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Cultura (s)em números e a ilusão do controle social

Marco Zero Conteúdo / 26/06/2025
A imagem mostra uma cena vibrante de um grande show noturno durante os festejos juninos de Caruaru, em Pernambuco. O palco principal está completamente iluminado com dezenas de luzes em tons de azul, roxo, vermelho e amarelo, criando uma atmosfera intensa e festiva. No centro do palco, jatos altos de fogo são lançados para o alto, formando colunas de chamas que reforçam o clima de espetáculo. Um telão suspenso exibe a frase “São João Caruaru”. A cantora principal, vestida com roupas coloridas, está na parte da frente do palco, próxima do público, que lota a área em frente e reage com entusiasmo. Ao fundo, dançarinos acompanham a apresentação com fumaça cênica ao redor. Todo o espaço é envolto em estrutura moderna e tecnológica, contrastando com o tema tradicional do São João.

Crédito: Instagram/@saojoaocaruaru.oficial

por Bruno Nogueira*

Duas notícias que circularam nos jornais e redes sociais durante o São João de 2025 falavam sobre o “Painel de Festividades” do Tribunal de Contas do Estado (TCE) e o novo “Painel de Festejos Juninos” do Ministério Público de Pernambuco. Segundo o Tribunal de Contas do Estado, uma forma de acompanhar “de forma clara e detalhada” o “gasto com festa realizados em todo estado”. No entanto, é interessante chamar atenção para aquilo que pretende ser uma ferramenta de controle social, na realidade, expõe a fragilidade das políticas públicas de cultura no estado de Pernambuco, incluindo sua integração com órgãos de controle.

Dois problemas são centrais. O primeiro, mais evidente, é o enquadramento da cultura em sua perspectiva de gasto financeiro. O cidadão é convidado a apreciar um artista a partir de uma cifra fechada de seu cachê, ao contrário da proposta de uma “forma clara e detalhada”. O próprio TCE cai na armadilha desse atalho (ou talvez incentive que seja usado dessa forma?) ao destacar dados como “os maiores valores individuais”, que leva ao raciocínio que, ao final do show, Alceu Valença recebeu em sua conta um pix daquele valor e seguiu para casa.

Para que se pudesse ser, de fato, um instrumento de controle social, seria necessário que o painel representasse um dado que, hoje, é impossível de ser rastreado: o que esse valor representa de fato – o que vou explorar logo mais no segundo problema central. Deste modo, a cultura sob a perspectiva financeira sucinta um debate que já é antigo, ao levar o cidadão tanto a fazer comparações, quanto associações equivocadas, como se estivesse em frente a uma estante de supermercado escolhendo um refrigerante: “Já viu como subiu o preço do Quinteto Violado?”

O segundo problema central é que o painel evidencia a maior assimetria da cadeia produtiva da economia da cultura de Pernambuco: o estado é o maior contratante. O promotor de eventos na região é uma espécie em extinção. Ele não apenas não consegue competir com os valores pagos pelo prefeito ou governador, como também depende de algo que o poder público não precisa: o retorno financeiro do investimento. Destaco aqui talvez uma diferença semântica entre essas duas espécies: não é gasto.

Quando o Governo do Estado ou uma prefeitura municipal tornam-se contratantes, tomam para si uma etapa que parecem não perceber: são a célula estruturante da cultura enquanto “categoria de trabalho”. Quanto do cachê total é destinado ao dançarino da banda? Quantas horas de trabalho ele tem que cumprir antes, durante e após uma apresentação? Que direitos e deveres estão envolvidos? Hoje, essas questões estão terceirizadas a uma figura invisível: o intermediário que assina o contrato do show. Nomes como “Farias Eventos” ou “H Produções” que fazem pouco ou nenhum sentido para qualquer um, sendo eles próprios parte da própria contratação, tal qual um instrumentista da banda.

A estruturação do trabalho é um elemento crucial para que não apenas a música, mas toda a cultura possa de fato exercer um papel que faça sentido num panorama econômico. Sem isso, é impossível afirmar que político X ou Y investe em qualquer dimensão cultural. Ele apenas administra gastos, um valor que é recortado para o fim de promover uma festa e repassado de forma aleatória a partir de uma retórica de contratação. Enquanto isso, um mesmo instrumentista terá condições adversas, apresentando-se com diferentes artistas, na programação de um mesmo evento.

Existe uma grande questão por trás desse panorama: até onde cabe a uma política pública estruturar, em toda sua complexidade, o trabalho na cultura? Perceba que, ao reconhecer a educação e saúde como direitos, ela já faz isso com professores, médicos e com quem mais compartilha atividades profissionais com eles. No entanto, ela faz isso construindo escolas e hospitais, sem um painel que diga “a aula do professor Bruno custa tantos reais”. Para pôr no mesmo termo usado pelo Tribunal de Contas, o “gasto” em aparelhos culturais e em políticas públicas que incentivem o surgimento de contratantes e outros agentes da cultura é muito menor que a cifra somada dessas quatro categorias de festas propostas: carnaval, são joão, Natal e réveillon.

Entendendo que cabe, sim, essa estruturação, então o motivo de persistir neste modelo em que o Estado é o contratante direto de uma apresentação artística permanece um mistério. Sobram exemplos externos: o mais famoso deles é o estatuto do intermitente do espetáculo na França que, assim como o da Bélgica, organizam o trabalho a partir do contratante e não do artista. Existem políticas de previdência subsidiada, como a Künstlersozialkasse da Alemanha e os modelos de negociação como o Artist Act do Canadá. Além daqueles que associam fomento e contratação com a profissionalização e formação (somando, portanto, arte e formação artística), como o Kulturrådet da Suécia e a Ley de la Música da Argentina.

Sem isso, não temos oportunidades reais de controle social porque, na prática, não temos política pública de cultura. Apenas um atalho para a destinação de recurso de impostos para organização de festas que, burocraticamente, precisam ter pessoas no palco preenchendo um determinado horário enquanto o público passeia entre o comércio informal de comida e bebida, esquecendo, pelo menos por alguns instantes, a real importância da ocupação de espaços públicos com arte e cultura.

Bruno Nogueira é doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e coordenador do Grupo de Pesquisa em Políticas Culturais do CNPq

AUTOR
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Marco Zero Conteúdo

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