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Por que é impossível viver na rua Sempre Vida (e seus arredores)

Marco Zero Conteúdo / 19/02/2025
Foto da rua Sempre Vida. No primeiro plano, há uma encosta coberta com lonas plásticas pretas, possivelmente para evitar erosão ou deslizamentos de terra. A trilha de terra segue para baixo, cercada por vegetação densa e algumas plantas rasteiras. Ao fundo, há várias casas simples, algumas feitas de tijolos e outras com telhados de zinco. A vegetação é abundante, com muitas árvores e arbustos ao redor das casas. O céu está parcialmente nublado, com algumas nuvens brancas e cinzas.

Crédito: Victor Moura/Redes do Beberibe

por Victor Moura, do portal Redes do Beberibe

Quantos mundos de morte existem na cidade do Recife? Na rua Sempre Vida, numa das extremidades da cidade, viver é quase uma proibição. As casas no topo do morro são sustentadas por “plástico preto”. As ruas são desniveladas e sem asfalto. As escadarias são de barro e não possuem segurança para locomoção. O acesso à água encanada é limitado e o esgoto corre a céu aberto. A iluminação pública é improvisada com postes de metal enferrujado, lâmpadas incandescentes, fiações remendadas e interruptores soltos. Um dos poucos alentos vem da presença de vegetação em alguns terrenos e encostas, o que ajuda a amenizar a sensação de calor dentro da favela.

A rua Sempre Vida fica no bairro de Passarinho, um grande refúgio autoconstruído por aqueles que não têm onde morar. Localizado às margens da BR-101 Norte e da Área de Preservação Ambiental (APA) Aldeia-Beberibe, Passarinho é um bairro em expansão populacional. Entre os censos 2010 e 2022, sua população saltou dos 20.305 habitantes para 24.306 habitantes. Um cenário que vai na contramão da média do Recife, que perdeu quase 100 mil moradores, encolhendo, segundo o IBGE, 3,7% desde 2010.

Na manhã do dia 6 de fevereiro de 2025, o bairro de Passarinho ganhou o noticiário devido a um deslizamento de terra que matou mãe e filha, Maria da Conceição Braz de Melo, de 51 anos, e Nikolle Keli Melo de Souza, de 23 anos. A tragédia aconteceu no Córrego da Bica, que fica a menos de um quilômetro da rua Sempre Vida. Na ocasião, essa região noroeste do Recife registrou mais de 160 mm de chuva em 24 horas, agravando uma realidade que já é ruim todos os dias.

A imagem mostra uma área externa com uma escadaria de concreto e tijolos em mau estado de conservação. A escadaria está parcialmente desmoronada e coberta de terra e vegetação. Há duas árvores de palmeira ao fundo e uma lona preta cobrindo parte do terreno inclinado à direita. Dois gatos estão presentes na imagem: um gato preto com patas e peito brancos está no degrau inferior esquerdo, enquanto um gato branco com manchas cinzas está no degrau superior direito.

As escadarias do bairro estão se desfazendo

Crédito: Victor Moura/Redes do Beberibe

“As autoridades para vir aqui, não vêm. É difícil. Só quando mata um. Aí que enche de policial, vem médico, vem paramédico, tudo. É um aperreio de vida. Estamos precisando urgentemente que façam nossas barreiras porque estamos vendo aí nas comunidades. Quando vem fazer, é quando as pessoas morrem”, disse Maria Helena, uma mulher negra de 60 anos. Na rua Sempre Vida, é mais conhecida como “Maria do Bocão” por repetidamente verbalizar sua indignação.

Segundo o Plano de Contingência de 2024, antes do deslizamento fatal, o Córrego da Bica, em Passarinho, já vinha sido apontado como uma das localidades do Recife com maior concentração de pontos de risco alto e muito alto. Mais ameaças à vida são visíveis em qualquer uma das 14 comunidades que subdividem o bairro. Andar por seus caminhos é como andar por uma cidade de papel passível de esfalecer na primeira gota d’água. Nos seus 12 anos de morada, Maria do Bocão contou que já viu e ouviu dezenas de histórias de livramento, de moradores que presenciaram uma quase morte.

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Segundo o Atlas de Infraestrutura e Comunidades de Interesse Social do Recife (2014), Passarinho é um bairro subdividido em 14 favelas, sendo elas o Alto da Bica, Alto da Telha, Alto do Carroceiro, Alto Santa Tereza, Passarinho Alto, Rua Alto Visconde Garret, Córrego da Bica, Córrego da Telha, Córrego do Carroceiro, Córrego Santa Tereza, Rua Damião, Rua Vargem Linda, Vila Canaã e a Vila da Amizade. Moradores também apontam outras comunidades como a Vila Sempre Vida, Alto da Bela Vista e o Vale do Senhor. Como Passarinho tem ocupação mais recente e mais espaços livres em comparação a outros bairros periféricos da zona norte do Recife, ele tem apresentado mudanças significativas na paisagem, na construção das comunidades e na distribuição da população.

Na rua Sempre Vida, a principal referência comunitária é a presença de três igrejas, quase uma colada com a outra. Em um domingo ensolarado, se equilibrando para não cair, desciam de uma escadaria íngreme e irregular um grupo de cinco crianças fardadas. Elas estavam acompanhadas da irmã Alvanise, de 50 anos, que faz esse mesmo caminho nos dias de culto de oração. Tem dias que ela chega a acompanhar até 30 crianças e adolescentes. No sobe-desce dessa escadaria, ela relatou ter testemunhado pessoas de diferentes idades se “acidentando” com escorregões, arranhões e até fraturas no pé. Como não tem corrimão para dar equilíbrio ao corpo, algumas pessoas chegam a descer na posição sentada. Como não tem canaletas para escoar água, quando chove, o caminho fica enlameado e ainda mais perigoso.

