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Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo
A novela da lei municipal 17.918 que proibiu todo e qualquer tipo de carroça com tração animal no Recife teve mais um capítulo ontem, com a audiência pública promovida pelo Ministério Público de Pernambuco. A lei é de 2013 e foi regulamentada só em 2019, com o prazo de dois anos para, gradualmente, entrar em vigor. De 2021 para cá, outros decretos estenderam o prazo. Mas ainda não deve ser neste ano, nem no próximo, que o Recife vai ficar sem cavalos, burros – ou outros animais – pelas ruas. A questão é complexa e deve se prolongar além do prazo atual, que se encerra no início de 2024.
Há milênios os seres humanos dependem de animais para diversos trabalhos. Mas uma capital como o Recife apresenta desafios hoje que, dificilmente, contemplam o bem-estar desses animais. Com fotos de animais em situações precárias, doentes e mortos, defensores dos animais presentes na audiência denunciaram maus-tratos contra cavalos e burros. E a demora do poder público em ter condições de aplicar a lei.
“Nesse período de implementação gradual da lei, há uma série de questionamentos urgentes que precisam ser feitos. Qual a destinação dos animais idosos? Como é realizada a eventual eutanásia desses animais? Qual o peso máximo das carroças utilizadas? É uma discussão que precisa ser feita agora, sem perseguição de classe”, afirmou Alexandre Moura, do Fórum de Defesa Animal.
Os ativistas também frisaram que os animais são uma parte ainda mais fraca do contexto social de pobreza em que os carroceiros estão inseridos. “Os animais não recebem o aporte nutricional adequado, porque as pessoas não conseguem oferecer isso a eles, por uma questão sócio-econômica. Sofrem estresse térmico, não têm pausa para descanso e as péssimas condições do asfalto propiciam acidentes e todo tipo de risco. Os animais também não têm a adequada preparação dos cascos, nós vemos muitos animais sem ferradura. Há ausência de locais adequados para alojamento. A Secretaria Executiva dos Direitos dos Animais (Seda) deveria acompanhar o bem-estar desses animais dentro das comunidades. O que vejo é que eles ficam soltos, comem plásticos, isso sem falar da falta de assistência veterinária”, disse a ativista Etelvânia Maria.
Alguns decretos da Prefeitura do Recife, denunciam os defensores, olham a questão mais pelo lado do trânsito do que pelo direito dos animais. Na atual fase da retirada gradual das carroças, é permitida a circulação das 9h às 16h e das 21h às 6h, nas vias coletoras, e das 9h às 17h e das 20h às 6h, nas vias locais.
Do outro lado da história estão os carroceiros. Não há uma associação formal que os represente, o que está sendo organizado por um grupo desses trabalhadores. De acordo com dados enviados ao Ministério Público, são cerca de 1,2 mil condutores de carroças de tração animal no Grande Recife, sendo 180 cadastrados na prefeitura da capital.
Em uma pesquisa com carroceiros, foi identificado pela Seda que:
A pesquisa também perguntou quais os cursos que os carroceiros gostariam de fazer, para mudar de profissão. Os cinco mais mencionados foram mecânica de motocicleta, pedreiro, elétrica, mecânica e cabelereiro/barbearia.
Mas nem todos estão interessados em mudar de profissão. Para alguns, trabalhar com os animais faz parte da dinâmica social e familiar em que estão inseridos. Um dos representantes dos carroceiros na audiência pública, Marcos Batista, o Neno Ferrador, disse que quer continuar com sua atividade, que será extinta quando a lei entrar em vigor.
“É uma lei muito severa para o trabalhador. E para a cultura também, hoje a gente tem cavalo não só por conta do trabalho, mas para lazer, a gente cria porque gosta. Fui criado assim e crio meu filho assim também, tiramos o sustento da carroça. Trabalho com isso a vida toda”, diz Neno, que cria os animais no bairro da Mustardinha.
Neno também diz que é preciso punir os carroceiros que maltratam os animais. “A punição tem que ser severa. Estamos tentando montar a associação para também denunciar quem pratica esses maus tratos”, afirma.
Um impasse que parece sem resolução é que há uma distância enorme entre o que os carroceiros consideram maus tratos – levar os animais à exaustão, bater, cortar – e o que os defensores consideram. No caso dos defensores, o próprio fato de usar um animal para um trabalho já configura o mau trato, assim como o uso de apetrechos com os arreios.
Para a União Vegana de Ativismo (UVA), os políticos e o poder público não têm se preocupado significativamente com a condição dos animais, nem dos trabalhadores.
“Denunciamos os oportunistas da causa animal, que tem sua preocupação exclusiva e seletiva com alguns animais e que não se solidarizam com os humanos, atuando para criminalizar grupos marginalizados por parte da sociedade e proteger a exploração animal feita por grupos privilegiados”, diz panfleto do grupo. Presente na audiência, o deputado estadual Romero Albuquerque (União), que recentemente divulgou vídeo agredindo um homem na frente da polícia, afirmou que era perseguido pelos carroceiros.
Na audiência, a ativista da UVA Bárbara Bastos cobrou que os direitos humanos sejam tão respeitados quanto os direitos dos animais e que os carroceiros tenham a assistência social devida, assim como os animais tenham tratamento digno, livres de um trabalho que não escolheram.
A secretária executiva dos Direitos dos Animais (Seda) do Recife, Andreza Romero, que assumiu o cargo há menos de um mês, fez uma apresentação rápida para tentar mostrar que a Seda está se preparando para receber os animais que irão sair das ruas. De acordo com a secretária, a reforma do Centro de Vigilância Ambiental (CVA) deixou o espaço com 39 baias individuais e três baias coletivas, para 15 animais.
As baias individuais são necessárias para fazer os exames – a Seda contratou um laboratório privado – para mormo e anemia nos animais. Os que dão positivo para essas doenças passam por eutanásia. No caso da mormo, que pode ser transmitida para seres humanos, o exame é repetido por um laboratório público.
A Seda também afirmou que está procurando terrenos em zonas rurais do Grande Recife para receber os animais que hoje estão com os carroceiros.
Ainda que se estenda para além do previsto, a retirada das carroças de tração animal não deve se prorrogar por mais muito tempo. “Não vamos passar mais dez anos neste debate”, garantiu, por várias vezes, o promotor Sérgio Gadelha Souto, da 12ª Promotoria de Justiça de Defesa da Cidadania da Capital (Meio Ambiente e Patrimônio Histórico-Cultural).
Para ele, é preciso trabalhar com a realidade. “Não adianta a gente imaginar que em seis meses todas as questões levantadas serão solucionadas. Mas, claro, é preciso avançar. Não se pode simplesmente prorrogar um decreto. Precisamos avançar para que, de fato, a questão do bem-estar animal seja acolhida pelo município e estabelecido um diálogo com os trabalhadores. Existe um lado social e não se pode simplesmente fechar os olhos”, afirmou o promotor para a Marco Zero.
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Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org