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Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo
Desde que foi inaugurado, em dezembro de 2021, o Parque das Graças é um sucesso de público. Não importa o dia da semana, o parquinho das crianças e o parcão estão sendo usados, tem sempre pessoas caminhando, correndo, andando de bicicleta, dançando ou passeando. A vista é um deslumbre, com o frondoso mangue da outra margem emoldurando o rio Capibaribe. Mas se é um sucesso de público, o mesmo não se pode dizer em relação ao meio ambiente.
O mangue foi todo retirado da segunda e da terceira etapa durante a construção do parque, há um ano e meio. Quase 100 árvores, muitas delas de grande portes, foram também cortadas. As mudas recém-plantadas, como forma de compensação ambiental, estão aquém do tamanho indicado na licença ambiental. Deveriam ter no mínimo 2,20m, mas são poucas as da terceira etapa que chegam a essa altura.
Essa falta de cuidado com a natureza é um contrassenso: o projeto do Parque das Graças integra o Parque Capibaribe, que tem como objetivo “apostar em uma cidade verde, que promoverá a reconexão com a natureza, através da gradativa recuperação das águas e matas ciliares”, como diz o site oficial.
A destruição do mangue do parque ocorreu porque a faixa de terra entre os prédios vizinhos e o rio era muito estreita – alguns prédios já estavam próximos da margem. O desmatamento foi feito também para que as máquinas pesadas usadas na obra conseguissem circular.
Uma das idealizadoras do projeto Parque Capibaribe, que contou com a participação de pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a arquiteta e urbanista Circe Gama Monteiro diz que uma alternativa para diminuir a retirada do manguezal era que houvesse uma balsa no rio para as máquinas, durante a execução da obra. Mas isso encareceria ainda mais a construção, que teve que ser licitada três vezes.
“Aquela passarela, por si só, já é uma solução muito drástica. Mas não tinha terra nenhuma: os edifícios ocuparam até o último palmo da beira do rio. Então não tinha como passar. O que significa que teve que aterrar para passar caminhões e tratores. E aí não tinha condições de ser delicado com nada. Quando a gente olhava, tinham derrubado árvores que a gente tinha indicado para não derrubar”, lamenta a arquiteta, lembrando que o uso de balsa no rio, para a passagem das máquinas, poderia ter diminuído o desmatamento. “A lógica de quem projeta é ter a melhor solução, tanto para o meio-ambiente quanto para a manutenção e durabilidade. Houve todo um cuidado. Mas quando vai para a execução, o mundo é outro. Se faz uma licitação pelo preço mais baixo. É a lógica da execução do poder público, se compra pelo preço mais barato”, diz.
O Parque das Graças foi uma conquista dos moradores do bairro, ainda na gestão de Geraldo Julio (PSB). A ideia inicial era de que ali fosse construída uma avenida com quatro faixas. “O projeto dessa avenida avançava 20 metros por cima do rio. O projeto do parque avança, no máximo, cinco metros”, diz Circe.
Assim que recomeçaram as obras do parque, e o desmatamento, houve uma movimentação de urbanistas, ambientalistas e moradores contra a retirada da vegetação. A prefeitura logo fez uma forte campanha para reafirmar que o meio-ambiente iria ser preservado.
Em um vídeo do ano passado, a gerente de projetos do Parque Capibaribe, Amanda Florêncio, afirmou que “a gente vai plantar 200 espécies de árvores nativas, o mangue vai ser replantado também, regenerado. É um parque que vai revolucionar nossa forma de relação com o rio”. Francisco Cunha, do Observatório do Recife, também gravou vídeo em que falava em “preservação ambiental rigorosa”.
Para obter a licença ambiental, a prefeitura do Recife se comprometeu a realizar o plantio de “551 indivíduos arbóreos no mesmo endereço das erradicações”.
A equipe do projeto especificou mais de 80 espécies de plantas nordestinas da Mata Atlântica para serem plantadas no parque. “Vimos então que quase não havia mudas dessas espécies nativas aqui e que havia a necessidade de sementeiras e viveiros para que essas plantas chegassem a mais de dois metros, para que conseguissem sobreviver no meio urbano. Escolhemos espécies que atraem passarinhos, abelhas, saguis, para reconstruir uma diversidade vegetal e para atrair a diversidade animal”, diz Circe. O tipo de grama plantada na primeira etapa, por exemplo, foi especialmente escolhida por ser uma das favoritas das capivaras, que fazem aparições quase diárias no parque.
Mas nem tudo saiu como especificado no projeto. Apesar de haver sementeiras da prefeitura no Sítio da Trindade e no Jardim Botânico, há árvores nas Graças, como Ipês, que vieram de Minas Gerais, de outro bioma. Diversas mudas, como as do corredor da terceira etapa, foram plantadas muito abaixo da especificação mínima de 2,20m que consta na licença ambiental dada pela Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Sema).