“Você vê que a escadaria foi feita pelos moradores, com cimento e areia. Ela não tem corrimão, não tem energia de noite. É um absurdo. Para andar por aqui, a gente tem que acender a lanterna do celular. O único poste que tem é esse, mas de vez em quando dá problema”, reclamou Alvanise. A mesma insatisfação foi relatada pela irmã Márcia, de 56 anos, que foge da escadaria e “arrudeia”, pegando o caminho mais longo para poder acessar a sua casa. “Que a nossa rua chegue aos ouvidos das autoridades, do prefeito, não sei quem é (o responsável) que eu não entendo muito disso. Mas para que eles venham olhar com o olhar de misericórdia, que somos carentes e estamos precisando”, acrescentou.

Uma das promessas cumpridas pela primeira gestão do prefeito do Recife João Campos (PSB) foi a de requalificar mil escadarias na cidade. Um número, entretanto, que não se baseou em uma totalidade, pois ainda não existem dados oficiais sobre a quantidade de escadarias no Recife. Ainda assim, em junho de 2024, o prefeito celebrou com passinho a inauguração da 800ª escadaria requalificada, sendo o segundo vídeo mais assistido do ano em seu perfil no Instagram.

Enquanto isso, na rua Sempre Vida, moradores pobres tiraram a grana do próprio bolso e construíram conexões entre a parte alta e baixa do morro. O objetivo era diminuir o tempo de deslocamento e evitar que a localidade ficasse isolada. Porém, como não dispunham de apoio técnico e recursos suficientes para os materiais, novos riscos foram criados e posteriormente agravados com a chegada da chuva.

Sem resolver o contratempo da habitação, da pobreza e das desigualdades, o Recife vai gerenciando seu dilema de cobertor curto: elimina pontos de risco enquanto outros nascem ou se agravam. Na casa de Noemi, de 23 anos, a base da sala e do terraço passou a afundar durante os últimos ciclos chuvosos. A água estava “cavando” dentro do solo e, para evitar um agravamento, a Defesa Civil do Recife passou a colocar lonas plásticas.

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Desde 2021, segundo a Secretaria de Infraestrutura do Recife, a cidade diminuiu pela metade o número de endereços sob risco de deslizamento de terra. Porém, um dado foi na contramão: a quantidade de casas consideradas de risco muito alto. Em 2021, eram 456. No ano seguinte, após as chuvas de maio e junho de 2022, esse número quintuplicou, chegando a 2.429 endereços. Desde então, as casas de muito alto risco têm diminuído, somando 1.678 (em 2023) e 841 (em maio de 2024). Ainda assim, no balanço geral, o número de 841 representou quase o dobro em comparação com 2021. Uma casa é considerada de risco muito alto quando combina elevados níveis de suscetibilidade como altura, declividade acentuada da encosta e demais fatores ambientais, além de vulnerabilidade, quando a localidade apresenta baixos indicadores sociais. Em maio de 2024, eram 17.140 endereços sob risco de deslizamento no Recife, entre baixo e muito alto.

Pelo grau de letalidade, o deslizamento de barreira é o evento que mais causa medo. Mas não é o único. A rua Sempre Vida também oferece risco de queda nas escadarias, de assalto em meio à escuridão da via pública, de impossibilidade de socorro em uma situação de emergência, de hospitalização após contato com água suja e até mesmo risco de adoecimento mental tendo que conviver diariamente com a quase morte.

Noemi é mãe de uma filha autista de 5 anos. A criança passa seu tempo livre brincando no acanhado quintal de casa, que fica em frente a uma barreira, devido às inseguranças que a rua proporciona. “Ela ganhou uma bicicleta da avó, no mês das crianças, no final do ano passado (2024). Pergunta quantas vezes ela pôde brincar aqui fora com a bicicleta? Nenhuma. Ela tem que estar rodando dentro de casa com uma bicicleta. Deus o livre a menina cai, se rala e se quebra todinha. É difícil explicar os riscos (para uma criança), e ela não entende isso”, disse Noemi. Afirmou também que se tornou uma mãe mais preocupada depois que um sobrinho seu caiu brincando nessa mesma rua esburacada. O menino então com três anos de idade bateu a cabeça, foi parar na UPA de Nova Descoberta e, em seguida, passou por observação no Hospital da Restauração. Hoje, aos oito anos, está bem.

Durante a reportagem, a filha de Noemi e mais dois amiguinhos da vizinhança, puderam brincar ao ar livre com supervisão e se distrair olhando a subida do drone de gravação. Ainda que por um breve momento, livres para serem crianças, com direitos iguais a qualquer outra. Na rua Sempre Vida, onde moram, viver é quase uma proibição. Uma realidade dura que só muda com ação e entendimento de que esse pedaço da cidade continua sendo Recife. Que nenhuma tragédia precise acontecer para que algo seja feito.

A imagem mostra uma casa simples de tijolos aparentes e paredes parcialmente pintadas de branco, localizada em uma área elevada. A casa tem um telhado inclinado com uma antena parabólica instalada no canto esquerdo. Há duas janelas sem vidros visíveis na parede frontal da casa. Em primeiro plano, há uma grande lona preta cobrindo o solo inclinado, possivelmente para proteger contra erosão ou deslizamentos de terra. O céu está nublado, e há algumas árvores ao fundo, indicando que a casa está em uma área rural ou periférica.

Sob os plásticos pretos, sempre há uma ameaça

Crédito: Victor Moura/Redes do Beberibe
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