito: Ilustração Ivson Santo/MZ Conteúdo
No dia 8 de maio, um dos trend topics no Twitter no mundo, foi a própria data “8 de maio”, aniversário dos 78 anos da vitória dos aliados sobre a Alemanha nazista, na II Guerra Mundial. A maior parte das postagens apontadas com destaque pelo algoritmo da plataforma realmente celebravam a derrota de Hitler e Mussolini. Nem todas tinham esse enfoque: para algumas delas, aquela foi a data em que “o mal venceu o bem” ou que “o caminho do nacional-socialismo foi interrompido”.
Esses tuítes são a porta de acesso a uma pequena, porém bastante ativa, rede de perfis que se dedicam, cotidianamente, a fazer propaganda nazista explícita, misturada a discurso de ódio contra nazistas, negros e nordestinos.
Os autores das postagens demonstram estar à vontade no Twitter, postando vídeos, fotos, cards e memes de apologia ao nazismo praticamente todos os dias – ou mais de uma vez por dia – há meses, sem serem incomodados pela moderação da plataforma do bilionário de extrema-direita Elon Musk. No dia vitória aliada, por exemplo, a postagem que começa com a frase “o mal venceu o bem”, citada acima, foi feita por uma conta com pouco mais de 400 seguidores, mas já tinha acumulado mais de 12.500 visualizações no final da tarde, indicando estar sendo privilegiada pelo algoritmo.
Em um vídeo compartilhado entre os perfis que fazem parte dessa rede, um brasileiro, um homem ao lado de uma mulher responsabiliza o Estado de Israel e os judeus pelo tráfico de órgãos humanos no planeta. Ele ressalta não ter preconceitos contra nenhum povo, mas afirma serem “os judeus os maiores compradores de órgãos humanos”. Em outra postagem. Uma postagem com a imagem do rosto de Hitler e a cruz suástica é acompanhada por texto que abre com a frase “o judeu é e sempre será o eterno parasita”. Em outra, “os judeus tem o desejo muito forte de exterminar a raça branca”.
O discurso de ódio é dirigido na mesma intensidade contra outros grupos. Há postagem que associam diretamente as nordestinas negras à prostituição ou ao “desejo sexual” dessas mulheres por homens brancos do sul. Muitas dos termos dirigidos aos judeus são usados para se referir aos moradores do nordeste, como em uma postagem que defende a separação da região sul do restante do Brasil, em cujo mapa o nordeste e o norte estão marcados com a foice e o martelo, símbolo do comunismo: ‘Com o tempo retornarão se arrastando aos nossos pés, pois nós movemos essa nação. Já chega de sermos escravizados por parasitas e migrantes”.
As minibios (pequenas autodescrições dos responsáveis pelas contas) repletas de termos como “nacionalista”, “gaúcho”, “branco do sul”, “cristão tradicionalista” ou “hetero” permitem associar alguns deles a perfis parecidos com incels, jovens heterossexuais ressentidos por se sentirem incapazes de encontrarem uma parceira culpam as próprias mulheres e homens de outros grupos sociais. De acordo com especialistas, os ataques e ameaças a escolas no Brasil são estimulados em comunidades de incels, associados ao neonazismo e à extrema-direita.
Outra expressão muito usado nas minibios é “terceira posição”. Essa é outra maneira de se definir como fascista ou neonazista e driblar a moderação, pois o termo se refere a quem é contrário ao “globalista” e também ao “comunismo”, que é o como a humanidade se divide na visão simplificadora desse grupo.
Durante a apuração dessa reportagem, os perfis e posts com propaganda nazista foram denunciados ao Twitter ainda na primeira quinzena de maio, mas só na quarta-feira, 31, algumas das contas mais ativas foram suspensas pela empresa. Ao menos um dos perfis voltou à ativa em uma conta secundária já existente, com uma pequena modificação no nome de perfil. O contato com o e-mail da assessoria de imprensa da plataforma foi respondido automaticamente com o famoso emoji de cocô, maneira grosseira adotada por Elon Musk para lidar com os veículos de jornalismo.
