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Absoluto mainstream: os desafios da curadoria de cinema na era dos algoritmos

Marco Zero Conteúdo / 24/01/2025
Essa é uma foto da sala de cinema da UFPE. Ela contém várias fileiras de cadeiras acolchoadas, organizadas em um formato que desce em direção a uma grande tela branca localizada à frente. As paredes têm revestimento em tons escuros, e a iluminação é suave, com luzes nas laterais. Ao fundo, próximo à tela, é possível observar uma porta de saída de emergência com uma placa indicativa.

Crédito: Divulgação/UFPE

por Marcelo Costa*

Em tempos em que as políticas de visibilidade assumem o protagonismo no campo de batalha da estética, não deixa de ser sintomático observar o fenômeno da universalização do gosto e do desejo. Como se a partilha de experiência – que antes de tudo deve ser midiática – adensasse-se sobre a última série do streaming da moda, o filme que tomou 60% das salas comerciais de cinema em shoppings, assim como o novo fenômeno pop da indústria do entretenimento. Talvez a palavra indústria sequer faça mais sentido. Afinal, desde o declínio de uma tradição do pensamento crítico, a ideia de uma “indústria cultural”, uma engrenagem de poder alienante e capaz de moldar gostos e sensibilidades caiu em desuso e tornou-se quase obsoleta.

Contudo, se por um lado o enfrentamento do conceito de indústria cultural permitiu realçar as nuances elitistas, racistas, e eurocêntricas do que se entendia por alta cultura, por outro, o relaxamento de um pensamento crítico parece ter produzido a crença ilusória de que produzimos e consumimos bens
culturais de acordo com uma livre, espontânea e imaculada expressão do gosto. Como se não houvesse estruturas de poder envolvidas na disputa por espaços de produção, visibilidade e hegemonia.

Isso se torna especialmente importante em tempos em que a política de visibilidade aparece regida pela lógica dos algoritmos. Quase uma entidade, tal como “o mercado”. É salutar lembrar que detrás dessas alcunhas há um expressão do capital, muito bem coordenada e controlada por (poucos) homens, que multiplicam suas fortunas e suas zonas de influência. Parece óbvio, mas com a vida contemporânea regida por uma máquina de divulgação e distribuição que sobre determina o que devemos ver e ouvir e, portanto, elege o novo fenômeno midiático, a nova experiência partilhável, o novo discurso de
ódio, o papel da curadoria assume uma responsabilidade ainda maior como alternativa no jogo de disputa das políticas de visibilidade. Sobretudo quando envolvem políticas e espaços públicos.

A discussão recente sobre a programação do Cinema da UFPE parece ilustrativa nesse sentido. Afinal, qual o papel que um cinema universitário, público e gratuito deve assumir neste mapa de guerra?

Não dá para ignorar o clamor para a programação de filmes “populares”, sucessos de bilheteria que
ocuparam mais da metade das salas comerciais do Grande Recife com orçamentos rotundos e estratégias agressivas, e que logo dominam os algoritmos das plataformas de streaming e as sessões da TV, como forma de democratizar o acesso. Mas será que isso é dar conta de um gesto democrático, apenas? Um mundo em que todos veem e ouvem o que a curadoria dos algoritmos nos impõe, e de alguma forma universaliza um punhado de obras que todos devem acessar? Ou seria a expressão da vertente
estética de um pensamento totalitário? As únicas experiências partilháveis possíveis: se você não assistir, não toma parte do mundo.

De outra parte, não se ouve um sussurro sequer para o fato de que uma infinidade de filmes, brasileiros inclusive, menos conhecidos e de menor estrutura de divulgação e distribuição, porém instigantes e potentes ao apontarem novas vozes, novos olhares, novas possibilidades de reconhecimento/identificação e novas linguagens, não aportem numa única sala de exibição do circuito comercial. Ou dependam exclusivamente das salas públicas e do circuito alternativo, seu último reduto.

