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Foto de um ponto de ônibus com várias pessoas esperando em um dia de sol intenso. Acima do abrigo do ponto de ônibus, há um grande painel publicitário eletrônico vermelho exibindo um anúncio da Bradesco. O ponto de ônibus está localizado próximo a uma calçada larga e uma rua, com água visível ao fundo, sugerindo que está perto de um corpo d’água. Edifícios históricos baixos do Bairro do Recife e postes de luz podem ser vistos ao fundo sob um céu claro.

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

“Paradas gamers”: boas para propaganda, ruins para esperar ônibus e ameaças ao patrimônio histórico

Maria Carolina Santos / 11/04/2024

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo
Leitura rápida

  • Após denúncia do IAB-PE, o Iphan solicitou a retirada de parada de ônibus com painel publicitário por atrapalhar a vista de prédios tombados do Bairro do Recife. 
  • A empresa responsável, KallasMidia OOH, diz apenas que ganhou licitação do Consórcio Metropolitano de Transporte (CTM) e que está em conformidade com o edital.
  • O contrato da licitação prevê que a empresa faça a gestão das paradas por 20 anos e invista R$ 200 milhões, com exclusividade na exploração da publicidade nos equipamentos.
  • Governo do Estado também recebe, por contrato, 1,75% da receita bruta de publicidade. Neste ano, a previsão é de receber R$ 12,5 mil.
  • Outros lugares com bens tombados e históricos também estão com as novas paradas, como a Igreja de Santo Antônio, no centro do Recife, e o sítio histórico de Igarassu. 
  • Especialistas defendem que o Estado é quem deve ser o protagonista neste tipo de concessão. E que as paradas deveriam ter um desenho que se adequasse à paisagem urbana dos bairros do Recife.

  • Usuários também reclamam do calor e das chuvas nas paradas. Banco é estreito: 50% menor que as paradas antigas, que seguem sem manutenção.

Elas estão se espalhando por toda a Grande Recife. São escandalosas: grandes, vermelhas, luminosas. Algumas têm grandes painéis publicitários no topo ou ao lado, mas bancos muito estreitos. Sob o sol, tudo fica muito quente, fervendo. As novas paradas de ônibus da Região Metropolitana do Recife já receberam o apelido de “paradas gamers” pela semelhança com as cadeiras e monitores que jogadores de videogame usam. E devem ser mais de 3,65 mil até o final deste ano. Anunciadas como paradas “modernas”, trouxeram pouco – ou nenhum – benefício para o usuário de ônibus.

E agora ameaçam também o patrimônio histórico e cultural do Grande Recife.

Na avenida Martins de Barros, na altura do Cais de Santa Rita, antes de se avistar o belo casario histórico do Bairro do Recife, surge uma parada de ônibus cheia de luzes com um gigantesco painel publicitário em cima dela.

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) considerou o equipamento como uma interferência não apenas em relação ao conjunto arquitetônico, urbanístico e paisagístico do Bairro do Recife, mas também à visibilidade da Igreja Madre de Deus, outro patrimônio tombado. E pediu a retirada da parada e do painel.

Em nota técnica, o Iphan se refere a um estudo anterior para afirmar que a “…a fachada frontal dos imóveis localizados na avenida Martins de Barros devem permanecer livres de quaisquer novas edificações, apenas passíveis de arborização, implantação de mobiliário urbano e ciclovias que não interfiram negativamente na visibilidade dos bens tombados”.

Na defesa ao pedido de retirada do painel, a Kallas se limita a afirmar que ganhou a licitação, que foi auditada pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE). A Marco Zero solicitou uma nota à empresa sobre a defesa e perguntando se há algum modelo de parada voltada para áreas históricas. A resposta da empresa foi na mesma linha: “KallasMidia OOH possui contrato de concessão junto ao CTM cujas obrigações incluem a instalação do abrigo de ônibus na avenida Martins de Barros, em Recife, em total conformidade com o edital licitado. Ainda assim, a empresa está sempre disposta a colaborar com os órgãos públicos para atender novos direcionamentos em prol do melhor para a população pernambucana”.

O Iphan ainda está analisando a defesa da Kallas.

Concessão por 20 anos

 As novas paradas fazem parte de uma parceria público-privada. Foi a empresa de publicidade Kallas Mídia OOH quem ganhou em 16 de dezembro de 2022, últimos dias do mandato de Paulo Câmara, a concessão de 20 anos do Consórcio Metropolitano de Transporte (CTM). A licitação foi organizada pelo Programa de Parcerias Estratégicas da Secretaria de Planejamento, Gestão e Desenvolvimento Regional (Seplag-PE) do Governo do Estado.