Hoje, 2 de junho, dia em que a Polícia Federal realizou uma operação contra grupos neonazistas envolvidos nos ataques às escolas, outras contas semelhantes foram suspensas pela empresa.
Defender e fazer propaganda do nazismo é crime no Brasil desde 1989. O artigo 20 da lei 7.716 estabelece que “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” pode levar a um ou três anos de prisão, além de multa. A pena para quem “fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo” vai de dois a cinco anos de reclusão.
No mundo da internet, porém, há algumas nuances. O advogado criminalista Marcos Luiz Alves de Melo, professor de Direito Penal na Universidade Católica de Salvador (UCSal) e da Academia de Polícia Civil da Bahia, adverte que a legislação brasileira não tipifica o ato de curtir ou compartilhar uma postagem neonazista. “Dar um like, como se diz, não é considerado apologia ao nazismo porque qualquer pessoa pode compartilhar alguma coisa inadvertidamente, em um gesto quase automático, ou por se precipitar”, explica Alves de Melo.
Para o criminalista, quem faz a postagem propriamente dita ou faz um comentário cujo teor é alinhada à postagem original, “aí, sim, está cometendo o crime de apologia ao nazismo, o que, em minha compreensão, do ponto de vista político é intolerável”.
O professor Alves de Melo conta que, ao longo de toda sua vida profissional, se colocou contra o chamado “ativismo” por parte do judiciário, principalmente dos tribunais superiores, porém “quando o legislativo se omite e não resolve questões cruciais como essa das fake news e a regulação das redes sociais, tenho de aceitar a intervenção do Poder Judiciário”.
Não é só a lei citada anteriormente que enquadra as postagens encontradas pela Marco Zero como crime. Uma decisão tomada em 2003, em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), estabeleceu o paradigma da Justiça brasileira sobre os limites da liberdade de expressão em casos envolvendo apologia ao nazismo: trata-se do caso Sigfried Ellwanger.
Quem explica as implicações dessa decisão do STF é o doutor em Direito e professor de Direito Constitucional pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), Gustavo Ferreira Santos. “A maioria dos ministros da corte entendeu que o discurso antissemita de Sigfried Ellwanger, um gaúcho que era escritor e editor de livros que negavam o holocausto e pregavam ódio aos judeus, não era protegido por lei e ele foi condenado à prisão”, explica o jurista, completando com uma frase que será importante para entender porque as plataformas de redes sociais resistem em coibir esse tipo de postagem: “Com essa decisão do STF, nos aproximamos do paradigma do Direito alemão”.
Santos explica que o conceito de liberdade de expressão depende de cada experiência nacional e do contexto histórico de cada país. “Na Alemanha, que sofreu as consequências do nazismo, o direito à liberdade de expressão é mais regulado, já nos Estados Unidos há regulação é menor. Como as grandes empresas de tecnologia são norte-americanas, seguem a interpretação dos Estados Unidos”, explica.
“Por isso, quando se discute liberdade de expressão, estamos nos referindo a uma coisa e as bigtechs de outras”, resume o constititucionalista.
O professor detalhou um pouco mais essa diferença. “A Suprema Corte dos Estados Unidos entende que qualquer discurso, em nível abstrato, está protegido, e, por mais repugnante que seja, pode ser colocado naquilo que chamam de ‘mercado de ideias'”, detalha. A coisa muda de figura quando sai da ameaça abstrata para um ato concreto. Para facilitar a compreensão, o professor da Unicap usou o exemplo da Ku Klux Klan, a organização ultra racista e extremista: “Em abstrato, a KKK pode propagar seu discurso, mas se uma cruz de madeira for pregada pegando fogo em frente à casa de uma família negra, a ameaça de tornou real e representa um risco imediato, então um crime foi cometido”.
Proposital ou não, a moderação permissiva é consequência direta da falta de regulamentação das redes sociais no Brasil e do artigo 19 do Marco Civil da Internet que isenta de responsabilidade civil os provedores de conteúdo. Esta é a opinião da diretora do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec), Raquel Saraiva. “As plataformas não prestam dos resultados da moderação porque não há regulamentação, elas nem precisam demonstrar que estão agindo para moderar esse tipo de conteúdo. E isso está previsto no projeto de lei 2630“, assegura a especialista, referindo-se ao PL das Fake News.
