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“Eu acho que fui ingênua, porque eu só queria ser ajudada, mas acabei sendo punida por pedir socorro”. Com a voz embargada e os olhos cheios de lágrimas, a advogada Mirella Virgínia contou como foram seus últimos anos de atuação na Polícia Militar de Pernambuco até a sua expulsão, homologada e publicada no Diário Oficial do estado no dia 1º de setembro.
Há dois anos, em setembro de 2021, a então policial militar resolveu gravar um vídeo para pedir ajuda aos comandantes da Polícia Militar e a Corregedoria da Secretaria de Defesa Social, pois apresentava um caso grave de doenças psicossomáticas – ansiedade e depressão – e por isso não tinha mais condições de trabalhar nas operações e ações de rua.
“No dia que eu decidi gravar o vídeo eu estava no ápice do sofrimento, muito mal e extremamente vulnerável. Eu aproveitei que estávamos no mês do Setembro Amarelo e pedi ajuda aos órgãos superiores porque eu estava adoecida e minha condição mental só piorava”, disse Mirella.
Na gravação, que tem duração de 20 minutos, a policial está deitada e com o rosto inchado, sob efeito de medicamentos. Em seu depoimento, Mirella expõe o processo de adoecimento que ocorreu durante a sua atuação na PMPE e demonstra preocupação com o regime de trabalho adotado pela corporação: “lutei muito contra esse problema [depressão] que adquiri dentro da instituição, que é uma instituição doente, que tem muitas pessoas boas, mas é uma instituição doente porque a gente vê um jogo de poderes muito grande, de pessoas que se superestimam por estarem envergando uma farda em postos superiores e, muitas vezes, diminuindo, perseguindo ou fazendo pouco caso, humilhando, coagindo de certa forma aqueles que estão em um posto inferior. Isso sempre me doeu demais e essa realidade já começa no curso de formação, extremamente tóxico, no qual não temos voz e estamos sempre sendo coagidos por medo”.
“Eu já vi muitos companheiros meus de trabalho cair, chorarem em alojamentos, serem perseguidos, se suicidarem e eu não quero que isso aconteça comigo nem com mais ninguém. Então, eu falo aqui com muito respeito a todos […] que compõem a cúpula da instituição, a governadora de Pernambuco, o próprio comandante geral da Polícia Militar, os muitos oficiais, que são extremamente humanos e os praças também que são empáticos […], eu creio que esse status quo precisa mudar, certo? E eu não quero ser como muitas pessoas que tiveram de sair da polícia para poder explicar e dizer o que está acontecendo”, completou a Mirella em seu depoimento.
O conteúdo audiovisual produzido por Mirella foi publicado em modo restrito no YouTube e compartilhado apenas para perfis de integrantes da corporação. De acordo com a advogada e ex-policial, seu objetivo naquele momento era pedir ajuda e não tornar públicas as denúncias narradas no vídeo.
Porém, ao invés de receber apoio da corporação, a então policial militar passou a ser investigada em um Processo Administrativo Disciplinar instaurado pela corregedoria geral da Secretaria de Defesa Social. A investigação indicou que Mirella Virgínia Luiz da Silva publicou um vídeo com “várias menções negativas e acusações à instituição da Polícia Militar de Pernambuco”.
Toda a investigação do Processo Administrativo Disciplinar (PAD) foi conduzida pela Corregedoria da SDS e, após dois anos, Mirella Virgínia foi declarada culpada pelas acusações apresentadas. Em junho de 2023, através de uma nota técnica elaborada pelo tenente coronel da PM, Marcos Antônio Santos Sales, a Corregedoria Auxiliar Militar indicou a exclusão de Mirella “das fileiras da Polícia Militar de Pernambuco”.
De acordo com a nota, a conduta de Mirella “revela-se carregada de elevado grau de reprovação, malferindo gravemente preceitos éticos inerentes aos militares estaduais”. A determinação do PAD foi acatada e homologada pela Secretaria de Defesa Social de Pernambuco, assinada pela então secretária Carla Patrícia Cunha, no dia 1º de setembro de 2023, quando a expulsão de Mirella Virgínia foi publicada no Diário Oficial.A informação oficial distribuída aos veículos de imprensa do estado omitiu o estado de saúde da policial, enfocando apenas o fato dela ter gravado vídeo com críticas à PM.
Além das acusações referentes ao vídeo, o processo determinou que apesar do “incidente de insanidade mental”, a Junta Militar de Saúde da PMPE considerou que Mirella apresentava condições de responder ao processo e não apresentava “diminuição ou supressão da sua capacidade de entendimento da ilicitude da conduta, nem da sua autodeterminação, não se encontrando na condição de inimputável”. A ação estabeleceu ainda que “dos quase 4 (quatro) anos na Instituição, ela trabalhou efetivamente apenas cerca de 4 (quatro) meses”, devido ao longo período que permaneceu afastada por licença médica.
Mirella Virgínia possui pelo menos seis atestados, dois laudos médicos, uma internação em unidade psiquiátrica e um atendimento no CAPS. Os atestados médicos indicam a incidência de insônia, quadro depressivo grave e sintomas graves de idealização suicida. A busca da soldada por tratamento psicológico começou em 2018. Desde então, ela tem procurado ajuda na corporação para seguir o tratamento e também ser realocada em funções administrativas.
De acordo com Mirella, ela se manteve durante meses nos serviços administrativos e estava em uma boa fase de recuperação em seu tratamento psicológico quando foi coagida a voltar a trabalhar nas operações policiais de rua. Por isso, resolveu gravar o vídeo: “o meu caso não estava sendo bem visto pelos meus superiores nem pela corporação como um todo, porque eu era uma policial que não pegava em arma, que não ia pra rua e ficava no administrativo”.