O contrato inclui 3.650 pontos de embarque e desembarque de passageiros em 14 munícipios da RMR, são eles: Abreu e Lima, Araçoiaba, Cabo de Santo Agostinho, Camaragibe, Igarassu, Ilha de Itamaracá, Ipojuca, Itapissuma, Jaboatão dos Guararapes, Moreno, Olinda, Paulista, Recife e São Lourenço da Mata. 

Pelo contrato, a empresa fica responsável pela instalação, manutenção e conservação de “abrigos e totens indicativos de pontos de embarque e desembarque, com substituição gradual dos existentes”. Em troca, tem exclusividade na exploração publicitária e em “receitas acessórias nos mobiliários urbanos”. A  concessão prevê que, ao longo dessas duas décadas, a Kallas invista R$ 200 milhões na instalação e manutenção dessas paradas. A requalificação de todas as 3.650 paradas deve acontecer em até seis anos.

Pelo contrato, o Governo do Estado recebe um valor mensal equivalente a 1,75% da receita operacional mensal bruta da publicidade dos painéis nas paradas de ônibus. De acordo com dados disponíveis no Portal da Transparência, a exploração do patrimônio imobiliário rendeu ao Consórcio de Transportes da Região Metropolitana do Recife apenas R$ 6.149,76, mas já representa 49% do valor previsto para o ano, que é somente R$ 12,5 mil.

A crítica do IAB

A denúncia sobre a irregularidade da parada veio do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) em Pernambuco. O arquiteto e urbanista Augusto Ferrer, presidente da entidade, considerou a defesa da Kallas no processo do Iphan um ultraje. “Estão usando o espaço sem considerar a história da cidade. É um tombamento federal, então deveria interessar aos empresários também, enquanto brasileiros. O bairro do Recife é um tombamento federal, a Madre de Deus também. Uma lei federal não pode ser ignorada por conta de uma licitação”, pontua.

Ferrer também questiona o tamanho dos painéis. “O termo de referência para a contratação colocava que era uma área de um pouco mais de três metros quadrados para publicidade. Mas é muito curioso que a proposta vencedora consegue botar sete metros quadrados de área de publicidade”, critica.

Pelo contrato, a Kallas tem que dispor de quatro modelos de paradas. mas elas não diferem muito entre si: a diferença está mais onde estão – ou na inexistência – dos painéis publicitários. Ferrer considera que essa é uma boa medida, mas falta considerar outros aspectos. “Do ponto de vista do mobiliário urbano, que é uma coisa replicável, é interessante que ele seja modular. Agora, considerando que é uma licitação para a Região Metropolitana inteira, não é só Recife, talvez devesse ter sido mais bem estudada, de acordo com a legislação de cada lugar”, afirma.

E não é só na Martins de Barros que a “parada gamer” “está gerando controvérsias e reclamações de órgãos de preservação. O tema já foi abordado durante reunião, ainda no ano passado, do Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural de Pernambuco (CEPPC/PE). A representante da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), Célia Campos, levou à discussão a parada com painel publicitário localizada em frente à Igreja de Santo Antônio, também no centro do Recife. Porém, de acordo com nota da Fundarpe à Marco Zero, “não houve pedido formal por parte da instituição ao Grande Recife Consórcio de Transporte para a retirada da parada de ônibus”.

Bancos antimorador de rua

A primeira impressão do estudante do Ensino Médio Giovanni dos Anjos, 17 anos, foi de que as paradas eram bonitas e inovadoras. “Só que, por conta do Enem, eu estudei um pouco mais e vi que tem um motivo mais profundo para os bancos serem tão estreitos: é para evitar que pessoas sem teto durmam nas paradas. Aí eu fiquei incomodado”, reclamou Giovanni. “Também não tem nenhum serviço, fora o clima e a hora. Seria interessante que não fosse só propaganda, tivesse também o itinerário dos ônibus, por exemplo”, critica.

Em alguns dos muitos modelos antigos – quase duas dezenas – a largura do banco era de mais ou menos 50 centímetros. Nas paradas atuais, é de exíguos 22 centímetros. A mudança do visual das mais de 3 mil paradas de ônibus foi tema de um debate na escola de Giovanni. “Alguns professores falaram que a mudança foi desnecessária. Só foi pra ficar bonitinho, sem nenhum benefício”, reclamou.

