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Apipucos, o bairro do Recife onde humanos e jacarés são bons vizinhos

Jeniffer Oliveira / 03/07/2025
Esta foto mostra um jacaré parcialmente submerso em um ambiente aquático natural. Apenas a parte superior da cabeça do animal está visível fora da água. Os olhos grandes e atentos, assim como parte do focinho e das escamas da cabeça, aparecem em destaque. O restante do corpo está submerso ou fora do enquadramento. O fundo da imagem é composto por vegetação verde, com folhas e galhos que sugerem um ambiente de pântano ou rio de mata densa. A água está calma e reflete suavemente a cabeça do jacaré.

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

Imagine sair para tomar uma cerveijnha com os amigos no quintal e dar de cara com um jacaré de quase dois metros tomando sol tranquilamente a poucos metros da área de serviço de sua casa.

A cena que talvez seja comum em algum igarapé amazônico ou nas fazendas do pantanal mato-grossense, na verdade também acontece quase todos os dias na zona norte do Recife, no meio da efervescência urbana. Para que o leitor se localize geograficamente, essa é a rotina de quem vive em Apipucos, a poucos metros da movimentada rua que dá nome ao bairro, prolongamento da avenida 17 de Agosto que segue até a BR-101, na altura de Dois Irmãos.

Nos últimos 30 anos, os moradores que residem ao redor do açude de Apipucos passaram a dividir quintais com dezenas de vizinhos mais acostumados com ambientes selvagens: os jacarés-de-papo-amarelo. Esta é a espécie mais comum nos corpos hídricos do Recife e Região Metropolitana e costuma ter porte médio, com um tamanho de até três metros, mas que, em geral, têm de dois metros e a dois metros e meio.

Nos fundos da casa do auxiliar administrativo Antônio Marcelino, de 59 anos, às margens do açude, é possível ver os olhos amarelados dos jacarés dentro da água enquanto repousam. O espaço silencioso, cercado plantas e árvores frutíferas, atrai os répteis para o banho de sol.

Marcelino afirma que nem sempre foi assim. Nascido e criado na mesma casa em que mora hoje, Antônio conta que, nas décadas de 1970 e 1980, era difícil ver jacarés nessa área, pois havia mais pessoas circulando por lá, afinal o açude era limpo e era usado tanto para banho quanto por pescadores da comunidade. Por causa da grande diversidade de peixes, os poucos bichos da espécie costumavam ficar em áreas mais isoladas.

Ele percebe que o aumento da poluição contribuiu para a aproximação com os humanos. “Dos anos 1990 pra cá, peixes de qualidade como o tucunaré, apaiari, cará e piaba sumiram por causa do aumento da poluição. Começaram a aparecer as tilápias e os jacarés começaram aparecer mais também. Antigamente eles ficavam mais na parte lá pra dentro, nas aningas, eles não vinham nessa área aqui, mas depois já começaram a aparecer e foram ficando”, relembra Marcelino.

Eles realmente ficaram. E, por incrível que pareça, a vizinhança humana aprendeu a conviver com eles com certa harmonia. Os moradores da comunidade não importunam os répteis, não caçam nem deixam que pessoas de fora incomodem ou os coloquem em risco.

No quintal de Antônio, por exemplo, as cachorras circulam livremente e até capivaras aparecem. Isso acontece, porque os animais maiores, seres humanos inclusive, não são presas para o jacaré-de-papo-amarelo.

Antônio Marcelino explica que jacarés se aproximaram das casas depois dos anos 1990

Oferecer comida é arriscado

Eles costumam se alimentar de animais de pequeno porte como peixes, caramujos, caranguejos, aves, cágados, roedores e até baratas. Não oferecendo riscos aos humanos e outros animais maiores, como explicam os especialistas ouvidos pela Marco Zero.

Entretanto, os cientistas advertem que é necessário cuidado ao lidar com os jacarés, principalmente se humanos costumam alimentá-los. Antônio Marcelino afirma que ele e seus vizinhos não costumam dar comida para os jacarés, mas esse comportamento não é unanimidade no bairro, pois há histórias e boatos de que os funcionários de uma frigorifíco da região têm o hábito de jogar sobras de carne para os jacarés do açude.

