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A fé e o fuzil: como as igrejas evangélicas e o PCC mudaram o mundo do crime

Marco Zero Conteúdo / 06/10/2023
Homem branco, de cabelos grisalhos, com um fone de ouvido com microfone, usa camisa branca de botões e mangas compridas arregaçadas na altura do cotovelo, falando em um palco com fundo preto com a sigla USP em letras laranjas.

Crédito: USP Talks

por Samarone Lima*

O jornalista Bruno Paes Manso trabalhava na redação da revista Veja, em 1999, quando recebeu uma pauta especial: investigar o que estava por trás da febre de chacinas, que se tornara rotina em Paulo. Só naquele ano, foram 78, com 274 mortos.

Não imaginaria que a primeira entrevista, com um matador, iria levá-lo a uma jornada pessoal, que transformaria sua própria maneira de ver a periferia, as relações humanas, e sua própria trajetória como jornalista. Tinha 28 anos e descobriu um universo paralelo de brutalidade e violência – o universo dos matadores.

Resolveu continuar as entrevistas, para tentar entender o que estava por trás daquele mundo. Homens que já tinham matado muita gente, mas não demonstraram nenhum arrependimento, e tinham certeza absoluta que nenhuma das vítimas era inocente.

“Fiquei muito, muito impactado com esse material. Eram pessoas que moravam a cinco quilômetros de mim. Além de afirmarem que nunca tinham matado nenhum inocente, me explicavam sobre o ciclo de vingança, sobre a guerra que eles se envolviam, uma guerra territorial e havia uma certa moralidade que eles compartilhavam”.

Ele cita a aproximação com Alexandre, uma de suas fontes, preso em 1998, e condenado a 58 anos de prisão. Quem ajudou na aproximação foi uma ex-professora do criminoso no ensino fundamental, Jucileide Mauger, conhecida como Tia Ju, que se tornou diretora da escola Oliveira Vianna, no Jardim Ângela. Ela explicou como fazer contato com Alexandre na prisão para que Bruno enviasse a primeira correspondência, perguntando se topava conversar. Reservei para o final do parágrafo uma informação que vale por dezenas de balanços policiais: “Jucicleide me contou que, entre os anos 1980 e 1990, quando dava aulas na escola [do ensino fundamental], perdeu mais de 100 alunos assassinados”.

O jornalista foi tomado pelo tema. Seguiu pesquisando, entrevistando, fazendo conexões, descobrindo novas fontes. Para ter mais ferramentas, na busca da compreensão daquele mundo tão complexo em que a violência é um beco sem saída, buscou novas ferramentas: entrou num mestrado da Universidade de São Paulo (USP) e virou pesquisador.

O primeiro livro que publicou, em 2005, revela suas buscas: O homem X: uma reportagem sobre a alma do assassino de São Paulo (Record).

Bruno Paes Manso. Crédito: Instagram @manso.b

Não é comum jornalistas buscarem a alma de seus entrevistados. No máximo, com algum tempo e paciência, algumas revelações mais profundas.

Suas pesquisas chegaram a outro fenômeno que nasceu na Casa de Custódia de Taubaté, em 1993, mudando a forma de gerenciar e controlar a violência: o Primeiro Comando da Capital (PCC).

Em 2018, Bruno publicou A guerra: A ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil (Todavia).

O mundo da criminalidade passou por uma nova transformação radical. Uma espécie de novo paradigma surgiu. Por decreto, estupros nas prisões foram proibidos, bem como o uso do crack. Com o passar do tempo, até para matar, era preciso apresentar justificativas e ter autorização da organização. Os velhos matadores, de gatilho fácil, perderam a força da justiça com as próprias mãos. Os fuzis tinham agora gerenciamento e era preciso obediência ao Comando.

Ao refazer contato com vários matadores, para novas entrevistas, ficou surpreso com um novo fenômeno: muitos deles tinham largado os revólveres, por causa da Bíblia. Eram agora ex-matadores, evangélicos cujo novo trabalho, ao invés do gatilho, era salvar almas do caminho do mal.

Nas conversas com esses homens que tinham se arrependido, ao passar por conversões das igrejas pentecostais, mudando completamente o comportamento, refazendo a vida e passando a lutar contra o mal, a Bíblia se tornava a nova arma. Era, na verdade, um mar de gente que adotava uma nova postura para viver, muito mais que sobreviver. Para isso, o “Não matarás” virou algo importante.