O mangue não precisa ser plantado: existindo a topografia ideal, na margem do rio, ele volta a nascer, já que os propágulos (espécie de semente) do mangue se desprendem das árvores adultas e crescem no terreno ao redor. Mas precisa de terra fora d’água para que isso aconteça.
“Apesar de ser uma vegetação que duas vezes por dia é alagada pelas marés na franja do Capibaribe, tem que haver um certo nível topográfico. Não é uma árvore que vai nascer dentro d’água. Ela tem que ficar um período fora e outro dentro da água. Naquele trecho, do deque, não tem espaço. O que deveria ser a área que a vegetação ocuparia, é justamente o deque e depois água, não há área de plantio”, observa o biólogo e professor de Ciências Biológicas da Universidade de Pernambuco (UPE) Clemente Coelho Júnior.
“Na época do desmatamento, eu critiquei essa falta de espaço para o crescimento do mangue e fui apedrejado”, lembrou. Segundo Clemente, uma das formas do mangue voltar a nascer neste trecho seria com aterramento, levantando a cota do rio. “A esta altura do campeonato, é melhor não fazer, pois vai estreitar a vazão do rio, seria outra agressão”, diz.
O manguezal tem diversas funções benéficas para o Recife, servindo como uma barreira contra a força das marés e também como filtro do rio. “A espécie mais comum ali é a que chamamos de mangue branco. Ela tem uma característica no rio Capibaribe que é uma taxa de crescimento muito boa, por conta, por incrível que pareça, da quantidade de nutrientes que tem no rio. Mas isso se relaciona infelizmente à descarga de esgoto. É uma planta que faz um papel importante, de filtro biológico, retirando os materiais do esgoto e incorporando ao tronco e às folhas. Em um ambiente sem tanto impacto ambiental, a árvore do mangue branco não é tão frondosa. Aqui, ganha essa característica”, explica o biólogo.
As árvores de mangue não vivem muito tempo (em torno de 60 anos) como espécies de paisagismo, mas crescem rápido. Podem chegar a até 15 metros de altura, em um ambiente como o rio Capibaribe. “Mas para atingir essa altura vai demorar algo em torno de 15, 20 anos”, estima Clemente.
Circe Gama Monteiro lembra que se pensou, no projeto, em formas de recuperar o manguezal. “Se a gente for esperar o processo de recuperação natural, serão muitos anos. Mas, por exemplo, em muitos lugares se faz uma meia lua de borracha, se cria o sedimento e o manguezal se regenera. Ali, pode ser um pouco difícil, por conta do movimento do rio. Mas nada mais necessário que um projeto que é para honrar a natureza, do que pensar em soluções inovadoras para fixar esse mangue. E aí precisamos de vontade política para desenvolver essas soluções inovadoras”, afirma.
Não é de hoje que o mangue é desmatado para o lazer dos recifenses. Em décadas passadas, as margens do Capibaribe eram desmatadas para a criação de praias e deques no rio. “Sem saneamento, o Capibaribe perdeu sua qualidade de água e toda a cidade deu às costas para ele. E, nesse período, o mangue voltou a ocupar as margens do Capibaribe. E compõem hoje a maior área verde da Zona Norte do Recife”, explica o biólogo.
A conservação desta área verde foi uma das principais bandeiras para que os moradores das Graças brigassem contra a abertura de mais uma avenida. Na época da retirada das árvores e do mangue, a Associação Por Amor às Graças também reclamou bastante da situação. Agora, com um parque novinho e cheio de atividades na porta de casa – e apartamentos valorizados – os moradores das Graças já não mais se mobilizam por causa da falta de mangue ou árvores.
A associação também está em um período de pouca movimentação desde o falecimento em 2021, vítima da covid-19, de Lúcia Moura, presidente da associação que lutou pelo projeto e que dá nome ao parque.
“Eu avalio como positiva a implantação do parque e acredito que, em pouco tempo, o verde voltará a preencher os vazios deixados pela necessidade da obra. Neste momento, estamos reclamando a colocação de um contêiner para a Guarda Civil, sem consulta aos moradores, em um local totalmente inadequado”, afirma Dida Maia, morador das Graças há 30 anos e que faz parte do grupo que pretende reativar a Associação Por amor às Graças, hoje sem diretoria formalizada.
Em um ponto, todos concordam: o Parque das Graças deu mais visibilidade ao rio Capibaribe, em uma das áreas mais nobres do Recife, onde ele era apenas entrevisto pelas pontes. Agora, o rio está exposto e é sentido de uma forma muito mais próxima: é um rio com esgoto, plástico, isopor, entulho. Mas ainda pulsante, abrigo de fauna e flora.
“Pelo lado pedagógico é bom que o rio seja visto. Estamos falando para as pessoas: “olha como está o rio, olha a quantidade de lixo!”. Precisamos reivindicar o saneamento básico. A cidade precisa de mais áreas verdes, mais equipamentos, mas não podemos cometer o erro de retirar a vegetação para querer levar as pessoas para a beira do rio”, afirma Clemente Coelho.
