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Silêncio para lembrar os crimes cometidos pelos golpistas de 1964

Parentes de mortos e desaparecidos políticos fazem marcha silenciosa para lembrar crimes da ditadura

Samarone Lima / 01/04/2024

Crédito: Paulo Pinto/Agência Brasil

O dia 31 de março amanheceu com céu limpo, e temperatura amena, em São Paulo. Nas bancas de jornais da avenida Paulista, a Folha de São Paulo trazia a manchete com o resultado da mais recente pesquisa do Instituto Datafolha:

“Democracia tem 71% de apoio, 60 anos após Golpe”.

Mesmo com com todos o ataques à democracia, dos últimos anos, apenas 7% das pessoas entrevistadas concordaram que, em certas circunstâncias, “é melhor uma ditadura do que um regime democrático”

Uma pequena nota, trazia uma informação importante:

“Para 63%, data do golpe deve ser desprezada”.

A três quilômetros da Paulista, no pátio do 36º DP, na Vila Mariana, dezenas de entidades de direitos humanos, movimentos sociais, familiares de mortos e desaparecidos, que lutaram contra a ditadura, formaram uma espécie de barricada contra a desmemória.

Era a concentração para a 4ª Caminhada do Silêncio é uma realização do Movimento Vozes do Silêncio, representado pelo Instituto Vladimir Herzog, o Núcleo de Preservação da Memória Política e a OAB-SP, com apoio da secretaria municipal de Direitos Humanos e Cidadania.

Foto de um grupo de pessoas em um protesto ou manifestação. Elas estão segurando cartazes com imagens em preto e branco de seus parentes mortos pela ditadura para homenageá-los e lembrar. O ambiente parece ser uma manifestação ou protesto pacífico ao ar livre durante o dia. Há uma variedade de roupas visíveis, indicando a diversidade dos participantes. O fundo da imagem mostra parte de um edifício com uma placa que diz “DISTRITO POLICIAL - PARAÍSO

Concentração da marcha silenciosa, na frente da delegacia onde funcionou o Doi-Codi

Crédito: Paulo Pinto/Agência Brasil

Naquele mesmo local, durante o regime militar, funcionou a maior central de tortura e assassinato de presos políticos do país. Era a sede do Destacamento de Operações de Informações- Centro de Operações(Doi-Codi), órgão subordinado ao Exército, comandado pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.

Segundo estatísticas dos próprios militares, de 1970 a 1973, naquele local, foram presas 1.786 pessoas, e 45 presos foram assassinados sob torturas. Segundo a Comissão Nacional da Verdade, foram 51 mortos no mesmo período.

Gente de memória

“Você viu a Bia?”, perguntava Michel Labaki aos amigos, segurando um ramalhete de flores. “Ela foi estacionar o carro e não chegou ainda”.

O ramalhete era para deixar junto ao monumento dos mortos e desaparecidos, no Parque do Ibirapuera, ao final da caminhada.

“Venho para esta caminhada para apoiar a luta. Tive a ‘sorte’ de passar apenas 24 horas neste lugar. É algo que não dá para esquecer”.

Foto colorida de um grupo de pessoas em um protesto ou manifestação. No centro da imagem, Michel Labaki, um homem idoso, branco, de cabelos grisalhos e óculos, está segurando um buquê de flores e outras estão segurando cartazes ao seu redor. As pessoas estão vestidas com roupas casuais; algumas usam camisetas vermelhas, enquanto outras usam roupas de cores variadas. O ambiente parece ser uma rua ou espaço público ao ar livre durante o dia. Além disso, há um cartaz com os dizeres: “DITADURA NUNCA MAIS!” e outro que menciona algo sobre “ESTACIONAMENTO EXCLUSIVO”. A imagem é uma cena de protesto e expressão de opiniões.

Michel Labaki

Crédito: Samarone Lima

O dia, foi sete de outubro de 1973. Ele era amigo de Ivan Valente, procurado pelos militares.

“Achavam que eu sabia onde ele estava”. Foi solto no dia seguinte, mas entrou na contabilidade dos presos e torturados no lugar” Ele tem um alívio deste período:

“Não prejudiquei ninguém”, se referindo a não ter falado nada de importante, nas torturas, que pudesse levar alguém para aquele inferno.