Essa atitude requer atenção, como explica Rafael Sá Leitão Barboza, doutor em Biodiversidade e integrante do Laboratório Interdisciplinar de Anfíbios e Répteis da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE): “o jacaré-de-papo-amarelo não tem essa aproximação com o ser humano, a não ser nesses casos em pessoas passam a alimentá-los. Quando issoa acontece, ele tá associando essa aproximação à comida. E, no momento em que a pessoa parar de dar, pode levar um escorregão, cair ali no local de alimentação dele, então pode haver ataques”.

Fora isso não há o que se preocupar. Barboza e seu colega Paulo Braga, professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), ambos do projeto Ecologia e Conservação de Jacarés, nunca registraram ataques a humanos desde 2013, quando começou a funcionar a iniciativa sediada na UFRPE com parceria da UFPE e outras instituições.

Nesse período, foram registrados mais de mil jacarés dessa espécie nos rios e demais corpos d’água da cidade. “Em todas as cidades da Região Metropolitana do Recife, a gente tem registros de jacarés. Então a gente não tem um número exato, mas a gente sabe que esses animais estão distribuídos em toda a RMR, em todos os municípios, em todas as áreas. Onde tiver rio, riacho, córrego, açudes, provavelmente tem jacaré”, reforça Braga.

Além do papo-amarelo, Pernambuco também tem o jacaré-paguá ou jacaré-anão, uma espécie de pequeno porte que prefere ambientes mais conservados, longes dos centros urbanos. Na Região Metropolitana, é possível encontrá-los em Aldeia, município de Camaragibe, por ser uma área mais preservada. Eles também estarão presentes em ambientes de florestas nativas e com água limpa.

Abundância no Capibaribe

Atualmente, o projeto de Conservação está realizando levantamento para mapear a população de jacarés no rio Capibaribe. A análise é feita da foz do Capibaribe, passando por Casa Forte e indo até o Parque Dois Irmãos. “A gente se surpreendeu com o quantitativo. Tem uma população de média alta relativamente estável”, afirma Barboza.

Os pesquisadores perceberam que esse grande número dos jacarés no Capibaribe é maior do que outros estudos que fizeram em outras regiões do país. Mostra que há animais bem estabelecidos tanto no REcife quanto nos municípios vizinhos. Mas, apesar de um número abundante, eles são pouco vistos, porque têm esse hábito de ficar escondido.

A discrição, aliás, é uma característica dos jacarés, de forma geral. Eles se mantêm escondidos para sua proteção, mas também é a maneira que eles capturam os alimentos. Ficam à espreita até uma oportunidade certa. “Os jacarés são, na evolução, muito próximo das aves. Então eles têm capacidade cognitiva boa, têm o maior cérebro entre todos os répteis, um córtex cerebral grande”, esmiuça o professor Paulo Braga.

De acordo com os pesquisadores, isso implica na alta capacidade de aprendizado. São animais que memorizam, se condicionam, sabem o que é que pode ser uma ameaça e o que é que pode não ser uma ameaça, além de saber onde vai ter comida mais fácil, sendo por interferência humana ou não.

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“Alimentar os jacarés é crime ambiental. Se a gente tiver falando de proteção dos animais silvestres, a lei 9.605 de 1998 fala sobre maltratos e de alguma forma isso pode ser categorizado como maltrato, porque você tá alterando o comportamento natural do bicho, você tá atraindo ele para próximo das residências, enfim, tem uma série de problemas associados a essa interação”. O alerta é do professor Paulo Braga.

Esta imagem mostra dois jacarés parcialmente submersos em um ambiente aquático cercado por vegetação densa. Apenas as cabeças dos animais estão visíveis fora da água, com os olhos atentos e voltados para frente. As cabeças aparecem lado a lado, e a superfície da água reflete seus contornos e as folhas ao redor. O cenário é sombreado, com luzes suaves penetrando entre as folhas verdes, criando um clima natural e um pouco misterioso.

Jacaré-de-papo-amarelo é um animal reservado, preferindo manter distância de humanos

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero
AUTOR
Foto Jeniffer Oliveira
Jeniffer Oliveira

Jornalista formada pelo Centro Universitário Aeso Barros Melo – UNIAESO. Contato: jeniffer@marcozero.org.