Foto de um rapaz negro, de barba rala e cabelos pretos cacheados, em pé em um ponto de ônibus moderno durante o dia. O ponto de ônibus tem uma estrutura com um teto vermelho perfurado, permitindo a passagem de luz, mas oferecendo sombra. Ao lado da pessoa, há um anúncio digital montado na estrutura do ponto de ônibus, exibindo texto e parte de uma imagem que não estão totalmente visíveis. O rapaz está vestindo uma camiseta branca do uniforme das escolas públicas de Pernambuco com detalhes coloridos nos ombros e nas mangas, e há texto na frente da camiseta. Além disso, o jovem carrega uma mochila nas costas. Ao fundo, vemos árvores e um céu claro, indicando que é dia.

Giovanni reprovou bancos desconfortáveis para o uso pessoas sem teto

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Do outro lado da avenida Norte, no bairro da Macaxeira, a dona de casa Ana Maria da Silva, 58 anos, espera o ônibus debaixo de uma árvore, a poucos metros de uma das novas paradas de ônibus. Ela não é contra a mudança. “Tinha que mudar, a gente estava vendo a hora das outras paradas caírem em cima da gente. Mas poderiam ser paradas mais fresquinhas. E quando chove também fica ruim: a gente se molha do mesmo jeito”, afirmou. Ela só sabe que o ônibus dela passa nesta parada porque mora perto dali: nos painéis digitais não há nenhuma informação sobre as linhas que param ali.

A Marco Zero entrou em contato com a assessoria de comunicação do Grande Recife Consórcio de Transporte, mas não obteve respostas. Por meio de um pedido pela Lei de Acesso à Informação, o órgão informou que ao todo existem 7.379 pontos de embarque e desembarque em campo e que, até o final de janeiro, a Kallas havia instalado 467 paradas das 3.650 da concessão.

A previsão é de que sejam instalados de 42 a 61 equipamentos por mês, podendo variar para mais ou menos. De acordo com o Grande Recife, as demais paradas de ônibus também vão seguir o mesmo modelo de parceria público-privada, em edital que ainda será lançado.

O órgão também confirmou que existem apenas quatro modelos de paradas. E que o centro histórico de Igarassu já recebeu paradas das Kallas. “O projeto foi aprovado pelo CTM, e atém aos padrões mínimos, podendo ser alterado, de acordo com a necessidade encontrada”, afirma o órgão.

O Grande Recife ainda afirma que os “equipamentos terão os nomes das linhas que fazem parada no local”, mas não explica como está se dando essa fiscalização, já que o mais comum é encontrar várias paradas sem essa informação básica.

O órgão também informou que das 3.650 paradas de ônibus do contrato com a Kallas estão previstos “no mínimo”, 118 pontos de wi-fi que serão instalados em locais com maior necessidade para população, “como hospitais, escolas e delegacias”, diz a resposta à LAI.

Relação desequilibrada

Para o arquiteto e urbanista Zeca Brandão, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o problema não está no modelo de gestão. “As parcerias público-privadas são importantes, mas o protagonismo tem que ser do setor público. Porque se ele for do privado as prioridades se invertem, o lucro fica na frente e o público vai a reboque do privado. Então, essas parcerias que se faz aqui no Brasil – e a Copa do Mundo foi um exemplo disso – sempre se iniciam com o poder público ordenando o processo e, aos poucos, o poder privado vai liderando, vai virando protagonista na relação e aí vai começando a se beneficiar ou beneficiar mais o lucro”, diz.

“Não é aquela coisa de ser contra o capital, nada disso. Mas o protagonismo, em países mais desenvolvidos, fica no poder público. O privado entra, tira o dinheiro dele, tem o lucro dele, mas quem coordena e quem diz como vai ser a gestão, quem lidera, é o poder público”, acrescenta.

Foto de uma mulher idosa que está de pé na calçada, perto de um buquê de balões coloridos preso ao tronco de uma árvore. A mulher veste uma camiseta rosa e uma saia azul, e está usando sandálias. O rosto da mulher indica que ela está atenta, a espera de um ônibus. Ao fundo, há um prédio amarelo do outro lado da rua, e um motociclista se afastando.

Ana Maria prefere esperar ônibus na sombra da árvore

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Para Brandão, o problema é bem maior, da própria infraestrutura da mobilidade do grande Recife. “O sistema de transporte público dos ônibus está praticamente falido. Deveria estar dentro de um pacote de um planejamento urbano integrado, porque o transporte público tem uma função muito importante, que é direcionar o desenvolvimento urbano. É ele que vai dizer assim que Recife precisa crescer, precisa expandir”, afirma.