Circe Gama Monteiro enumera o que ainda falta ser feito no Parque das Graças: as travessias para pedestres e bicicletas entre as margens, as chamadas “infiltrações” que levam o verde dos parques cidade adentro, uma gestão compartilhada com os frequentadores, a quarta etapa.
“É muito bom que o Parque das Graças tenha sido feito e não uma avenida com quatro faixas. Mas tem coisas muito importantes para serem lembradas: o Parque Capibaribe é um sistema de mobilidade ativa e de combate às mudanças climáticas, com margens verdes, para ajudar a diminuir a temperatura. São 30 quilômetros, contando as duas margens de 15 quilômetros cada. O que foi feito nas Graças é um passo, mas não podemos nos contentar com isso. Foi implementada uma dimensão urbanística. Falta agora ambiental, cultural e de gestão”, conclui.
A Marco Zero entrou em contato com a assessoria de imprensa da Prefeitura do Recife para conseguir dados sobre o parque por pelo menos três vezes, mas não obteve resposta. A reportagem então deu entrada em um pedido de acesso à informação, que foi respondido pela Diretoria Administrativa e Financeira da Autarquia de Urbanização do Recife (URB).
Segundo o órgão, foram 99 árvores e arbustos erradicados para a construção do Parque das Graças, além de um volume de manguezal (veja quadro). A URB também afirma que não foi realizado nenhum aterro, “apenas cravação de estacas no rio”.
Na resposta à Marco Zero, a URB também reafirma que foi determinada a plantação e manutenção de 551 árvores de porte semelhante às que foram erradicadas. E que o tamanho mínimo das mudas deve ser de 2,20m, o que, como apurou a Marco Zero, não está sendo cumprido.
O Parque das Graças custou até agora R$ 46.451.321,17. Para a quarta e última etapa ainda serão investidos R$ 14.962.737,90. O orçamento inicial divulgado pela prefeitura era de que a obra toda custasse R$ 43.596.339,70. Ao final, a obra vai custar cerca de R$ 17,817 milhões a mais que o previsto, um aumento de 40%, em valores nomimais.
O Parque das Graças é o mais extenso do projeto do Parque Capibaribe e vai ter um quilômetro quando a quarta e última etapa ficar pronta, obra prevista para terminar até o final do ano, ligando as pontes da Torre e da Capunga.
É na quarta etapa que deve ficar os ainda inexistentes banheiros públicos. A falta de banheiros dificulta a ida de famílias de bairros mais distantes para festas e piqueniques no Parque das Graças, como acontece aos fins de semana na Jaqueira. Pelo projeto, os banheiros vão estar na quarta etapa, junto aos quiosques de alimentação.
O que é o projeto Parque Capibaribe
O projeto tem como proposta central a interligação dos bairros, por meio de uma “via-parque”: a prioridade é para a mobilidade ativa (pedestres e ciclistas), mas há locais, como o próprio Parque das Graças, em que há faixas para carros.
O Parque Capibaribe também tem como diretrizes a valorização da paisagem natural (Rio Capibaribe, fauna e flora), a integração dos parques existentes (Santana e Jaqueira), além da criação de novas áreas de convivência com a ampliação de áreas verdes na cidade.
Estão previstos 30 quilômetros de parque, estendendo-se desde a BR-101 até o centro do Recife.
O Parque Capibaribe está atualmente ligado à Secretaria de Desenvolvimento, Ciência, Tecnologia e Inovação (SDECTI) e é coordenado pela Secretaria Executiva de Projetos Especiais (SEPE). O Inciti, uma rede de pesquisadores da UFPE, é o responsável pela elaboraçãodoprojeto.
Na época das denúncias, em março do ano passado, o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) abriu um inquérito para investigar a supressão de árvores e manguezal no parque. A denúncia foi protocolada pelo deputado federal Túlio Gadelha (Rede). Após receber informações da prefeitura e fazer diligências, o promotor Sérgio Gadelha Souto decidiu, no dia 20 de junho deste ano, arquivar o inquérito e abrir um procedimento administrativo para acompanhar a obra.
No documento, o MPPE explica que decidiu pelo arquivamento por considerar que a prefeitura do Recife apresentou “todas as licenças relativas à implementação do projeto de construção do Parque das Graças”. Vale lembrar que as licenças foram emitidas por órgãos da própria prefeitura, como a Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas).
“Após análise da documentação coligida aos autos, não foi verificada, ao menos por ora, qualquer infração ambiental praticada pelos órgãos responsáveis, sendo possível visualizar que as ações empreendidas foram realizadas de acordo com a legislação ambiental”, diz o documento do arquivamento.
O MPPE também cita a transparência nas obras, já que toda a documentação do licenciamento e autorização ambiental está disponível para qualquer cidadão, no site parquecapibaribe.org, na “aba módulos”. Esses arquivos, porém, não constam mais no site.
Com o procedimento administrativo, o MPPE pretende continuar acompanhando e fiscalizando as obras no parque, que deveriam ter ficado prontas em março deste ano, mas agora têm previsão para o final do ano.
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Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org