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“Planejamento urbano tem de parar de cometer erros e começar a corrigi-los”, provoca urbanista português

Vítor Oliveira acredita que cidades mais densas contribuem para reduzir impactos ambientais

Maria Carolina Santos / 21/10/2024
Foto aérea de aglomerado de prédios da zona norte do Recife. na foto, se vê a linha do horizonte tomada por prédios, de vários tamanhos, e o céu azul no topo. O céu está azul, com poucas nuvens.

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

“Estamos à beira de um desastre climático irreversível”. É assim que começa o relatório do clima de 2024 publicado semana passada pela Universidade de Oxford e que reúne uma série de indicadores sobre as condições do planeta Terra. Com um começo desses, é desnecessário dizer que o que se segue não é nada animador. Para não piorar a situação, o relatório faz uma série de recomendações, como a diminuição do consumo de energia e de combustíveis, principalmente os fósseis.

Referência no estudo da morfologia urbana – a forma física das cidades e o modo como essa forma vai sendo transformada ao longo do tempo pela ação de diferentes agentes – o urbanista português Vítor Oliveira, professor da Universidade do Porto, agora vem pesquisando como as cidades podem contribuir para diminuir os impactos das mudanças climáticas.

“A morfologia urbana nos permite perceber qual é o impacto que a forma urbana tem nas alterações climáticas, ou seja, há aspectos da forma física das cidades que não têm qualquer influência nas alterações climáticas, mas há outros aspectos que têm bastante influência”, afirma Oliveira, que é autor do livro Morfologia Urbana: um estudo da forma física das cidades, da editora Pucpress.

O pesquisador lembra que uma das questões-chave para diminuir os impactos do ser humano na Terra é a necessidade de mudar os nossos padrões de vida. “É absolutamente fundamental reduzirmos o consumo de energia”, disse, em entrevista à Marco Zero. “Há formas urbanas que nos levam a consumir mais energia. Um nível é o dos transportes, como nós gastamos energia para nos movermos na cidade. Há cidades que quase nos obrigam a usar o automóvel, onde os moradores são dependentes do automóvel. Há outros tipos de cidade em que o modo como as diversas peças estão combinadas nos permitem – obviamente, depois temos que querer –, andar a pé, de bicicleta, de transportes públicos, consumindo menos energia”, destaca.

Foto do urbanista e referência na morfologia urbana Vítor Oliveira. É um homem branco de cabelo preto curto e óculos, de meia idade. Na foto, ele está sentado, de camisa branca, e gesticula com um braço e segura um microfone com a outra mão.

Vítor Oliveira aponta densidade e diversidade como fatores importantes das cidades contra a crise climática.

Crédito: Divulgação/Pucpress

O pesquisador aponta outro fator para diminuir o consumo de energia, que é o modo como as construções estão organizadas pela cidade. “Geralmente, se forem prédios altos e isolados uns dos outros vão ter uma maior superfície exposta e eventualmente vão levar a maiores consumos energéticos”, afirma. “Mas, por exemplo, o fato de termos uma grande densidade de prédios pode levar a uma organização da cidade em que seja mais fácil instalar uma rede de transporte público e aí já podemos ter um menor consumo energético. Por isso, estas questões nunca são a partir de generalizações”, explica.

Para Vítor Oliveira, a densidade é a principal característica para que uma cidade consiga um menor impacto para as mudanças climáticas. “Dificilmente nós vamos encontrar uma cidade que seja toda ela um bom exemplo ou um mau exemplo. Mas a densidade é a característica que mais determina as questões fundamentais da nossa cidade. Porque, de fato, quando nós aumentamos ou quando baixamos a densidade dos vários elementos da forma urbana é quando nós mudamos mais dramaticamente a forma das cidades, para melhor ou para pior”, afirmou.

Depois da densidade, o pesquisador elege a diversidade como o segundo ponto chave para uma cidade enfrentar a crise climática. “A diversidade de pessoas, em termos de raça, em termos de gênero, em termos de orientação sexual, de idades. A diversidade é um aspecto que devemos valorizar. E não só em termos sociais, mas também econômicos. Podemos também passar esta leitura das pessoas para as empresas e ter uma série de atividades econômicas bastante diferentes. Tudo isto contribui para a riqueza de uma cidade”, comenta.

Planejamento demais pode prejudicar

O pesquisador não conhece o Recife, mas aponta Brasília como uma cidade que tem sérias dificuldades para ser resiliente frente às mudanças climáticas. “Na morfologia urbana nunca há um modelo de cidade que todas as outras devem tentar seguir. Há uma série de fatores estabelecidos nas cidades ditas tradicionais que em Brasília não existem. Lá, temos edifícios com elementos similares e densidade muito baixa. Por exemplo, há a separação absoluta de funções (moradia, serviços, comércio), com o planejamento controlando tudo, não deixando espaço nenhum para os outros agentes participarem”, critica.

“Brasília é uma cidade muito especial, a nível mundial. Ela foi a concretização de um sonho que propunha romper completamente com a forma como se fazia cidade até então. Por os edifícios terem uma densidade muito baixa e estarem todos afastados uns dos outros, se eu morar em Brasília, eu não consigo fazer nada sem carro. Os transportes públicos são difíceis”, acrescenta.