Um dos pontos que o urbanista aponta é o pouco subsídio do Estado que o sistema tem. “Se você for no transporte, por exemplo, de Londres, que é um transporte considerado bom, você tem de 40% a 70% de subsídio. Não é o valor do bilhete que viabiliza a operação. Aqui é praticamente o valor do bilhete. A cidade que mais tem subsídio no Brasil é São Paulo, e não passa de 20%. Aqui em Recife não deve chegar a 15%. Qual é o problema disso? É que, além de ficar um sistema muito frágil, porque fica dependendo do bilhete, fica muito guiado pela questão da demanda e oferta, que é a lei do mercado”, afirma.

Como deve ser uma boa parada de ônibus? Denise Morado, da UFMG, responde

Professora titular da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a arquiteta e urbanista Denise Morado coordena o grupo de pesquisa Praxis (Práticas sociais no espaço urbano) e escreveu publicações que questionam os controles das cidades. Em entrevista à Marco Zero, ela critica a falta de participação do cidadão nas decisões sobre a cidade.

Quais são as características fundamentais para uma boa parada de ônibus para os usuários?

Primeiro, é preciso compreender que parada de ônibus é parte da vida cotidiana, responsável pela conexão de pessoas a lugares. Por isso, requer características que tragam qualidade de vida para os cidadãos: confortável, segura, visível, acessível, iluminada e protegida do sol, vento e chuva, com lugar adequado para que o cidadão possa sentar e esperar o ônibus. É também mandatório que as paradas estejam bem dimensionadas e bem localizadas em relação às vias e aos passeios, e que incorporem painéis de informação sobre o transporte e o trânsito em tempo real. Necessário também que sejam de fácil manutenção e resistente à vandalismos, com uso de materiais e técnicas construtivas de boa qualidade e de rápida reposição.

Foto de Denise Morado falando ao microfone. Ela é uma mulher de meia idade, parda, de cabelos pretos encaracolados, com um brinco brilhante na orelha esquerda vestincco blusa ou vestido azul escuro com estampas de flores.

Professora Denise Morado

Crédito: Divulgação/UFMG

Como você vê empresas majoritariamente de publicidade assumindo a gestão de mobiliários urbanos em cidades brasileiras?

A palavra “gestão” tornou-se remédio contra os males da vida urbana, minimizando-se a responsabilidade do Estado como detentor da decisão política diante do interesse público, transferindo-a às empresas privadas. Na cidade contemporânea neoliberal, os cidadãos não fazem parte dos processos de tomada de decisão sobre o uso que se tem direito do espaço público.

Uma das características das novas paradas é também a diminuição da largura do banco. Foi dominuída em mais da metade em relação às paradas anteriores, tendo agora só 22cm de largura. Isso pode ser uma medida para evitar que a população de rua durma nos bancos de paradas de ônibus?

Tal dimensionamento é contrário às premissas da ergonomia e do conforto, sem dúvida de forma importante para os moradores de rua, mas também para qualquer cidadão. As características desse tipo de mobiliário urbano não surgem das necessidades dos cidadãos, mas dos interesses colocados pelas empresas privadas em associação com os governos locais: capitalizar o que é de todos.

Há também um gasto de energia elétrica nessas novas paradas, para alimentar os painéis publicitários e a iluminação. A preocupação com alternativas sustentáveis para o meio ambiente deveriam estar presente mais presentes nas soluções de mobiliários urbanos?

Qualquer ação nas cidades contemporâneas, em qualquer escala, desde o mobiliário urbano até as grandes obras viárias e edificações, devem obrigatoriamente se voltar para as melhores respostas em respeito ao meio ambiente. As ondas de calor recentes refletem o nosso desrespeito ao planeta, entre outras coisas. As propostas sustentáveis para projetos e obras nas cidades não podem ser nomeadas como alternativas, devem ser prioridades e mandatórias.

A foto captura uma cena urbana durante o dia. Uma pessoa está parada em um ponto de ônibus na calçada, esperando. Próximo ao ponto de ônibus, um carro preto está passando pela rua. O céu está claro e ensolarado, com algumas nuvens esparsas. Pela pouca largura das sombras, é possível deduzir que a foto foi feita em horário perto do meio-dia. Ao fundo, vemos edifícios coloridos e árvores.

Pontos de ônibus são foram anunciados como "modernos"

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo
AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org