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Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo.
Livros de diferentes temas e gêneros cuidadosamente organizados nas calçadas da avenida Guararapes. Quem passa não deixa de reparar, mesmo que às pressas, com o trabalho dos livreiros de rua. São, no mínimo, 50 anos de histórias e resistência com a sucessão de gerações apaixonadas por literatura.
Apaixonados pelos encontros, pelo olho no olho e pela troca que a leitura pode proporcionar. A área conhecida por alguns como “polo livresco”, abarca aproximadamente 20 livreiros, em sua maioria homens, que ganham a vida há anos com a venda de livros usados.
É possível enxergar as marcas do tempo em vários deles, basta parar para conversar um pouco sobre o assunto para perceber que essas marcas guardam muita experiência e conhecimentos sobre áreas distintas, fruto da proximidade diária com os livros.
Entre os livreiros de longa data está Oliveiros Souza, um senhor de 72 anos de idade, onde 50 são dedicados à venda de livros e mais de 30 à venda de obras usadas na calçada do prédio lilás, onde funcionou, durante poucos anos, uma faculdade particular. Religiosamente, de segunda a sábado, o homem sai do bairro de Sapucaia, em Olinda, para exercer sua profissão com toda a dedicação que poderia ter.
“Uma coisa que eu admiro muito é o meu trabalho. Nunca larguei os livros, porque sempre gostei de ler, já li muita coisa boa, muitos autores bons”, afirma seu Souza, figura muito conhecida naquela região da cidade. Mas as transformações do tempo também impactaram o trabalho desses profissionais.
“Tem um ditado que diz: nada substitui um livro. Mas depois que a tecnologia avançou, veio o celular, veio o computador, aí diminuíram as vendas. A gente já teve ocasiões de vender muitos livros aqui, anteriormente, sabe? Agora, a gente vende mais devagar. Mas sempre vende, porque quem gosta de livro não quer saber de outra coisa”, reforça.
Essa mesma paixão e a capacidade de ver nas obras literárias pontos chaves para quebrar paradigmas e transformar percepções sociais, sobretudo nos territórios do Recife, fez com que o educador social Elizeu Espíndola, criasse o Seborreia Recife.
“A gente faz aquilo que chamamos de intervenção cultural literária na cidade. Para mim, o sebo guarda uma semelhança com os ambulantes, com o comércio de rua, e tá dentro de uma particularidade que eu chamo de agentes culturais do asfalto. Que é o livreiro, o artista de rua, o músico, o cara que tá ali trampando com artes, com desenhos. Então, essa categoria de trabalhadores do asfalto contribui para o desenvolvimento de uma cidade”, declara Elizeu.
Diferente dos livreiros de rua tradicionais, Elizeu encontrou uma outra forma de circular com os livros, itinerante. Seborreia nasceu em 2018 também no centro do Recife, mas com a pandemia surgiu a necessidade de reinventar essas “intervenções culturais literárias”.
Hoje, a maior concentração das vendas de livros acontece de forma virtual. Na descrição da página do instagram o segmento é claro: somos uma sebo independente, virtual e andante do Recife. Para isso acontecer, a curadoria é realizada com os livreiros que permanecem nas ruas. Sempre que possível, o homem de 47 anos, sai na missão de garimpar obras que direcionem o olhar do leitor para as nuances da sociedade.
As temáticas giram em torno de dois eixos: cultura e ciências humanas, duas paixões do livreiro. Priorizando obras de grandes pensadores das humanidades e títulos de autores regionais, livros que não estão em evidência nas estantes das grandes livrarias – as poucas que sobraram. “A gente vem com esse sonho de ocupar a cidade que amamos como um direito nosso. Com essas intervenções para despertar e fomentar cada vez mais a formação de sujeitos críticos”,reitera.
Elizeu define o sebo como “um rio encantado, habitado por espécies também encantadas que lançam as iscas que fisgam esse personagem, esquizofrênico e insaciável, que é o leitor, sempre ávido por conhecimento e aventuras”.
Mas esse amor e a necessidade de compartilhar não é recente. Elizeu recorda que só depois de dois anos de Seborreia se deu conta que esteve presente como protagonista na construção de duas bibliotecas na igreja evangélica em que frequentava durante a adolescência.
“Depois fui fazendo as pontes com isso, com o quanto me dava prazer em estar aumentando esse espaço, ou seja, não apenas usar o espaço dessa relação com o livro como uma coisa particular minha. Mas o quanto desde aquele momento percebi que isso não podia ser algo que está contido apenas em mim, havia a necessidade de compartilhar com outras pessoas”, relembra.
Para ele, ocupar esse lugar de livreiro é existir como um “guardião que é responsável por manter as margens limpas e acessíveis e garantir a preservação e a renovação das espécies”. Com a capacidade de circular e promover, não só a reflexão, mas a troca e o diálogo com os leitores.
Apesar de ser uma atividade tradicional do centro, os sebistas e livreiros dizem que são ignorados pela prefeitura do Recife, inclusive nos debates do projeto Recentro. Há 50 anos, todos os domingos, acontece a feira de livros, também na Guararapes. No entanto, quando começou o projeto Viva Guararapes, projeto da gestão municipal para ocupar e movimentar a avenida, conhecida pela insegurança principalmente aos finais de semana, esses livreiros foram remanejados para a entrada da Praça do Sebo.
“A prefeitura decidiu por invisibilizar a feira [nos dias do Viva Guararapes], quem chega aqui nem sabe que existe esse evento há 50 anos. É uma grande crítica que eu tenho sobre a maneira como essa gente tem gerido a cidade”, afirma Elizeu.
Mas essa invisibilização não acontece apenas na Guararapes, em agosto deste ano, Elizeu teve seu acervo apreendido por uma equipe da prefeitura durante uma de suas intervenções itinerantes, que acontecia próximo ao 20º Festival A Letra e a Voz no Recife, no Recife Antigo.
Ironicamente, um livreiro de rua não poderia ocupar um espaço, escolhido estrategicamente por traz da feira, para “não incomodar ninguém”.A crítica não é ao evento, já que a proposta é trazer diferentes formas de arte e, também, a cultura e a poesia negra e periférica para evidência, mas como a Prefeitura pensa a exposição dessa cultura deve acontecer.
Elizeu relembra que um agente do Recentro chegou com seguranças questionando e dizendo que aquele não era uma forma de expor, se liberasse para ele, outras pessoas chegariam e seria um caos. “Então eu questionei: eu não entendo, outros livreiros de rua podendo ocupar esse espaço cultural, em um evento literário, pra vocês isso aqui é uma desordem? É aquela ideia de que quem ocupa a rua vai sofrer sempre desse estigma, tá ligado? E eu penso que é muito ao contrário”, afirma o livreiro que até hoje está com o material apreendido.
Jornalista formada pelo Centro Universitário Aeso Barros Melo – UNIAESO. Contato: jeniffer@marcozero.org.