Como não se faz nada sem carro em Brasília, gasto de energia é maior

Outro ponto que o pesquisador chama atenção sobre a capital do Brasil é de que não há disponibilidade para a mudança. “O Plano Piloto é classificado como Patrimônio da Humanidade e isso não permite alterações. É uma questão-chave na adaptação às alterações climáticas nós podermos ir mudando os pedaços das cidades. Quando as cidades são feitas de vários pedaços, é mais fácil mudar. Quando são feitas de grandes blocos, como acontece em Brasília, a mudança é muito difícil. Por Brasília ser tombada, é impossível a mudança.”

Vítor Oliveira defende que as cidades devem ter espaço para crescerem e encontrarem suas próprias estratégias, organicamente. “Não me parece que o planejamento seja a garantia de uma boa cidade e desconfio muito de visões em que o planejamento controla tudo. O planejamento pode ajudar a evitar a construção em alguns lugares que são vulneráveis. Isso posto à parte, eu acho que os assentamentos informais têm muito a ensinar ao planejamento: porque o planejamento, a partir de dada altura, caminhou para um conjunto de preocupações que foi se isolando bastante do que a maioria das pessoas quer. Foi-se tornando uma disciplina cada vez mais fechada em si mesmo. E foi deixando de dar às cidades uma série de qualidades”, acredita.

As soluções que as periferias encontram

Se um planejamento urbano tão fechado quanto o de Brasília deixa pouco espaço para mudanças necessárias, as periferias das grandes cidades podem oferecer soluções para uma convivência menos traumática com as mudanças climáticas – desde que já tenham resolvido questões importantes, como o saneamento e o risco de deslizamentos e enchentes.

“Sem qualquer visão romântica do que as favelas são, imagino o quão duro deve ser viver nelas, acho que elas têm muito para ensinar ao planejamento”, afirma. “Eu tenho de confessar que não vejo as periferias de um modo muito diferente dos centros. Obviamente que há diferenças. Mas, para mim, as questões mais importantes são comuns. Quando eu passo dos centros para as periferias, normalmente, uma diferença importante é que os centros tiveram mais tempo para crescer. Para ir, aos poucos, encontrando as melhores formas para responder às necessidades da população. E as periferias tiveram que fazer isso mais depressa.”

O professor defende que a remoção de comunidades para obras deve ser realizada somente em último caso. “Eu acho que a remoção de uma comunidade acarreta sempre alguns riscos porque pode provocar o seu desenraizamento e, normalmente, no novo espaço para onde ela se muda faltam uma série de coisas que existiam no primeiro. Obviamente, se o risco de desastre natural for muito forte, a remoção deve acontecer. Mas adaptar, corrigir e minimizar o risco parece-me uma solução muito mais interessante”.

Parar de errar e começar a corrigir

Oliveira não acredita em índices que avaliam se as cidades têm uma morfologia mais ou menos adaptada para enfrentar as mudanças climáticas. “Existem uma série de métodos que permitem medir uma série de questões que são relevantes para a morfologia urbana. Eventualmente haverá colegas meus que conseguem condensar isso num índice que nos dá um número único. Mas, pessoalmente, acho isso um bocado perigoso. As cidades são muito complexas para haver um instrumento que me permita dizer que São Paulo vale 5.6 e Recife vale 3.4, por exemplo. Acho que as coisas são demasiado complexas para serem reduzidas a um número. As generalizações são perigosas”, afirma.

O que o pesquisador defende é que as cidades façam estudos aprofundados para avaliar suas características. “Os casos têm que ser analisados concretamente para podermos ser rigorosos nas afirmações. A morfologia urbana tem uma série de teorias, de conceitos e métodos que nos permitem analisar qualitativamente ou medir quantitativamente uma série de aspectos que nos interessam e que variam de estudo para estudo”, diz.

“A primeira coisa que me parece importante, quando falamos de alterações climáticas, é que o planejamento deveria ser capaz de parar de produzir erros. Ou seja, nós continuamos a fazer mal. E muitas das coisas que fazemos mal, são difíceis de corrigir”, diz. “O segundo passo é tentar começar a corrigir aquilo que foi mal feito, quando não era uma preocupação a questão das alterações climáticas. Por isso há esses dois passos: parar de fazer mal e começar a corrigir”, enumera.

E, com esses diagnósticos em mãos, as cidades devem agir. E logo. “É muito comum uma prefeitura, em qualquer parte do planeta, com um discurso que está alinhado com o conhecimento científico sobre as alterações climáticas, mas com ações que têm muito pouco a ver com o discurso, seja nos projetos que desenvolve diretamente, seja regulação da atividade privada. Continua-se a permitir uma série de erros que depois são muito difíceis de corrigir. Por isso acho que a questão fundamental é termos uma ação coerente com o nosso discurso. É muito importante uma liderança ao nível central dos nossos diversos governos que motive e que conduza as pessoas nesse sentido”, afirma.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org