Claro que isso exigiria uma consciência de um contexto que é pouco dado a conhecer. Por que ninguém
questiona a ausência desses filmes nas inúmeras salas comerciais, mas pressionam as pouquíssimas salas do circuito alternativo a programarem filmes que tiveram mais de 1.500 sessões, e estão amplamente difundidos em serviços de streaming e logo estarão na TV aberta? A desproporção de forças é imensa, um abismo. O que justifica uma legião “voluntária”, quase uma turba, que reage duramente à mínima resistência à exibição de filmes mainstreans em salas do circuito alternativo sob a pecha de “elitismo”? Acusação que traz subjacente uma boa dose de cinismo e um quê de chantagem, se não de quem
a profere ou reproduz, da estrutura que leva à essa dedução. Afinal, pouco importa o perfil e o conteúdo dos filmes que vinham sendo programados, a simples recusa de recorrer aos fenômenos de mídia é suficiente.

Esse cenário insinua outros questionamentos: o que determina que o compromisso para que um filme mainstream atinja o último ser humano da face da terra seja mais legítimo e urgente do que assegurar uma visibilidade mínima a outros filmes, outras linguagens, e não relegar uma potente e vigorante
produção ao ostracismo ou esquecimento? O que sustenta esse apetite insaciável, uma voracidade que não descansa até que todos vejam a mesma coisa? Obviamente que há um efeito retórico aqui, e as pistas estão insinuadas ao longo do texto. Nada impede, desde que haja um sentido, e de forma
equilibrada, que as salas do circuito alternativo ofertem filmes atrativos e midiaticamente reconhecidos para o público, mas pensar uma programação regida nesses termos é replicar a lógica excludente do mercado, que define quem terá visibilidade e quem será jogado ao relento. E mesmo dentro dos
filmes de grandes corporações e distribuidoras há nuances que precisam ser consideradas quando se vai pensar uma programação.

A questão é complexa, portanto, e envolve até mesmo as plataformas de streaming e suas formas de promoção e apresentação do conteúdo. Mesmo filmes de menor estrutura de distribuição, que por uma eventual carreira em festivais e reconhecimento de crítica, conseguem vencer a zona de invisibilidade e são adquiridos pelos serviços de streaming, muitas vezes são relegados ao limbo, escondidos pelas políticas de visibilidade dos algoritmos, e dificilmente encontram um lugar ao sol. Uma forma de desprover a concorrência e proceder com uma estratégia de silenciamento. E não, não é
gratuito, nem tampouco aleatório.

Então, pensar o perfil curatorial de programação de uma sala pública vai muito além do reducionismo simplório se determinado filme é bom ou ruim, ou se vai ser suficientemente atraente para o público. O papel da curadoria tem sua complexidade, é preciso acessar um repertório vasto e diverso, conhecer as políticas predatórias de distribuição envolvidas nessa equação, o perfil dos filmes e das distribuidoras, pensar estratégias e o desenho do que se quer propor, e como os atores sociais estão dispostos no tabuleiro do jogo de visibilidades.

É lógico que é bonito e gratificante ver uma sala de cinema apinhada de gente, com uma plateia vibrante, mas a serviço de quê? De reiterar uma lógica excludente, embasada no lema “hands across mainstream”? Do reconhecimento de uma crença ingênua de que esses fenômenos são a livre expressão do gosto e do desejo que se universalizaram? Ofertar outras formas de ver e sentir o mundo, num mosaico de diversidade – de cinematografias, de temáticas, de culturas e linguagens – e com a capacidade de opor alguma resistência ao fluxo principal, de produzir algum tipo de estranhamento e reflexão crítica é ainda uma tarefa urgente.

Talvez seja necessária uma retomada crítica do pensamento crítico ou uma refundação em novas bases, mas sua negação traz consequências catastróficas num mundo regido pelas big techs, pelos conglomerados de mídia e a amplificação do seu alcance pelos algoritmos das redes sociais. Os sinais estão dispostos à fartura, na vida cotidiana, na política. A estremecida dos pilares da estética decerto cumpriu um papel importante, ao destituir os juízes do “bom gosto” e o seu arcabouço de exclusão. Ao mesmo tempo, parece ter gerado zonas de imunidade crítica ao que se convencionara chamar de consumo de massa; o mainstream reina absoluto e ai de quem confrontá-lo.

E falar em democratização sem considerar todo o contexto das políticas de visibilidade e consumo é libertar o animal de cativeiro aos predadores da vida selvagem. As mesmas vozes insurgentes que se se fizeram ouvir, podem padecer agora pela falta de escuta e visibilidade. Cabe a nós fincarmos as bases.

* Marcelo Costa é professor e coordenador do Curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

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Marco Zero Conteúdo

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