Figuras históricas do movimento nacional dos mortos e desaparecidos, como Maria Amélia Almeida Teles, a “Amelinha” sua filha, Janaína, Criméia Almeida, se juntaram a pessoas de diferentes gerações, com vários novos líderes falando ao microfone, ao lado de políticos da “velha guarda’, como Luiza Erundina, José Dirceu, Eduardo Suplicy.

“Aqui onde estamos, fomos torturadas e estupradas. A gente marca os 60 anos do golpe com muitas feridas não cicatrizadas. Temos que trazer o passado para o presente, e remoer, remoer, remoer”, disse Amelinha, numa das muitas críticas abertas, durante a tarde, ao presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, que vetou a realização de eventos oficiais, para, segundo ele mesmo, não “remoer” o passado.

Janaúina Teles, lembrou dos 8.350 indígenas que foram assassinados, segundo o levantamento da Comissão Nacional da Verdade. Somados aos 1.660 camponeses também mortos e aos 454 mortos e desaparecidos das listas oficiais, o Brasil teria 10 mil mortos.

“Precisamos saber a história deles. Há apenas que remoer o passado, para superar este trauma histórico, esse apagamento extorquido”.

“Não se trata de remoer, mas falar de um passado que está presente”, diz Mariluce Moura, ao lado da filha, Tessa, e dos netos, todos com camisas estampando a foto de Gildo Macedo Lacerda, militante da Ação Popular (AP), assassinado no Doi-Codi do Recife, em 28 de outubro de 1973, junto com o colega de AP, José Carlos Novais da Mata Machado. Mariluce e Gildo foram presos em Salvador, dias antes, e ela nunca mais viu seu companheiro. Na prisão, descobriu que estava grávida.

Os restos mortais de Gildo jamais foram encontrados. A família segue cobrando do Estado brasileiro, informações.

Também presente na caminhada, estava Dorival da Mata Machado, filho de José Carlos Novais da Mata Machado.

“A violência do passado violento, que durou 21 anos, fundamenta outras violências, como a das milícias, das PMs e outras máfias. Não houve julgamento público, nem reconstrução da verdade histórica, nem justiça, nem reparação”, lembrou Mariluce.

Representantes da torcida organizada “Democracia Corinthiana”, e “Porcomunas”, do Palmeiras, estavam presentes.

O silêncio caminhando

Às 18h, quando encerraram as falas, a multidão ocupou as duas faixas da rua Tutoia. Bandeiras, faixas, cartazes eram as mensagens possíveis. O silêncio respeitoso tomou conta da caminhada, de menos de dois quilômetros, até o Parque do Ibirapuera. Muitas velas foram acesas.

Ao chegar no Monumento aos mortos e desaparecidos político, obra de Ricardo Ohtake, havia violão e canto. Flores foram colocadas no local.

A pernambucana Manuela Mirella, presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), falou sobre a destruição da sede da UNE, logo após o golpe de 1964, e reforçou a necessidade de manter a memória.

No último ato da caminhada, foram lidos, em voz alta, 30 nomes de pessoas assassinadas pela ditadura, e 30 nomes de vítimas da violência policial do governo Tarcísio de Freitas, especialmente na Baixada Santista.

Após cada nome, a resposta era em uma só voz:

“Presente!”

A ideia do movimento é atualizar as lutas do passado, com as do presente.

Só este ano, 54 pessoas da Baixada foram mortas pela Polícia Militar do estado.

No dia em que entidades de direitos humanos, familiares de mortos e desaparecido e diversas organizações realizaram a quarta Caminhada do Silêncio.

Foto de um homem idoso, de barbas e cabelos grisalhos, segurando uma foto e uma vela acesa durante um evento noturno ao ar livre. O indivíduo com o rosto nas sombras segura uma fotografia em preto e brando de um rapaz. O ambiente é sombrio e sério, possivelmente indicando que se trata de uma vigília ou um evento memorial. As árvores e o céu escuro podem ser vistos ao fundo, iluminados pelas luzes do evento.

Marcha silenciosa terminou na frente do quartel da 2ª Região Militar, no Ibirapuera

Crédito: Paulo Pinto/Agência Brasil

AUTOR
Foto Samarone Lima
Samarone Lima

Samarone Lima, jornalista e escritor, publicou livros-reportagens e de poesia, entre eles "O aquário desenterrado" (2013), Prêmio Alphonsus de Guimarães da Fundação Biblioteca Nacional e da Bienal do Livro de Brasília, em 2014. Em 2023, seu primeiro livro, "Zé", foi adaptado para o cinema.