No próprio processo administrativo instaurado pela Corregedoria da SDS, constam laudos da Junta Médica da Polícia Militar que atestam que Mirella Virgínia foi examinada pelo menos sete vezes entre maio e novembro de 2018. Contudo, a junta médica da corporação determinou a “capacidade da mesma retornar ao expediente administrativo ‘DESARMADA’ (sic) e mantendo acompanhamento com a Psiquiatria e psicóloga”.
Diante das acusações e de todo o processo que culminou em sua expulsão, Mirella Virgínia afirma que foi violentada quando na verdade deveria ser acolhida: “é a culpabilização da vítima. Eles foram buscar uma forma de me punir sob o argumento que eu estava falando mal da instituição, mas, na verdade, eu só queria ajudar a solucionar um problema institucional, esse PAD foi uma forma que eles encontraram de me punir por pedir ajuda”.
A PM expulsa revelou que abriu vários protocolos na Corregedoria da SDS com denúncias sobre casos de abuso de poder, assédio moral e sexual, e perseguição, e que nenhum desses casos chegou a ser investigado ou foi considerado no PAD acionado contra ela.
“O que eu quero agora é reparação, a reparação do meu nome e da minha história, porque eles alegam que eu só trabalhei quatro meses, mas eu trabalhei seis anos na polícia. Eu fui expulsa junto com pessoas que praticaram crimes reais, fortes, como agressão, homicídio, roubo, e a única coisa que eu fiz foi pedir ajuda para a minha saúde, eu não posso ser tratada como criminosa”, concluiu.
A expulsão de Mirella Virgínia Luiz da Silva foi publicada no Diário Oficial junto a outras três expulsões do quadro de efetivos da PMPE. O primeiro foi o sargento José Nilson da Silva, condenado por agredir fisicamente sua companheira e outro sargento que foi acionado para socorrer a vítima. O segundo foi o soldado do Corpo de Bombeiros Gradystony de Oliveira Lopes, acusado por atirar e matar um adolescente. O terceiro expulso foi o cabo da PM Carlos José Sabino Machado, acusado por arrombar um estabelecimento comercial.
Mirella Virgínia ingressou na Polícia Militar de Pernambuco aos 18 anos, em 2016. Na época, ela cursava o segundo período de Direito na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), e se inscreveu no concurso da PM para testar suas aptidões. Com a surpresa da aprovação, veio também a possibilidade de realizar o desejo que motivou a sua escolha pelo curso: fazer diferença na Segurança Pública do Brasil. Ela é formada em Direito, tem carteira da OAB, mas não pode exercer a advocacia por causa do vínculo com a Polícia.
“Eu queria promover algum diferencial, agregar conhecimento e experiência. Por isso eu participava de palestras, de instruções nas escolas, tinha uma atuação bem forte com as crianças. Eu queria deixar uma marca boa na instituição”, revelou a policial.
A fim de buscar uma reparação, Mirella Virgínia protocolou dois recursos administrativos, um direcionado à Secretaria de Defesa Social e outro ao Governo de Pernambuco, para contestar a decisão de sua expulsão do quadro da PMPE. Além disso, a jovem conseguiu o apoio do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop), que tem prestado assistência na articulação política do caso.
“Decidimos apoiar o caso de Mirella porque ele representa um conjunto de violações vividas pelos profissionais de segurança pública e isso perpassa pelas condições de trabalho desses profissionais. A gente tem acompanhado várias notícias de adoecimento psíquico desses profissionais e nenhuma retaguarda objetiva é apresentada pelo governo. Isso impacta diretamente a população porque são esses profissionais que respondem com mais violência, com uma atuação desproporcional, muito permeada por uma prática militarizada, fundamentada no classicismo, no racismo, no machismo”, declarou a coordenadora executiva do GAJOP, Deila Martins.
Na última terça-feira, 12 de setembro, Mirella Virgínia se reuniu com representantes do gabinete da vice-governadora de Pernambuco para apresentar as denúncias que envolvem o seu caso. Dentre as reivindicações apresentadas por ela, está a garantia de direitos básicos para os agentes de segurança do estado.“O meu caso engloba um contexto muito maior, eu estou falando da condição de saúde mental dos profissionais da corporação, eu estou falando de direitos humanos, de direito das mulheres, eu não teci crítica direcionada a ninguém, eu pedi socorro a corporação, por isso é um contexto amplo e não restritivo. Eu quero ser readmitida na PMPE e ser realocada de função porque não cometi nenhum crime que justifique a minha expulsão”, defendeu Mirella Virgínia.
“É importante que esse caso tenha o apoio de uma instituição de defesa dos direitos humanos porque quando se trata de segurança pública nós estamos falando da preservação dos direitos humanos de todas as pessoas, inclusive dos agentes de segurança. Então, quando Mirela traz todo esse relato de violação, de adoecimento, que é uma pauta que a gente tem destacado também dentro do Conselho de Defesa Social, a gente precisa questionar: qual é a retaguarda que o Estado vem apresentando para esses profissionais?”, concluiu Deila Martins.
Procuramos a Secretaria de Defesa Social de Pernambuco a fim de saber o posicionamento do órgão diante das denúncias apresentadas pela PM expulsa, principalmente no que diz respeito as condições de saúde mental dos profissionais de segurança pública e na assistência psicológica desses profissionais, mas até o fechamento desta matéria não obtivemos retorno.
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Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.