Era mais uma face do fenômeno que avança no Brasil de forma irreversível, cuja forma mais visível era quase caricata, com pastores ocupando grande parte da grade da TV, grandes templos e o crescimento das bancadas evangélicas em todo o país.

Em 1982, o Brasil tinha 12,1 mil templos evangélicos. Em 2022, eram 178.511 – uma média de 11 novos templos por dia.

A fé e o fuzil

Depois de 40 anos quase ininterruptos de crescimento, nos anos 2000 São Paulo passou a testemunhar uma queda contínua no número de assassinatos. Era algo inédito, porque nada impactante havia acontecido nas políticas de Segurança Pública. Ano após ano essa redução seguiria firme e, depois de duas décadas, alcançaria mais de 80% de queda, levando a taxa de homicídios a se tornar a menor entre todos os estados brasileiros.

O que teria acontecido? Melhor: o que está acontecendo? Esta é a principal questão a ser respondida pelo novo livro de Bruno Paes Manso, A fé e o fuzil: Crime e religião no Brasil do século XXI (Todavia).

O livro vai em busca de resposta para perguntas complexas:

Crédito: Instagram @todavialivros

De que modo o crime no Brasil se transformou com o crescimento das igrejas evangélicas a partir dos anos 1990? Como trajetórias individuais de criminosos foram afetadas a partir do contato com as novas denominações religiosas? Quais respostas as igrejas evangélicas oferecem que o catolicismo tradicional não oferecia? Como se relacionam o crescimento evangélico e o fluxo migratório para as cidades, decisivo para a compreensão do crime no país? De que modo valores conservadores associados às denominações evangélicas se tornaram centrais para a política brasileira?

Um parágrafo do livro parece sintetizar esta série de fatores aleatórios, que parecem não ter conexões, mas se tornam uma percepção de quem estava procurando, por muito tempo, uma resposta – ou o fio da meada:

“Tanto o PCC como as igrejas pentecostais são instituições criadas pelos pobres, para os pobres, que produziram novos discursos capazes de reprogramar as mentes. O novo Brasil pobre e urbano começava a inventar formas de se governar. Elas nasciam da miséria, nas ruas esburacadas das periferias, nas igrejas evangélicas e nas prisões, e eram alternativas de gerar ordem e propósito, que, nas décadas seguintes, ajudariam a definir o futuro brasileiro”.

Enquanto o Estado oferece uma polícia violenta, despreparada, presídios lotados, leis cada vez mais severas, para buscar, inutilmente, “controle e ordem”, os evangélicos pentecostais foram ampliando seus domínios com a força de suas mensagens.

Mais que mensagens. No livro, em diversos relatos, os pentecostais surgem para dar aos pobres “um pacote de crenças que os faça vencer neste mundo que já está pronto e que um dia pode acabar”.

A luta, portanto, não é individual.

“Para sobreviver, é preciso criar redes e ganhar dinheiro, encarar a realidade sem depender de favores”.

O exército precisa crescer

Um aspecto abordado pelo livro é a “batalha espiritual” travada com apoio dos canais de comunicação em massa, celulares e redes, igrejas grandes e pequenas, espalhadas por bairros pobres. As mensagens precisam ser contagiantes, dar respostas convincentes, estimular atitudes práticas, furar as bolhas, chegar aos lugares onde estão os mais vulneráveis.

“A busca deve ser feita entre os que mais precisam, dentro dos presídios, asilos, hospitais; nas cracolândias, abrigos, favelas; entregando sopas, alimentos, cestas básicas, roupas, tudo na tentativa de estabelecer vínculos e promover transformações individuais e apontar caminhos”, acrescenta o jornalista.

“Autoridade, ordem, propósito, redes de apoio. De repente, uma a nova forma de poder definia a direção do futuro do Brasil. Quanto mais popular e abrangente, mais a mensagem se normaliza e faz parte da cultura”.

Esta mensagem é recorrente, na vida dos brasileiros.

“Pode ser vista no show sertanejo ou na final do campeonato de futebol, na celebração dos gols e das vitórias mais importantes, quando o crente aponta os dedos indicadores para cima, como se compartilhassem com Deus os sucessos de sua vida”.

* Jornalista, poeta e escritor, mestre em Estudos da América Latina pela USP

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