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Bem atrás do RioMar Trade Center, o conjunto habitacional Via Mangue 1 conta com 320 unidades, cada uma com 40 metros quadrados, e foi inaugurado no começo de 2012, recebendo muitas famílias que moravam em palafitas. De acordo com a prefeitura do Recife, as (ainda) poucas famílias que estavam na Entre Pontes/Beco do Sururu no início dos anos 2010 foram retiradas e levadas para lá. Algumas voltaram para a maré, até que o incêndio e a urbanização da área as expulsasssem de vez.
Passados 13 anos da sua inauguração, o habitacional Via Mangue 1 tem ruas com lixo, esgoto a céu aberto e uma intermitência no abastecimento de água que irrita os moradores. Quando a Marco Zero foi lá, já faziam dez dias que a água chegava muito fraca, ficando abaixo do alcance da bomba. Por isso, os moradores usavam cordas para carregar os baldes com água do fundo das cisternas, de onde exalava mau cheiro.
Foi para o terceiro andar do bloco J do habitacional que Ester da Silva levou sua filha Evellyn Vitória (foto acima), que tem paralisia cerebral, naquela noite de 6 de maio de 2022, quando a Entre Pontes/Beco do Sururu pegou fogo. Estão lá até hoje. Usou o dinheiro da indenização da prefeitura, aproximadamente R$ 45 mil, para comprar o repasse de um apartamento no terceiro andar, que custou pouco mais de R$ 50 mil. O restante do pagamento foi com um empréstimo consignado que ela tirou usando o Benefício de Prestação Continuada (BPC) da filha, que é de um salário mínimo.
Estudos elencam que entre as principais dificuldades para quem sai das palafitas e vai para um conjunto habitacional estão o preço da formalidade (contas de luz, água, taxas condominais, transporte etc), o rompimento de vínculos afetivos e comunitários e a perda do rio e do mar como fonte de sustento. Ester vive todas essas dificuldades no Via Mangue 1.
Ela foi parar na Entre Pontes/Beco do Sururu 20 antes do incêndio, quando não conseguia mais pagar um aluguel no Bode e criar três filhas. “Minha filha que mora comigo toma muitos remédios que o posto não dá, tenho muitos gastos”, diz Ester, que ainda deve R$ 3 mil do empréstimo do apartamento.
Elas moravam numa casinha de alvenaria, mas Ester também tinha uma tábua na frente, para armazenar e tratar o sururu que pegava na maré. Como Evellyn Vitória tem dificuldades de locomoção, Ester a deixava na palafita onde podia vê-la enquanto catava mariscos. “Quando estava sem dinheiro era só ir para a maré e conseguia tirar alguma coisa”, lembra. No apartamento do habitacional – Ester diz que comprou o repasse de uma amiga que morava lá e a abrigou após o incêndio – o maior problema é descer os três andares com a filha, o que só tem acontecido para levá-la a consultas médicas.
Como a Entre Pontes/Beco do Sururu era uma favela bastante visível, e de fácil acesso, muita gente e organizações apareciam para ajudar. Na pandemia, uma cozinha solidária do MST se instalou lá. “Todo Natal, toda quaresma, toda Páscoa a gente recebia doações, roupas, cestas básicas. Aqui, ninguém nem lembra que a gente existe”, lamenta Ester, que não queria ter deixado as palafitas. “Na favela todo mundo era família, era camarada. O meu maior sonho era que fizessem daquela palafita um lugar bonito, para os turistas irem tirar fotos. Aquela favela bem organizada ia ser muito bonito”.
A dona de casa Walquíria Alves Dias, 59 anos, foi morar nas palafitas da Beira Rio, no Pina, aos 16 anos. Com o tempo, ela e os vizinhos aterraram o local onde ficavam os barracos em que moravam. Surgiram outras palafitas na frente da casa dela. “Depois que aterrou, a prefeitura deu posse da terra pra gente, que era na época chamada de rua Joaquim Francisco. Mas aí foram nos tirar de lá – hoje funciona uma UPA no local – e pagaram uma indenização que não dava para comprar nada”, diz. Em 2011, ela conseguiu um apartamento no habitacional Via Mangue 1. “Batalhei muito para conseguir esse apartamento, mas na minha casa aterrada, mesmo sendo de tábua, eu era feliz e não sabia”, diz.
Sem a manutenção adequada, os prédios apresentam vários problemas, como rachaduras. “Aqui é muita coisa desconfortável. Tem muitos vazamentos de água, problema no encanamento”, conta. Muita gente que veio para cá pegou a posse, sem nem ter a escritura, e vendeu para outras pessoas. Acho que a maioria que chegou aqui no começo, como eu cheguei, já vendeu e foi embora”.
Walquíria Dias reclama dos vazamentos e da falta de limpeza do habitacional.
Crédito: Arnaldo Sete/Marco ZeroApesar das muitas reclamações em relação a viver em um conjunto habitacional, Walquíria não gostaria de voltar a morar sobre as águas, ainda que fosse em uma habitação com saneamento e construção apropriada. No Recife, as palafitas são associadas à miséria, já que são construções frágeis, sem água ou saneamento básico, onde o lixo se acumula.
Mas não é em todo lugar que é assim. Em vários países, e até mesmo na região Amazônica, há moradias sobre o mar com saneamento e boas condições. Mesmo com tantas palafitas no Recife o poder público nunca tentou fazer construções adequadas sobre as águas para as comunidades ribeirinhas da cidade.
