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O passo a passo de uma barbárie anunciada

Inácio França / 04/02/2025
A imagem é uma vista aérea de um grande número de pessoas aglomeradas em uma calçada, cercadas por vários policiais e viaturas. As pessoas parecem estar sem camisa e algumas estão com as mãos para cima. Há uma cerca metálica ao lado da calçada e, do outro lado da cerca, há um prédio com uma área verde. Na rua, há várias viaturas policiais estacionadas, e alguns policiais estão em pé, observando a multidão. A cena parece ser de uma operação policial ou uma manifestação.

Crédito: Reprodução

Quando se cruza as informações oficiais repassadas pelas autoridades de segurança de Pernambuco com vídeos postados nas redes sociais, áudios trocados entre integrantes das torcidas organizadas de Santa Cruz e Sport, e relatos de quem participou do confronto, é possível traçar a cronologia dos fatos e a dinâmica que levaram centenas às cenas de violência e crueldade nas ruas da Madalena e Torre, sábado, antes do Clássico das Multidões.

  • O furto dos instrumentos musicais

O embate que quase acabou em tragédia começou a ser desenhado na noite da quinta-feira, 30 de janeiro, para a madrugada da sexta-feira, 31, quando integrantes da Explosão Inferno Coral furtaram uma faixa e 10 instrumentos de percussão que estavam guardados na casa de um integrante da Torcida Jovem do Sport conhecido como “Jeba”.

Não houve violência no episódio, pois “Jeba” teria sido distraído em uma “balada” com vizinhos enquanto os rivais entraram em sua casa e levaram os objetos. No universo dos torcedores organizados, quem se apodera de peças como instrumentos musicais, faixas, bonés e bandeiras dos adversários costuma exibi-los como troféus. É uma humilhação para quem os perde.

  • Sexta-feira de expectativa

A informação do furto da bateria espalhou-se pelas mídias sociais imediatamente. Na sexta-feira, véspera do clássico entre Santa Cruz e Sport, a expectativa na cidade era de que os rubro-negros da Jovem fossem à forra contra os tricolores da Explosão Inferno era grande entre o público que acompanha futebol.

Às 11:37min daquele mesmo dia, a organizada do Santa Cruz protocolou ofício no Batalhão de Choque da Polícia Militar informando que seus integrantes iriam se reunir em dois pontos da Região Metropolitana do Recife: na avenida Caxangá, perto do terminal integrado, e no centro de Jaboatão, de onde um ônibus saiu em direção ao estádio do Arruda pela BR-101. As organizadas chamam de “bondes” essas concentrações de componentes.

  • Correria em Prazeres

A manhã de sábado começou com a circulação nas redes e no whatsapp de vídeos de correrias provocadas entre grupos de torcedores nos bairros da Muribeca e Prazeres, em Jaboatão dos Guararapes. Um áudio de um dirigente da Jovem da zona sul que viralizou na segunda-feira, 3 de fevereiro, explica o que aconteceu: “a gente varreu os caras em Prazeres”. Traduzindo: os integrantes da Jovem perseguiram e colocaram para correr os torcedores corais naquele bairro.

  • A suposta invasão da Ilha do Retiro

Por volta das 10h, centenas de integrantes da Inferno que estavam concentrados na confluência da avenida Caxangá com a BR-101 iniciam o deslocamento a pé até o bairro da Madalena, onde dobrariam à esquerda para o Arruda. De acordo com Adriano Costa, ex-coordenador da Associação Nacional das Torcidas Organizadas (Anatorg) apenas uma viatura da PM, com quatro homens acompanhavam o “bonde”.

A “marcha” da Inferno pela Caxangá incomodou a Jovem. É o que deixa claro um texto atribuído a Arthur Renato, o “Major Renatinho”, ex-presidente da organizada, afastado por suspeita de envolvimento no ataque ao ônibus dos jogadores do Fortaleza em 2024: “Por erro de planejamento, emoção e empolgação pra ‘cobrar’ a fita da bateria ou até mesmo pra não deixar os caras marcharem na Caxangá, avenida que somente a jovem marcha, os cabeças decidiram ir de encontro com a caminhada deles”.

  • Correndo para o confronto

Àquela altura, havia o temor de que aquele grupo que caminhava pela Caxangá sem escolta policial estivesse, na verdade, se dirigindo à Ilha do Retiro onde atacariam a sede do clube rival.

Esse mal entendido precipitou a decisão de conduzir o grupo que tinha se aglutinado na Ilha a seguir em direção à Madalena para enfrentar os tricolores. A decisão teria sido tomada unilateralmente por João Victor Soares da Silva. No áudio, o dirigente da zona sul acusa João de ter sido “irresponsável por colocar sua vida e a dos componentes em risco” e que “ele não acata a opinião dos outros”, “tem de ser sempre do jeito dele”.

Então, 150 homens vestidos de amarelo e carregando barras de ferro, alguns usando capacetes, percorreram quase dois quilômetros a passos rápidos em uma região das mais movimentadas sem serem incomodados pela polícia.

Esse relato e as imagens em vídeo desmentem o secretário de Defesa Social, Alessandro Carvalho. Segundo ele, “o grupo não foi visto, ele estava escondido e começou a atacar”.

  • O início do confronto

O texto atribuído a Arthur Renato, “Bonde do Major”, descreve com clareza o início do confronto, por volta das 11h: “Nos encontramos com eles na Real da Torre (…) Fica a mais ou menos 30 minutos andando da Ilha do Retiro. Rapaziada foi andando em passos rápidos pra conseguir chegar antes e estar preparado pro primeiro embate”.