Segundo ela, do ponto de vista técnico, já não há qualquer obstáculo para as grandes empresas de tecnologia realizarem a moderação ativa de conteúdo em suas redes. Por moderação ativa, entender o acompanhamento em tempo real do conteúdo, com intervindo sempre que necessário para retirar postagens ou até suspender usuários. Parece complicado, mas os algoritmos fazem isso o tempo todo para direcionar publicidade e postagens de acordo com o interesse de cada perfil.
A falta de interesse em moderar postagens racistas, antissemitas se dá tanto por motivos ideológicos – quando comprou o Twitter, Elon Musk antecipou que o “pássaro está livre” – quanto financeiros. Saraiva explica que, “como o ódio engaja mais do que os afetos, também gera mais rendimentos financeiros, há um ciclo em que, ao passar mais tempo na rede, a pessoa é exposta a mais discurso de ódio, interagindo com esse discurso, o que a leva a ficar ainda mais tempo na rede”.
“E a estratégia das bigtechs em fomentar os discursos conspiracionistas, de desinformação e de ódio passaram a interferir diretamente no debate público, principalmente a partir da eleição de 2018, que elegeu Jair Bolsonaro”, alerta a diretora do IP.rec, para quem esse é o desdobramento mais grave da falta de regulamentação.
Raquel Saraiva acredita que o primeiro cuidado é não interagir com as postagens de discurso de ódio, incluindo as de propaganda nazista. “Não se deve comentar nessas postagens, mesmo que seja para criticá-las. Da mesma forma, não deve retuitar ou compartilhá-las, mesmo que seja para denunciá-las publicamente”, explica. Apesar das ferramentas de denúncia das plataformas não serem transparente, recomendo usá-las para registrar a denúncia na própria rede social, além de bloquear a conta”, orienta a pesquisadora do IP.rec.
Antes de fazer o bloqueio, Saraiva aconselha formalizar a denúncia ao Ministério Público. Para isso, é importante fazer prints das postagens e também dos comentários com o objetivo de produzir provas do crime cometido nas redes.
Para fazer a denúncia, a assessoria do Ministério Público Federal existir duas opções. O primeiro caminho é registrar a denúncia diretamente para a Ouvidoria do MPF, nesta página aqui. A procuradoria-geral da República mantêm convênio com a organização não-governamental Safernet, especializada em promover e defender os direitos humanos na Internet no Brasil. Por isso, o MPF também indica esse caminho para denunciar os perfis neonazistas, pois a ONG já faz uma triagem e encaminha para o órgão público adequado.
No entanto, registrar uma queixa no MPF não significa dizer que o caso será apurado pelos procuradores do Grupo de Apoio sobre Criminalidade Cibernética, em Brasília. Apesar da procuradoria regional dos Direitos do Cidadão, em São Paulo, ter instaurado um inquérito civil público para investigar como as redes sociais e aplicativos de mensagem estão enfrentando as fake news e a violência digital, muitas denúncias são arquivadas ou acabam sendo repassadas para os promotores dos ministérios públicos estaduais.
Em junho de 2021, ao tratar de uma denúncia de “manifestações neonazistas, homofóbicas e disseminação de ódio e preconceito racial contra negros e nordestinos”, recebida pelo atendimento ao cidadão do MPF em Petrolina e Juazeiro, o procurador José Roberto Pimenta Oliveira, da procuradoria federal dos Direitos do Cidadão, emitiu um parecer defendendo que a “apuração das práticas de disseminação de ódio e preconceito na rede mundial de computadores é de atribuição do Ministério Público Estadual”.
Uma questão importante!
Colocar em prática um projeto jornalístico ousado custa caro. Precisamos do apoio das nossas leitoras e leitores para realizar tudo que planejamos com um mínimo de tranquilidade. Doe para a Marco Zero. É muito fácil. Você pode acessar nossapágina de doaçãoou, se preferir, usar nossoPIX (CNPJ: 28.660.021/0001-52).
Apoie o jornalismo que está do seu lado
Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.