Além da pressão imobiliária para o mercado se apoderar das frentes de água, existe a cultura de associar palafitas à miséria. “Há um estigma”, diz a arquiteta e urbanista Danielle de Melo Rocha, professora de arquitetura e urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “A Ilha de Deus, por exemplo, passou por intervenções urbanísticas, com uma metodologia realmente participativa, e os moradores não quiseram de jeito nenhum palafitas – que seriam bem construídas, adequadas. Seria interessante palafitas lá porque estão na beira do rio, é uma comunidade que vive da pesca dos mariscos, sobretudo”, conta.
“Mas a comunidade não queria que o projeto tivesse nenhuma representação à situação de pobreza. Existe simbolicamente um desejo das pessoas de melhorarem de vida indo para uma casa de tijolos, um conjunto habitacional. As palafitas são vistas como local de precariedade, mas poderiam ter esgotamento sanitário, abastecimento de água, como vemos em vários países”.
Com o recrudescimento das mudanças climáticas, um ponto a ser observado é o uso da questão ambiental para remover comunidades ribeirinhas. “Muitas vezes é um argumento higienista: porque se retira uma população de baixa renda argumentando que as palafitas e casas vão ser atingidas, mas não se retiram os prédios de classe média que estão nas frentes de água, por exemplo”, critica a urbanista, integrante do núcleo pernambucano do Observatório das Metrópoles.
Muito por conta da luta e da resistência dos moradores da comunidade pesqueira de Brasília Teimosa, no Pina, o Recife foi pioneiro em garantir em legislação a prioridade no direito à moradia em algumas áreas da cidade. Hoje, 70 comunidades são consideradas Zonas Especiais de Interesse Social – Zeis. Segundo a legislação, de 1983, “são áreas de assentamentos habitacionais de população de baixa renda, surgidos espontaneamente, existentes, consolidados ou propostos pelo Poder Público, onde haja possibilidade de urbanização e regularização fundiária e construção de habitação de interesse social”.
“Em paralelo a criação da Zeis o Recife também foi pioneiro ao ter constituído a lei do Plano de Regularização das Zonas Especiais de Interesse Social, o Prezeis [instrumento urbanístico de 1995 que visa regularizar áreas de habitação precárias], que é um modelo de gestão compartilhada”, afirma Danielle Rocha.
"A cidade é uma disputa: o valor de uso e o valor de mercadoria", diz a urbanista Danielle Rocha
Crédito: Fiona Forte/Biblioteca Brincante do PinaAinda que as leis municipais garantam a regularização fundiária das comunidades, a prefeitura pode fazer desapropriações. Um caso recente e emblemático, citado pela professora, é o da Vila Esperança, às margens do Rio Capibaribe, no Monteiro.
Apesar de ser uma Zeis, a comunidade era uma das 30 das 70 Zeis do Recife que não possuíam Comissão de Urbanização e Legalização (Comul), o que garante mais força para a comunidade regularizar sua situação e conseguir escrituras para as casas. Com as escrituras, o poder público tem de incluir o valor do terreno no cálculo da indenização e não só das benfeitorias.
“A cidade é uma disputa: o valor de uso e o valor de mercadoria. Historicamente, isso faz parte da construção das cidades. Dentro das próprias comunidades essas disputas também existem. Tem pessoas que acham muito melhor receber a indenização, voltar para o interior ou ir ocupar outra área, enquanto que outros querem ficar e têm também uma visão política mais ampla do que significa estar naquela área. É algo difícil essa compreensão: entender que o direito à moradia é um direito e não uma benesse por parte do poder público que resolve doar ou não doar. Isso passa por um processo de educação, mas também por um processo mais político, de educação política. As ongs que tiveram um papel importante nas décadas de 80 e 90 no Recife, infelizmente hoje não têm mais essa força”, explica a urbanista.
Recentemente, houve uma vitória dentro do novo Projeto de Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo – LPUOS, proposto pela Prefeitura do Recife. “Foi a inclusão de 16 novas Zeis no Recife. Temos que lutar para garantir que essa inclusão seja aprovada também na Câmara de Vereadores”, diz Danielle Rocha.
Em 2024, o então estudante de arquitetura e urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Vinícius Sibaldo Torres de Lira apresentou no seu trabalho de conclusão de curso (TCC) o desenvolvimento de um anteprojeto de habitação destinado à antiga comunidade de palafitas do Pina, utilizando o terreno onde ficavam as palafitas e o Clube Líbano.
No projeto, o objetivo principal era permitir que a comunidade Entre Pontes/Beco do Sururu continuasse morando próxima à sua fonte de sustento, integrando-se à cidade com conforto e salubridade. A proposta buscou ser um contraponto ao projeto da Moura Dubeux.
Para além do projeto habitacional, com 52 unidades para a comunidade e soluções para conforto térmico e ventilação cruzada, o TCC também propõe diretrizes urbanísticas para a área, criando um “parque Entre Pontes”, integrando a habitação com a cidade, revitalizando a vegetação e incluindo um píer para os pescadores, com um eixo comercial.
Na proposta, o Clube Líbano seria restaurado e transformado em um mercado com espaço para venda de frutos do mar pelos moradores e áreas de lazer, aproximando a população do rio e do mangue. Confira aqui o TCC.
Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org