“Chegamos bem dizer na mesma hora, a polícia tava em número ínfimo e tentou segurar o bonde dos caras, mas não conseguiu e eles furaram o bloqueio. Esse foi o primeiro momento da briga, estávamos com duas girândolas e poucas caseiras. Ganhamos esse primeiro momento”.

Destacamos a frase “a polícia tava em número ínfimo”. Naquele momento, o “bonde” da Inferno tinha quase 1.000 pessoas, nos cálculos de Adriano Costa – ou 700, pela estimativa da polícia de Pernambuco.

vista aérea:

  • Cenas de guerra e crueldade

Atacados na Real da Torre, os tricolores da Inferno não revidaram instantaneamente. Se dividiram entrando nas ruas transversais: ruas Galvão Raposo, Manoel Bernardes e Antônio Vieira, a oeste; ruas Costa Gomes e José Bonifácio, a leste. Quando as bombas da Jovem acabaram, os tricolores se reagruparam e partiram para o contra-ataque.

As palavras de Arthur Renato, ou “Bonde do Major”, são mais eloquentes:

“…aí que perdemos a briga. Uma caseira deles atingiu o rosto do Th…, que conseguiu sair correndo e posteriormente foi resgatado, o mano tá com risco de perda de visão parcial de um olho. Além disso, não tava podendo se aproximar de torcida por ordem judicial, e por ter descumprido, vai pra cadeia novamente. Deve pegar uma cana pesada”.
(…)
“Daí pra frente foi só atraso. Imagina ter que correr 2, 3 km já cansado e tendo atrás de você um bonde revigorado e com motos na caça? Foi aí que pegaram todos, um por um. Moleque magro, com fôlego pra dar e vender teve que tentar pular grade e não conseguiu por conta de cansaço. Pra tanto que só teve 1 gordo que ficou fudido, de resto só rapaziada com condicionamento físico, e ainda assim não aguentou. Em resumo, quem não se escondeu ficou de exemplo”.

“Teve um parceiro que entrou numa loja de tintas e entrou um da Inferno atrás dele, dentro da loja trocaram porrada e o nosso mano derrubou o da Inferno, mas não conseguiu desmaiar. O cara saiu correndo e voltou com um bloco, não tinha mais pra onde o mano correr e virou lanche”.

“Teve mano se escondendo em loja, banca de jogo, restaurante, barbearia e afins. Pegaram menino de 16 anos, nosso bonde tava totalmente despreparado e com falha de logística”.

  • João Victor

Autor da ordem de ataque aos rivais, o presidente da Jovem, João Victor, estava predestinado a ser o principal personagem do confronto. Mesmo caído e desmaiado, continuou sendo espancado, teve sua roupa retirada e teve uma vara de bambu aparentemente introduzida no ânus. A cena chocou o país. A primeira impressão é que ele tinha sido assassinado à luz do dia em uma live transmitida pelos seus algozes.

Ele continua internado no Hospital da Restauração, de onde deve sair direto para a cadeia. A partir de terça-feira, começaram a circular informações não confirmadas de que, na verdade, para desmoralizá-lo a vara de bambu foi colocada presa entre suas pernas para dar a impressão de um empalamento – método de tortura medieval em que uma estaca é enfiada no ânus da vítima.

  • Escolta

O confronto terminou após a chegada de, pelo menos, 14 guarnições da Polícia Militar. Com uso de bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo, os policiais reagruparam os integrantes da Inferno Coral e, de maneira surpreendente, continuaram a escoltá-los até o estádio. A maior parte dos componentes da Jovem conseguiu fugir, com as prisões acontecendo após o jogo.

  • Governo do Estado acuado

Duas horas depois da partida e de uma reunião com as autoridades de segurança do estado, Raquel Lyra convocou uma entrevista coletiva para anunciar a decisão que iria deslocar o foco das atenções por dois dias: “saímos com deliberações concretas, que se expressam através de recomendação do Ministério Público para a Federação Pernambucana de Futebol e os dois clubes, proibindo, pelos próximos cinco jogos, envolvendo o Sport e o Santa Cruz, a presença de torcida dentro do estádio”.

No domingo, dia 2 de fevereiro, viraliza a postagem da Explosão Inferno Coral com o ofício enviado dias antes ao comando da PM. Matéria do G1 expõe relatório da Polícia Civil comprovando que a segurança pública do estado sabia do alto de risco de confronto por causa do furto da bateria.

Na defensiva, o governo estadual convocou uma nova entrevista coletiva na manhã de segunda-feira para que o secretário de Defesa Social e o comando da PM apresentassem a versão oficial sobre o papel da polícia no episódio.

  • Vingança e provocações

A partir da segunda-feira, viralizam áudios de dirigentes da Jovem do Sport, mais uma vez atribuídos a Arthur Renato, prometendo vingança pelo suposto “estupro” sofrido por João Victor, uma violência que seria contra a “ideologia das organizadas”. Também viralizam imagens de um torcedor da Explosão Inferno Coral sendo encurralado em uma feira livre na Região Metropolitana e tendo suas roupas arrancadas.

Horas antes do jogo entre Sport x Fortaleza, uma torcida organizada do clube cearense posta em suas redes sociais a foto dos 10 instrumentos da bateria da Jovem com a frase “Tua bateria tá com nós”. Detalhe: a torcida do Fortaleza é aliada da Inferno Coral.

Bateria:

AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.